sábado, dezembro 14, 2019

Rapto junto à Capela

Um dia, uma das damas do Castelo passeava pelo campo, envolvida nas mais nostálgicas recordações de infância e dirigiu-se até às ruínas da capela de São Sebastião. Mal sabia que ia ser protagonista de uma estória muito estranha.
Chegado três dias antes a Ourém, o João seguiu-a e fez-se acompanhar de um presa canario adquirido recentemente. Que teria ele em mente?
Perto das ruínas, a pobre Ciete vagueava sem se aperceber do perigo que corria. De repente, o cão surgiu-lhe por trás e rosnou-lhe. Ela ficou paralisada.
- Ai! O que é isto?
Num derradeiro esforço, tentou correr, tentou fugir do cão, mas este perseguiu-a e rapidamente filou a sua perna com a boca obrigando-a a deter-se
Atrás de umas moitas, o João espreitava o movimento. Colocou o seu gorro e aproveitou a paralisação momentânea da pequena para a aprisionar e enfiar numa carrinha com o auxílio de dois capangas. Rapidamente, conduziu-a até ao Castelo onde foi presa ficando guardada pelo cão.
- Mas o que é isto? – perguntava ela.
- Cala-te e nada de mal te acontecerá…
Durante duas horas a pequena ali esteve aprisionada, comendo umas migalhas que ele lhe levava e sempre vigiada pela feroz criatura.
Entretanto, na vila, todos estranhavam a sua ausência.
- Que lhe terá acontecido? – perguntava a Ceuzinha, terrivelmente preocupada. – Ela foi apanhar flores ao campo e ainda não voltou.
Mas a resposta não chegava. A Ceu estava nesta agitação quando alguém bateu à porta da sua casa no Castelo.
Era o João sempre gentil com uma caixinha de bolos do Algarve adquiridos propositadamente para ela.
- Oh, João! Tão gentil… mas aconteceu uma coisa incrível. A minha irmã desapareceu… não sei que fazer… ela não atende o telefone. É surreal…
- Podes crer – respondeu o João - Temos de comunicar à polícia e fazer com que a procurem.
Dirigiram-se imediatamente ao posto da polícia de Ourém e expuseram o caso.
- Nós temos de esperar 48 horas – respondeu o agente a quem entregaram a participação do desaparecimento – A pessoa pode-se ter ausentado por vontade própria.
- Mas eu já lhe disse que a vontade dela era estar em nossa casa. Nada justifica a ausência.
Mas a verdade é que nada demoveu o agente da sua posição legitimada pela lei, pelo que, derrotados, saíram e caminharam por Ourém depois de ainda o ouvirem dizer:
- Minha senhora, a Lei é para ser cumprida. Não há desaparecimento se não passarem 48 horas
A notícia do desaparecimento, entretanto, ia correndo pela cidade e, logo, alguns voluntários se ofereceram para a ajudar nas buscas.
- Se a polícia não a procura, procuramos nós…
E imediatamente se organizou um grupo o qual se dirigiu para a zona das ruínas da Capela. O João e a Céu acompanhavam-nos possuídos de motivações e preocupações muito diversas…
De repente, um dos voluntários encontrou algo…
- Olhem isto. Alguém passou por aqui.
Era uma trela para conduzir um cão.
- João, acho que já vi aquela trela nos teus filmes com o Baloo. Passa-se alguma coisa que eu não saiba?
- Jejejejejejejeje. De facto, a trela é minha. Eu passei por aqui e devo-a ter perdido.
- João, tu sabes onde está a minha irmã?
- Não, não sei nada. Por acaso, passei por aqui e vi uma senhora a ser arrastada por três angolanos, mas não a reconheci, nem a eles. Nesse instante, devo ter perdido a trela…
A Céu não ficou nada convencida.
- Arrastada por três angolanos… onde é que eu já ouvi isso? E por que não revelaste isso mais cedo?
- Não associei os casos. Pensei que era uma brincadeira.
De regresso a casa, depois da busca infrutífera, o João refletia:
- Quase ia sendo apanhado por causa da trela… Como hei-de dar a volta à situação?
E elaborou um plano que, com a colaboração de um capanga, arrastaria a Céu para um enredo ainda mais dramático.
(Continua na próxima semana)

