sexta-feira, abril 17, 2020

A ação da inspeção de espetáculos

Naquela época, os filmes que chegavam a Ourém eram dominantemente classificados em dois tipos: «Maiores de 12 anos» e «Maiores de 18 anos».
Na sua sofreguidão para fazer dinheiro, o novo porteiro nem pedia o documento de identificação ao espetador. Qualquer lhe servia para aumentar o seu ganho ou o do patrão. Mas a verdade é que existia uma Direção de Espetáculos com o objetivo de zelar para que tudo decorresse de acordo com a ordem vigente. E, um dia, um inspetor chegou a Ourém.
Na sala de espetáculos havia grande expetativa. Todos se preparavam para assistir ao grande filme «Rio Vermelho». A plateia estava bastante composta, assim como o balcão. E a projeção começou, tendo-se iniciado o filme ainda na primeira parte. Ao chegar o primeiro intervalo, todos os espetadores pareciam satisfeitos e ávidos pela continuação do filme.
Mas estava escrito que muitos não assistiriam ao mesmo. Ainda os espetadores não se tinham levantado para esticar as pernas quando um homem acompanhado por dois guardas armados irrompeu pela sala ordenando que todos ficassem nos lugares.
Depois, percorreu o corredor central olhando para um e outro lado com toda a atenção. Chegado à fila L, parou e apontou o Estorietas e os seus amigos:
- Vocês… mostrem os vossos bilhetes de identidade.
Os miúdos apressaram-se a obedecer.
- É o que eu pensava. Nenhum tem idade para assistir a este espetáculo. Mostrem-me os bilhetes…
Eles assim fizeram e o inspetor examinou-os com ar bastante atento.
- É curioso. Estes bilhetes não são iguais aos que vi na bilheteira. Quem foi que vos vendeu?
O Melo apressou-se a esclarecer:
- Não foram vendidos, senhor inspetor. São uma oferta da gestão para a miudagem poder assistir ao espetáculo.
Mas o Estorietas teve de falar:
- Olhe que não, senhor Melo, olhe que não. Cada um de nós pagou um euro por bilhete ao porteiro.
- O quÊ? – gritou o melo lançando as mãos à cabeça.
Naquele momento, ouviu-se o ruído apressado dos passos de alguém. Olharam na direção da porta e viram o porteiro a esgueirar-se a toda a velocidade.
- É o porteiro – dizia o Mário. – Vai a fugir com a receita do espetáculo.
Os polícias foram atrás do homem e, pouco depois, este era apanhado, regressando à sala de espetáculos.
O inspetor voltou-se para o Melo.
- Apesar da sua nobre ação de permitir a divulgação cinematográfica entre os mais jovens, vou ter de o autuar por não ter cumprido devidamente o regulamento dos espetáculos ao não controlar a idade de quem entrava. Mas levaremos em conta as suas boas intenções que ficaram bem patentes na carta anónima que alguém escreveu a denunciar o que se passava.
- Ah! Houve uma denúncia…
- É verdade. Houve alguém que não gostou que a sua boa intenção estivesse a ser aproveitada por um indivíduo sem escrúpulos …
- Nunca pensei… mas para a semana já cá estará o Joia. Isto não voltará a acontecer.
- Terei isso em conta. E agora continuem a ver o filme. Excecionalmente, permito que esses miúdos o vejam até ao fim. Mas essa bagunça acabou aqui hoje.
E as filas de miúdos à entrada da porta do cinema esperando uma borla voltaram a Ourém…

