sábado, maio 02, 2020

A grande manifestação

Mas era tarde demais.
Naquele momento, começou a ouvir-se no largo frente à casa roxa um grande ruído.
- Liberta a Ciete! – parecia que um grande grupo gritava.
O Estorietas ficou admirado. Chegou à janela que abriu, e deparou-se com uma manifestação de cerca de 20 miúdas: a Ceuzinha, a Mari’mília, a Teresinha, a Livinha, todas com um ar de poucos amigos. E, no meio delas, como sempre, o famigerado linguiça de Madrid.
«Foi ele! Foi aquele sacana! – pensou o Estorietas».
- Que é que vocês querem? – gritou lá para fora.
- Liberta a Ciete. Sabemos que está sequestrada por ti…
- É mentira. Estamos num projeto de pintura que levará a nossa terra à Glória…
- Estorietas, liberta a minha irmã, senão invadimos a tua casa.
- Nem pensem. Sumam-se ou chamo a GNR.
Fechou a janela e pegou no telefone enquanto a Ciete contemplava aterrorizada os seus gestos de louco. Do outro lado, ouviu-se:
- Aqui, posto da GNR de Vila Nova de Ourém. Diga em que podemos servi-lo.
- Fala o Estorietas. Por favor, ligue-me ao comandante. É muito importante.
A ligação não tardou a estabelecer-se. Do outro lado, ouviu a voz do comandante do posto.
- Então, meu caro Estorietas? Como passa? Há muito tempo que não falamos.
- Não há tempo a perder, comandante. Há uma manifestação contra o regime no largo em que se inicia a Rua de Castela. Exigem a libertação de uma tal Ciete, com certeza, uma perigosa comunista.
- Uma manifestação? Em Ourém? Não posso crer…
- Venha imediatamente, comandante. Oiça os urros deles…
E levou o telefone à janela abrindo-a para ele ouvir melhor.
O comandante compreendeu e imediatamente deu uma ordem.
- Guarda Ernesto, mobilize imediatamente vinte guardas e mande aparelhar os cavalos. Temos de intervir na Rua de Castela frente à casa do Estorietas.
- Às suas ordens, meu comandante.
No “atelier”, o Estorietas dizia para a Ciete:
- Não saias daí. Isto vai dar para o torto.
Voltou a abrir a janela e gritou lá para fora.
- Vão embora. Olhem que vão arrepender-se.
Mas a multidão de miúdos não desistia:
- Liberdade para a Ciete! Liberdade para a Ciete!
Pouco depois, os manifestantes ouviram um tropel ruidoso e, pelo largo, viram irromper um grupo de guardas da GNR, a cavalo, e com o comandante à frente que se apercebeu logo da situação.
«Mas não é possível! São miúdos. Aquele Estorietas em que estaria a pensar para falar numa manifestação contra o regime? O melhor é prendê-los e esclarecer tudo».
- Guardas, cerquem os manifestantes e conduzam-nos à prisão, sem violência.
Num instante, os miúdos com a Céu à frente, ficaram cercados pelos guardas e foram conduzidos à força para a prisão da GNR. Aos mais renitentes, os guardas forçavam com uma cabeçada dos cavalos, mas, garante-se, não houve qualquer violência naquela manhã.
No posto, o comandante desmontou, mandou abrir uma cela e ordenou:
- Vamos, entrem todos para aqui! Vamos ter de esclarecer o que se passou.
E mais uma vez, o João e a Teresinha foram parar à prisão da GNR. Desta vez, ele estava no meio de vinte miúdas aterrorizadas.
«Jejjjejjjjjejje. Nunca estive tão bem como neste momento. Espero que o comandante não as mande embora e eu possa consolá-las toda a noite».