sexta-feira, dezembro 13, 2019

Ourém, uma ferida

Tinha talvez os dezanove anos. Estava todo empenhado nas económicas e a saborear os primeiros textos subversivos quando a carta chegou: "Caro Luís, mudei de emprego. Quando voltares, deverás fazê-lo para Fátima. Alugámos lá uma casa…"
Ao princípio não me apercebi das consequências, mas ao fim de algum tempo, a ferida abriu.
Ourém já não era estar, Ourém era apenas passar.
Deixei de ver a malta amiga sempre que havia férias. Deixou de haver noitadas, bailaricos em garagens e em sótãos bem revestidos. Para mim ficou provada aquela ideia: quem desaparece, esquece.
Aos poucos deixei de aparecer. Umas vezes não os encontrava, outras já não podia ficar mais, a última camioneta era às dez para as sete. Um dia, levei o Anti-Dühring para o Avenida e alguém me diz: "andas a ler essas m...? Também és desses?" Outro dia, soube da morte do primeiro dos que já partiram….
Fechei-me em Fátima. Não fiz outros amigos ou, pelo menos, nunca mais encontrei daqueles amigos. Como? Se aqueles os conhecia quase desde que tinham nascido?
Ler, ler, ler, escrever também um pouco. É que havia aquela sensação de que algo tinha ficado por dizer, e múltiplas coisas por fazer…


quinta-feira, dezembro 12, 2019

A Gala do CFL

No mês de Março de um dos primeiros anos da década de sessenta, foram chamados ao gabinete do diretor do CFL os seguintes alunos com o objetivo de colaborarem na organização da primeira gala do colégio: Lena Borda d’Água, Céu Vieira, Maria Emília, Luís Cúrdia, Amândio Lopes, Rui Leitão e Jó rodrigues.
Depois de lhes apelar aos mais profundos, pedagógicos e patrióticos sentimentos, ficou combinado que as duas primeiras se encarregariam de confecionar os bolos para a gala, a Maria Emília forneceria, abateria e depenaria 50 frangos, o Luís Cúrdia traria 250 litros de vinho da taberna do Manel Raul bem como uma centena de pirolitos e laranjadas, o Amândio traria 50 kilos de batatas cortadas em palitos para fritar, o Rui Leitão encarregar-se-ia de distribuir pastilhas Reny para apoiar a digestão e o Jó Rodrigues assaria os frangos.
A Lena e a Céu deveriam também servir às mesas vestidas de coelhinhas e de patins.
Conseguido o acordo dos colaboradores, o diretor produziu imediatamente intensa ação de propaganda relativamente à gala. Só existiriam vinte mesas para os familiares dos alunos à razão de 300 euros por mesa (1)… Desta maneira, conseguia-se estabelecer um apertado filtro à entrada já que Ourém era habitada por gente tesa, rude, sem princípios, capaz das piores zaragatas…
Algumas dessas mesas ficaram de imediato reservadas para o Presidente da Câmara e sua comitiva, para o diretor do colégio e para o pároco da Igreja.
Ficou ainda clara a proibição de o João Passarinho entrar no espaço reservado à gala devido ao seu comportamento desnaturado.
A gala contaria ainda com um baile abrilhantado por um conjunto da região e previa-se uma curta atuação de quatro elementos que viriam a integrar o quarteto 1111.
***

E o dia da gala chegou.
Os participantes foram estacionando os belos automóveis ao longo da estrada que servia o colégio. As damas da elite de Ourém, muito perfumadas, resplandeciam nos seus vestidos de tecidos comprados para o efeito na loja do sr. Pina e elaborados pelas melhores modistas da terra. O senhor prior também não faltou para abençoar aquelas almas tão gentis. As meninas, oh!, aquelas flores… como vinham bem vestidas para o baile…
A gala iniciou-se com um discurso do Dr. Armando:
- Esta é a primeira gala do nosso Colégio Fernão Lopes e espero que não seja a última. Com ela queremos cimentar a união entre pais, alunos e professores num ambiente de mútuo respeito. O nosso programa para hoje é longo. Um antigo aluno proferirá a oração de sapiência. Alguns dos melhores alunos vão ler alguns poemas que mostram a qualidade das leituras que temos no nosso espaço de ensino. Depois, veremos uma breve atuação de quatro rapazes que virão a formar o quarteto 1111 que, daqui a algum tempo, lançará a Lenda de El-rei D. Sebastião e a Balada para Dona Dinis. O José Cid ainda não tem o nível do nosso Fernão Lopes, mas garanto que chegará longe e que em 2019 lhe será atribuído um prémio musical.
Terminado o discurso do diretor, em nome dos antigos alunos do Colégio, a Florência proferiu uma oração de sapiência na qual enaltecia o papel do grande cronista na divulgação da História do nosso país. Terminou pedindo ao Ministro da Câmara (o Presidente) que nunca deixasse definhar aquele espaço para ali poderem voltar com prazer todos o que o tinham frequentado.
O Presidente da Câmara agradeceu as palavras da antiga aluna, acenou afirmativamente ao pedido, garantindo que a autarquia tudo faria para manter aquele espaço nas melhores condições. Em seguida, propôs um brinde, augurando um excelente futuro aos alunos a servir a Pátria na Guerra Colonial e, aos que escapassem, a trabalhar para engrandecer o país. Todos de pé, de copo na mão bem cheio, seguiram as suas palavras:
- Vai acima, vai abaixo, pela goela abaixo…
Em seguida, três alunos foram ler poemas, originando significativos aplausos. Eram os três Luíses nascidos nas imediações da Rua de Castela ali a trazerem os versos de Pessoa e António Gedeão(2).