quinta-feira, abril 16, 2020

A forma de burlar o benfeitor

Uma noite, o Estorietas e alguns amigos permaneciam junto à porta do cinema à espera de poderem entrar quando o novo porteiro lhes disse:
- Isto mudou. Para assistirem ao filme devem munir-se de um bilhete e entrar como qualquer outro espetador. É mais simples, pois não têm de estar aqui à espera…
- E como se arranjam esses bilhetes?
- Vêm ter comigo às cinco da tarde junto da bilheteira. E não se esqueçam de que cada bilhete ficará por um escudo…
- Como assim?
- Um escudo por bilhete. Não é nada exorbitante se atenderem a que têm de pagar dez escudos para ver o filme da plateia. Se não quiserem, há outros interessados…
«Tenho de ir ver a Scarlett - pensava o Estorietas, olhando o cartaz de "E tudo o vento levou".»
E a verdade é que tiveram de se apressar a conseguir os bilhetes para a sessão seguinte, pagando um escudo, pois o novo porteiro tinha desenvolvido uma manobra publicitária e outros indivíduos oriundos dos arredores e que não se enquadravam na ideia original do Melo conseguiram alguns bilhetes quase impossibilitando que assistissem ao filme.
«Este indivíduo está a fazer dinheiro abusando da generosidade do Melo» - ruminava um miúdo.
O indivíduo parecia ter cada vez mais sucesso. E um dia conseguiu convencer o Melo a duplicar o número de lugares a disponibilizar naquelas condições, omitindo obviamente que cobrava um escudo por cada um deles. As filas à porta tinham desaparecido completamente e as sessões ostentavam quase sempre uma lotação digna de nota. O Melo sentia-se feliz por dar aquela oportunidade aos jovens para ver cinema à borla, era um benfeitor. O porteiro estava todo contente, pois, com a sua ideia, tinha conseguido melhorar drasticamente o seu magro salário. A miudagem andava feliz, pois um escudo semanal todos tinham e podiam assistir às magníficas coboiadas exibidas no cinema. Parecia que todos estavam a ganhar…

Parecia...

quarta-feira, abril 15, 2020

Cinema à borla para a miudagem

Na polícia, ninguém denunciou o Joia. Como poderiam fazer uma coisa dessas depois da sua meritória ação pela expansão da cultura cinematográfica na terra? Antes revelaram que, umas horas antes do filme se tinham escondido na sala aproveitando uma distração do porteiro, refugiando-se atrás dos maravilhosos cortinados verdes que separavam a sala das portas de saída.
O Melo não ficou muito convencido daquela versão, mas tomou uma resolução definitiva:
- A partir de agora, a fila L fica reservada para os jovens da nossa terra assistirem aos filmes sem pagarem entrada.
Meritória ação…
Graças a ela, alguns jovens poderiam assistir àquelas maravilhosas projeções desenvolvendo os seus conhecimentos e cultura. E o Joia nem teve que mudar o procedimento. Existindo vinte lugares na fila, os primeiros vinte jovens que surgissem podiam contar com uma entrada grátis.
Pode dizer-se que, durante algum tempo, tudo funcionou às mil maravilhas, mas, um dia, o simpático porteiro adoeceu e teve de ser substituído, pelo menos durante um mês, por um indivíduo com má cara residente no Alqueidão que, ao fim de uma ou duas sessões, pensou em aproveitar-se da situação.
«Isto está muito mal gerido desta maneira. Esta fila de miúdos a mendigar uma entrada à porta do cinema dá mau aspeto e até pode afastar as pessoas que pagam bilhete».
Pensando nisto, foi ter com o Melo e propôs-lhe:
- Podemos criar uns bilhetes especiais para a fila L que eles poderão levantar às cinco da tarde e depois entram como qualquer outro espetador sem aquele espetáculo deprimente à entrada. Eu próprio lhos entregarei…
O Melo concordou. Era uma pessoa boa que não pensava que a maldade humana estivesse presente por todo o lado e que alguém a usasse para denegrir a sua obra.


Que irá acontecer?
Que poderá fornecer o novo porteiro para se aproveitar da generosidade do Melo?