Continua na próxima segunda-feira

sexta-feira, maio 01, 2020

O elogio do nu

Ao sétimo dia, o “atelier” do Estorietas já estava cheio de telas com a imagem da Ciete nas mais diversas posições.
Ele continuava a adorar contemplá-la e desenhá-la, mas, por vezes, ela sentia que ele se excedia e começou a pensar que a irmã talvez tivesse razão quando disse que ele estava louco, que não batia bem…
«Esta fixação em mim… é doentia».
- Estorietas, quando acabamos este projeto?
- Acabar? Tu não percebes que vamos ser famosos. Eu, o Rafael de Castela, tu, a Dama do Castelo… o nosso destino é continuar, continuar sempre…
- Mas como? Já me desenhaste de toda a maneira e feitio…
- Não interessa, a Arte é uma paixão que transcende o âmago da substância…
Ela ficou estupefacta e a pensar que ele já não dizia coisa com coisa. A irmã tinha razão: ele estava transtornado de todo…
- Cietezinha, tenho mais uma coisa para te pedir. De certeza, apreciarás o resultado…
Ela olhou-o surpreendida. Que mais poderia ele querer?
- Sabes que um ritual fundamental entre os clássicos era a representação do nu. Mas eu não vou por aí, não tenhas receio. Quero que poses para mim, coberta com aquelas sedas. Vamos recriar uma Odalisca de Hayez.
Ela afogou um grito de surpresa.
- O quê? Estás doido?
- Nunca estive tão lúcido. A nossa fama só atingirá o auge quando reproduzirmos as grandes obras dos clássicos. Só te peço que envergues aquelas vestes em seda. Vamos, trata de as vestir, eu nem olho…
- Nem penses…
Ela já não sabia como havia de escapar àquele louco. Olhou para a porta suplicante, mas ele interpôs-se quando tentou escapar.
- Ah! Ah! Tens de fazer o que quero. Vais ser famosa...
Mal sabiam que a Ceuzinha e a Teresinha estavam a espreitar pelo buraco da fechadura e tinham assistido a tudo.



Pobre pequena… nas mãos de um louco...

quinta-feira, abril 30, 2020

Um projeto de pintura

E a Ciete voltou ao “atelier” do Estorietas nos três dias seguintes o que começou a despertar a curiosidade das colegas.
Um dia, a Ceuzinha manifestou a sua estranheza.
- Ouve lá, minha irmã, por que razão não almoças comigo já há uns quatro dias…?
- Oh! Não sei se te posso dizer…
A outra ficou cheia de curiosidade.
- Claro que podes. É algo relacionado com o Estorietas?
A Cietezinha ruborizou-se muito.
- Sabes, temos um projeto artístico…
A outra quase que ficou sufocada, a tossir sem poder.
- Um projeto artístico?
- Sim, ele tem uma grande vocação para a pintura. É um artista maravilhoso. E eu tenho funcionado como a sua modelo privativa.
- Tu estás apanhada, minha irmã…
- Ah! Se tu visses os quadros que ele faz. Aquela Luz… Aquela Paixão que se desprende deles… é indescritível.
- Não posso crer no que estou a ouvir. Uma miúda tão ajuizada como tu a ser arrastada para um projeto por um louco. Por que tu sabes que ele não bate bem, não sabes?
- É a clarividência total…
- Olha, tem cuidado com os estudos. O Sr. Bragança, quando souber, não vai gostar nada.
- Ele não precisa de saber…
Foram para as aulas e a Ceuzinha foi logo contar à Teresinha.
- Sabes uma coisa? Ih! Ih! Ih! Ih! A minha irmãzinha anda metida num projeto de pintura com o Estorietas.
- Minha alma quase me salta pela boca – replicou a Teresinha. – Mas isso pode ser perigoso para ela. Ele, às vezes, passa-se.
- Temos de estar atentas e intervir se for necessário.
- Conta comigo, vou já falar com a Mari’mília e o João.
E, ao fim, de dois ou três dias, toda a miudagem sabia o que se passava na casa roxa do Largo de Castela.