Finalmente, o futuro quarteto 1111 interpretou três canções que entusiasmaram novos e velhos:
João Nada
Entretanto, o belo cheirinho do frango assado já entrava pela sala improvisada no ginásio. Lá fora, o Jó Rodrigues rogava pragas àquela gente toda e ao trabalho que lhe tinha calhado e resolveu participar na festa carregando a assadura com piri-piri. E não tardou muito, procedeu-se ao início da refeição. As meninas vinham de patins trazer frangos e batata frita às mesas. Comia-se e bebia-se a valer e, com o tempero do frango, bebia-se ainda mais… Tudo parecia correr às mil maravilhas.
O João não estava nada contente e, quando uma das meninas passou à frente da porta onde se escondia e como já estavam todos com os copos e não davam por ele, rasteirou-a. A pobre caiu em cima da mesa onde estava o diretor do colégio e família e o frango caiu na cabeça do Presidente da Câmara enquanto uma asa acertava em cheio numa bochecha da Aninhas…
A patinadora foi de imediato socorrida. Era a Céu. Coitadinha, estava cheia de nódoas negras, mas foi amparada por vários rapazes gentis e, em breve, recuperou a boa disposição.
Confusão ultrapassada, foi servida a sobremesa. Um belo bolo de ovos feito pela Lena, coberto de chantilly. O problema é que, mal aproximaram o nariz do bolo, as pessoas fizeram um esgar de desconfiança. Levantou-se o dr. Laranjeira:
- É curioso, este bolo está muito bonito, mas cheira mal…
A Lena ficou logo nervosa.
- O quê?
- Cheira a ovos podres…
Mal sabiam que o malvado do João um dia antes tinha trocado os ovos que a Lena tinha comprado, ovos fresquinhos da melhor criadora de Ourém, por ovos podres que já guardava há vários meses em casa.
- Mas não pode ser… Kakakakakakaka – dizia a pobre Lena.
Contudo, teve de render-se à evidência e, em total descontrolo, pegou no bolo e espetou com ele na cabeça do padre.
- A culpa foi sua que me recomendou a Eulália dos ovos…
Foi o sinal que faltava. De festa, a gala transformou-se em guerra com todos a despejarem os bolos na cabeça uns dos outros. Verdadeira batalha campal com as damas a fugirem para não lhes estragarem os fatos elaborados exclusivamente para aquele efeito. E, cá fora, o João e o Jó gozavam todo aquele espetáculo deprimente enquanto se deliciavam com os frangos que tinham escapado à gula dos participantes.
Escusado será dizer que nunca mais houve galas no CFL.


(1) 60 contos na moeda da altura.
(2) O Luís Filipe, o Luís Manuel e o Luís Nuno. Três Luíses que nasceram com uns oito dias de diferença uns dos outros.