terça-feira, abril 14, 2020

Nunca infrinjas os dez mandamentos

Obviamente que, onde há despesas, tem de haver algum controlo. E o Melo batia com as mãos na cabeça.
«Como é possível isto? Só trinta bilhetes vendidos? Mas eu vi umas quarenta pessoas na sala…»
Foi ter com o Mário que lhe confirmou o número de bilhetes vendidos, mostrando-lhe as sobras.
«Não há engano possível. Como poderei esclarecer este mistério?»
Reparou que, na sala de cinema, havia sempre uma ou duas filas vazias na plateia sensivelmente a meio e a seguir a essas, para a frente, estavam sempre os lugares ocupados por rapaziada de Ourém.
«Há aqui algo esquisito. Não que me importe que eles vejam o filme à borla, havendo lugares vazios, mas gostava de esclarecer isto.»
E resolveu preparar uma partida, combinando com o Mário:
- Numa próxima sessão, se chegar algum espetador mais tardio, vende-lhe bilhete para a fila L.
Esta fila era a que era geralmente ocupada por Estorietas e companhia.
Um dos filmes que teve grande êxito em Ourém foi «Os dez mandamentos» de Cecil B. de Mill. A história de Moisés, salvo das águas, crescendo ao lado do imperador, encantava as meninas de Ourém. E realizaram-se várias sessões do filme.
Durante várias vezes, Estorietas e amigos permaneceram junto à porta à espera da borla, mas, com a lotação esgotada, a sua entrada era impossível. Até que numa das sessões derradeiras, o Joia abriu a porta e disse:
- Entrem agora. Vá, não façam barulho, não se tornem notados…
Como por encanto, a fila L ficou quase cheia, ocupando o Estorietas logo o lugar da coxia central. E ali estava ele, com a restante miudagem, a ver o Pernalonga e companhia, a assistir a apresentação do trailer do filme seguinte e a alguns documentários sobre o mundo português. O cinema estava muito composto, quase todos os lugares tinham sido vendidos.
Pouco faltava para se dar início ao filme da noite. O Estorietas sentiu uns passos na sua direção e que alguém parou a seu lado. Nesse momento, ouviu aquela vozinha:
- O senhor está no meu lugar…
Levantou a cabeça. Era ela. Tinha de ser ela, a Cietezinha e restante família, um batalhão com quatro ou cinco pessoas com bilhetes para o lugar que ele e os amigos ocupavam. Ficou sem saber o que fazer, um pouco atrapalhado, mas, como havia quatro ou cinco lugares disponíveis na fila, um ligeiro shift permitiu que todos assistissem ao espetáculo.
Ali ficou ele sentado ao lado daquela linda rapariga, a sua eterna rival, sentindo a sua respiração suave, mas com um estatuto desconfortável: estava ali ilegal, sem bilhete, prestes a passar por uma vergonha, enquanto ela, altaneira, arrogante, assistia impávida e serena ao filme. Que gozo iria ser no CFL. Nem teve concentração para ver o filme…
Mas as desgraças não se ficaram por aí…
O problema é que o Melo tinha assistido a tudo e, no intervalo, veio ter com eles acompanhado de um polícia.
- Mostrem-me os vossos bilhetes…
Foi aflição total. Nenhum daqueles miúdos tinha bilhete e o passo seguinte foi irem todos para a polícia com o objetivo de esclarecer a situação…


E agora, meus amigos? Será que, por culpa da Cietezinha, o Estorietas e os amigos ficam presos?

segunda-feira, abril 13, 2020

Uma joia de pessoa

Em Ourém as sessões cinematográficas ocorriam à quinta-feira e ao domingo. O Melo era o grande entusiasta da divulgação cinematográfica e cumpria com entusiasmo esse seu hobby muitas vezes suportando os prejuízos quando as assistências escasseavam. Acompanhavam-no o Mário na bilheteira e o Joia como porteiro.
Um dia, o Estorietas passava junto ao velho cinema. Exibia-se o filme «Rio Bravo», um clássico do Western, um filme que ele gostaria de ver. Reparou que, à porta do cinema, estavam vários miúdos da sua idade: o Luís Nuno, o Zé Rito, o Natureza. Coisa estranha. Que fariam ali?
Resolveu aproximar-se para investigar.
Não precisou de muito tempo. Poucos minutos depois, a porta abria-se e uma voz dizia:
- Entrem, entrem…
Aproveitou a boleia e, como por encanto, encontrou-se na sala do cinema onde alguns lugares vazios convidavam a sentar-se.
O Joia sorridente, mais parecendo um chefe de escuteiros, dizia:
- Sentem-se naquela fila que não tem ninguém. Já ninguém deve vir ocupar aqueles lugares.
Agachados, ocuparam os lugares indicados pelo porteiro. Pouco depois, estavam completamente embevecidos a assistir ao desenrolar da projeção…
O Estorietas estava entusiasmado e, quando chegou a casa, justificou a chegada tardia com uma ida ao cinema.
- E quanto gastaste? – perguntou a mãe.
- Nada. O Joia deixou-nos entrar.
Claro que, a partir daquele dia, o Estorietas começou a frequentar a porta de entrada do cinema e a cena repetiu-se pelo espetáculos seguintes…
Era um coração de oiro aquele Joia.


Mas estariam todos satisfeitos?
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...