quarta-feira, abril 29, 2020

A revelação do grande artista

Os dias foram passando e nada acontecia. O Estorietas olhava para a pequena, mas o ar dela fazia crer que não tinha recebido o seu bilhete. O grande artista já desesperava. Se ela não lhe respondesse quem lhe poderia servir de modelo? A Deolinda? A Mari’mília? Ambas esculturais, mas nenhuma tinha aquele ar de inocência, amargura e dureza que a Cietezinha tantas vezes ostentava.
Mas um dia tudo mudou…
Iniciava-se a aula de Matemática e o Estorietas notou que os seus livros tinham sido remexidos. Procurou avidamente e, entre eles, lá estava um bilhete.
«A resposta dela» - pensou.
Abriu rapidamente e leu:
«Estorietas
Fiquei surpreendida com a tua mensagem. Nunca pensei que pudesses pedir desculpa alguma vez pelos teus irrefletidos actos. Para além disso, convidares-me para um encontro excede tudo o que poderia esperar de ti. Mas resolvi dar-te o benefício da dúvida e proponho-te que o nosso encontro seja ao cimo da Rua de Castela, em local onde já não passam os nossos colegas do CFL, amanhã, após a aula de História e antes de irmos almoçar.
Ciete»
Nessa noite, o Estorietas não dormiu.
«E se isto corre mal? Que lhe vou dizer?».
Mas, no dia seguinte estava mais calmo. E mais seguro ficou quando a viu chegar ao cimo da Rua de Castela com os seus livros e a lancheira com o almocito.
- Bom, espero que tenhas uma boa razão para me fazeres passar por isto – começou ela.
- Tinha muita urgência em falar contigo. Sabes? Sinto que tenho uma alma de artista… e tenho-me dedicado à pintura. Fiz um atelier em minha casa e passo grande parte do meu tempo a pintar.
- Um ofício tão legítimo como qualquer outro. E que tenho eu a ver com isso?
- Até agora só tenho desenhado flores, natureza morta. Preciso de alguém que transmita calor, paixão aos meus quadros.
- Não me venhas com essa. Olhas sempre para mim com ar estranho quando as minhas notas são melhores que as tuas…
- Esse ar estranho que tenho é porque sinto que há algo em ti que poderá fazer com que me transcenda a mim próprio. Cietezinha, eu vejo em ti uma Adjani…
- O quê? Que é isso?
- Uma futura atriz do cinema francês muito bela. Vai ter vários óscars. Eu penso poder levar-te aos píncaros da fama.
- Não percebo.
- Cietezinha, queres ser a modelo para as minhas pinturas?
- O quê? Estás louco, Estorietas?
- Nunca estive tão lúcido como neste momento. Anda, acompanha-me ao meu estúdio. Podemos almoçar lá os dois e falar, depois voltaremos às aulas.
Pouco depois estavam no “atelier” do Estorietas. Ela notou como tudo estava bem delineado e ele mostrou-lhe alguns quadros que já tinha feito.
- São bonitas as tuas pinturas…
- Finalmente, um elogio.
Mais para a direita naquela sala com muita luz, estava um cavalete com uma tela em branco.
- E qual vai ser o teu próximo desenho?
- Queria desenhar o teu rosto. Tens um ar tão profundo… Mas, agora, é melhor almoçarmos. Traz a tua comidinha. Eu também tenho o meu almoço já arranjado.
Efetivamente, em cima de uma mesa, já estavam talheres e pratos para dois pelo que puderam tratar da barriguinha.
Pouco depois de terem comido, ele disse:
- Agora, senta-te naquela cadeira, põe o teu ar de menina de sangue azul residente no Castelo e deixa-me desenhar o teu rosto.
Ela obedeceu e ele esboçando durante cerca de trinta minutos o rosto dela.
- Pronto, já está. Podes vir ver.
Ela veio e ficou encantada.
- Eu… eu sou assim?
- Não tenhas qualquer dúvida. A tua beleza é insuperável.
- Estorietas, como estou bonita! Como conseguiste dar-me esta expressão?
- É arte, menina, arte e paixão. Podemos ficar famosos, Cietezinha. Eu, um grande pintor, um verdadeiro Rafael e tu a sua modelo.
- Olha, não divagues. Já estamos atrasados para as aulas.
- E amanhã posso contar contigo?
Ela hesitou um pouco, mas, por fim, disse:
- Sim, amanhã voltaremos ao teu estúdio…