quarta-feira, dezembro 11, 2019

Como preservar o património literário

Há cerca de vinte e cinco anos fiz as primeiras obras de restauro na casa em Ourém. Um empreiteiro da Quinta da Sardinha tratou de renovar o telhado, picar as paredes, rebocar e proceder à pintura externa, renovar a canalização, etc. etc. Um orçamento para uns três mil contos.
A certa altura levantou-se o problema do chão dos quartos e corredor já que o restante foi substituído por pedra. O chão era muito bonito em tacos de madeira que formavam um desenho que eu gostava muito. A proposta do empreiteiro foi de que fosse tratado em envernizado, pois estava em muito bom estado. E o chão ficou efetivamente bonito, ainda mais bonito do que antes, sempre que ia à casa contemplava-o embevecido.
Depois de algumas adaptações, a casa ficou pronta a habitar, com um custo global que ultrapassou em 100% o orçamento. O empreiteiro foi sempre muito simpático. Quando eu ia fazer contas com ele, convidava-me para a sua casa e dava-me sempre um copinho de vinho branco da sua colheita. Era delicioso, saia de lá sempre de bolsos vazios, mas de sorriso nos lábios e, curiosamente, com a sensação de que o senhor ia sistematicamente melhorando a sua mobília. Já se dizia: «Tu andas a pagar-lhe os móveis novos…».
Enfim, a coisa parou, pudemos desfrutar aquele maravilhoso cheirinho de uma casa praticamente nova, passámos a usá-la mais regularmente e os anos foram passando.
Há perto de quinze anos, deu-me para refazer as coleções de banda desenhada da juventude. Em Lisboa ainda havia alfarrabistas com bastante material e os sites de leilões como o Miau ou o Coisas evidenciavam um dinamismo notável. Os preços dos alfarrabistas eram ultra-especulativos, mas nos leilões apanhavam-se boas coisas a preços muito interessantes. E comprei, comprei, comprei…
Claro que o armazém escolhido para tanta papelada foi a casa de Ourém. O Cavaleiro Andante, o Mundo de Aventuras, o Zorro e o Condor Popular começaram a habitar a casa a qual foi recebendo novas estantes as quais também foram guardando os livros que já lá existiam.
Um dia vem a primeira queixa:
- É curioso. Cheira aqui mal, a algo podre…
Comecei a ficar nervoso.
Nas visitas seguintes, as queixas não cessaram. Efetivamente cada vez se sentia mais o cheiro a algo podre. E a acusação surgiu.
- É desses malditos livros que tu compras. Tens de arranjar uma solução… Vai falar com o Pacheco Pereira que tem um monumental armazém de livros e coisas antigos. Ele trata-os tão bem que até consegue dormir no meio deles.
Brrr!!!! Dormir no meio daquelas velharias….
Eu bem argumentava. Cheirava os livros e tudo me parecia em ordem, embora com o clássico cheirinho a antigo. Alguns mais evidentes tiveram um destino curioso: foram afastados dentro de uma caixa de plástico para uma arrecadação exterior; aqueles a que algum esperto tinha acrescentado naftalina foram diretamente para o lixo…
Mas o cheiro continuava.
Desatei a comprar micas e pastas de catálogo e enfiei lá centenas de revistas com o formato perto do A4. Os primeiros Mundo de Aventuras em formato A3 receberam uma pasta de catálogo especial da Staples… Passei horas e horas a «embalsamar» os livros. Mas parecia que nada resultava.
Com um pouco de ventilação, o cheiro desaparecia, mas bastava estar quinze dias fora para, no regresso, o cheiro a podre estragar a estadia…
Até que um dia, por acaso, vimos que um taco daqueles bonitos que eu gostava muito se estava a desfazer em pó. E a suspeita surgiu: «será dos tacos de madeira?».
Claro que a despesa seguinte foi substituir os tacos de madeira por azulejo, uma coisa simples, 33*33 que até se parecia com madeira. Infelizmente, meti-me com um sujeito que gostava mais de vinho que do trabalho e uma obra bastante simples arrastou-se de uma maneira vergonhosa. A pedra ficava mal assente, caminhávamos em cima dela, mexia-se e rangia. Depois tinha de ser arrancada e colocada nova. O nosso desespero já era de tal ordem que estávamos prestes a esgotar o azulejo no fornecedor e «Os Paulinos» quase nos ofereciam o cimento cola para a próxima tentativa… até que um dia nos indicaram alguém decente para concluir o trabalho.
O certo é que, passado este percalço, o cheiro horroroso desapareceu e os livrinhos repousam descansados nas respetivas estantes.
Moral da história: protejam sempre os vossos livros, pois o mal está com certeza em outra coisa que vos rodeia…

terça-feira, dezembro 10, 2019

Do deslumbramento com a liberdade


Na manhã do 25 de Abril, saí de casa exatamente como em dias anteriores e dirigi-me à EPAM. Já sabia pela rádio do que se estava a passar e a ordem era para os militares se apresentarem nas respetivas unidades.
Ia um pouco intranquilo, mas pronto para o que desse e viesse. Na EPAM, o ambiente não era muito diferente do normal. Soubemos, entretanto, que o comandante tinha sido detido e que estava a ser substituído pelo coronel Marcelino Marques que, por volta das dez, fez reunir os milicianos para nos explicar as intenções do MFA.
Não sei reproduzir as suas palavras, sei sim que fomos postos perante o dilema: ficar ou sair. Eu e muitos colegas resolvemos ficar. Três de nós resolveram sair. Em seguida, os milicianos reuniram-se e escreveram um documento de apoio ao movimento no qual se ofereciam para, com a sua experiência e conhecimentos, ocupar postos onde fossem necessários. O engraçado é que, neste momento, o Lourenço Teixeira, um alentejano de boa cepa, ergueu a voz e denunciou logo:
- Pois é, já estão a querer substituir os outros nos tachos disponíveis. Não apoio nada disso.
O documento foi corrigido e integrámo-nos com toda a facilidade nas forças que apoiavam o movimento.
Mal o Teixeira sabia que, passados alguns anos, a corrida ao tacho entre aquela malta ia ser desenfreada.
Eu fiquei pelo quartel. Um amigo de curso, o Jorge, um madeirense, foi, carregado de granadas, para a RTP. Parecia um paiol. 
E o dia foi decorrendo. À tarde, estando de sentinela na parte da frente do quartel, comecei a ver passar os carros de civis a apitar, a fazerem o “V” de vitória, já a celebrar. «Isto está animado», pensei, enquanto olhava encantado aquele movimento.
Depois, fomos sabendo as novidades do exterior e que tudo corria bem. Ao anoitecer, os três que tinham preferido sair, voltaram e foram recebidos de braços abertos e de imediato reintegrados.
Nos dias seguintes, não saí da EPAM. Em várias noites, fiquei de sentinela, sempre atento na minha guarita a qualquer movimento suspeito que pudesse denunciar uma invasão. Às vezes, tinha companhia e falávamos sobre o golpe. Havia uma monumental mistura de tendências de esquerda apostadas no golpe. Malta do PC, do MRPP, dos grupos M-L, do futuro MES, do futuro PRP/BR (havia um de quem nunca nos lembrávamos do nome a quem chamávamos BUUUUUMMMMMMM!). Havia a suspeita de o golpe ser de direita por ser liderado por militares que associávamos a pessoas muito autoritárias e presas ao anterior regime. Aliás, a primeira vez que vi na televisão a preto e branco a Junta de Salvação Nacional com o General Spínola de monóculo, aquilo pareceu-me tenebroso, só me lembrou o Pinochet. Mas o comunicado do MFA e aquela música maravilhosa que o acompanhava ajudavam a desfazer essa impressão.
Ao fim de três dias, disse ao comando que a minha esposa estava grávida e gostava de ir vê-la. Satisfizeram-me imediatamente o pedido e apanhei o autocarro (7, se não estou em erro) para sair na Praça do Chile. Claro que não cheguei lá… Ao fim de algum tempo, as pessoas na rua a celebrar eram tantas que eu tive de sair também e quedei-me maravilhado a ver a descida de uma manifestação à frente do cinema Império. Assim, fui a pé até casa na Morais Soares e todos os meus receios foram afastados.
Algum tempo depois, nascia a Ana. 

segunda-feira, dezembro 09, 2019

Malvada moedinha de escudo


Claro que gostava muito do Luís Nuno, fomos amigos desde muito pequenos, criados muito perto um do outro. Eu frequentava muito a casa da «Vizinha» e do Rafael que tinha uma varanda que dava para a casa dele a uma distância de uns dez metros. Assim, falávamos de varanda para varanda…
Com um relacionamento quase perfeito, um dia as coisas deram para o torto. Ele pediu-me um escudo para comprar tabaco e eu fingi que não tinha. Bolas! Um escudo dava quase para o Mundo de Aventuras, era 1/8 de um livro da Coleção Búfalo. Nunca mais me falou…
Foi estudar para Tondela e, quando regressava, já todo vaidoso com capa e batina, reunia os seus amigos e deixava-me desprezado a um canto do Avenida. O que me valia era que ainda sobravam alguns para o King e conseguia ignorar a provocação.
Pouco depois de ele ter fugido para França, escrevi uma pequena nota no Notícias de Ourém acerca dele e da nossa amizade. Já não tenho esse artigo, mas referia-se a esta pequena, mas significativa discordância. Uma discordância com efeitos…
Os pais do Luís ficaram muito comovidos com essa nota e quiseram falar comigo. Foi talvez a última vez que os vi e lá estive um bom bocado com eles em que me contaram alguns pormenores da vida dele em França e da sua generosidade que chegava ao ponto de, por vezes, dar o seu salário a outros que precisavam mais do que ele…
Pois bem, apesar de estarmos una anos sem nos falarmos, fui com certeza dos primeiros que ele procurou no regresso de França. Mais tarde, fiz uma prova académica e ele e o Zé Quim fizeram questão de estar presentes.
E, quando fez cinquenta anos, fui um dos convidados à sua festa de anos, mas desta falaremos mais tarde…
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