terça-feira, abril 28, 2020

O apelo a Florbela

Ao fim da tarde, a Cietezinha chegou ao jardim da sua casa na Vila Medieval de Ourém e começou a rever a matéria do dia. Tirou os livros de Ciências e Matemática e colocou-os sobre uma mesa sem notar que um papel tinha caído do interior de um deles.
Apareceu a Ceuzinha.
- Olha! Caiu um papel.
A Céu pegou no papel e desatou a ler.
- Oh! Ah! Ah! Ah! Ah! Minha irmã vai ter um encontro…
- O quê? Não estou a perceber nada.
A Ceuzinha estendeu-lhe o papel e ela ficou toda ruborizada.
- Meu Deus! Aquele gato esfolado está maluco de todo…
- Minha irmã vai ter um encontro - dizia a Ceuzinha aos saltos - Vou já telefonar à Teresinha.
E foi para o interior da casa de onde ligou para a pensão Simões.
- Teresinha, tenho uma coisa louca para te contar. Blá… blá… blá…
Esteve ao telefone mais de um quarto de hora.
Cá fora, a Cietezinha parecia embevecida.
«Mas o que é que ele quererá de mim? Que hei de fazer? Florbela, por favor, ajuda-me».
E, como que por encanto, apareceu-lhe nas mãos «A mensageira das violetas» que abriu ao acaso e começou a ler.

Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem? 

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!... 

És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço... 

És aquele que vive e que morreu...
És aquele que é quase um outro eu...
És aquele que nem sequer conheço...

«É verdade. Nem o conheço, não posso duvidar das suas intenções».
E, depois de refletir um bocado, pôs-se a escrever uma nota em resposta à missiva do Estorietas. Dobrou o papel e guardou-o cuidadosamente na pasta.
Pouco depois, surgiu a Ceuzinha.
- Então, minha irmã, já sabes o que vais fazer?
- Não vou fazer nada. Nem lhe respondo.
- Fazes mal, parece um rapaz bem intencionado.
E tudo ficou assim. Quando foram para casa, a Ceuzinha pensava que a irmã não lhe tinha dito a verdade toda, por isso, iria dar-lhe mais atenção sem ela dar por isso…

segunda-feira, abril 27, 2020

A arte nasce dalguma paixão

No seu “atelier” de pintura na casa rosa da Rua de Castela, o Estorietas contemplava extasiado a sua última obra.
«Que beleza! Que definição! Mais luz que num Van Gogh…».
Mas não se sentia completamente satisfeito.
«Preciso de mais. Preciso de algo que humanize a minha arte. Estou a arder por algo indefinido… E se eu lesse um pouco de Pessoa?».
Um texto que tinha à mão tinha a designação de «Heróstato». Pegou nele e leu ao acaso:

«Para que a arte possa ser arte, não se lhe exige uma sinceridade absoluta, mas algum tipo de sinceridade. Um homem pode escrever um bom soneto de amor sob duas condições - porque está consumido pelo amor, ou porque está consumido pela arte. Tem de ser sincero no amor ou na arte; não pode ser ilustre em nenhum deles, ou seja no que for, de outro modo. Pode arder por dentro, sem pensar no soneto que está a escrever; pode arder por fora, sem pensar no amor que está a imaginar. Mas tem de estar a arder algures. De contrário, não conseguirá transcender a sua inferioridade humana.»

«E eu ardo, porque não lhe pedi perdão… - pensava o Estorietas.»
Surgiu-lhe uma ideia, mas hesitou antes de avançar com ela.
«Se calhar, ainda está zangada comigo, mas era a pessoa indicada para me servir como modelo…».
Sentou-se numa cadeira e com um ar desesperado passou a mão pela cabeça. Estava visivelmente nervoso. Tal e qual um artista no momento em que a ideia explode.
«Tenho de falar com ela? Mas como? Virar-me-á as costas, não me ouvirá… Já sei, vou escrever-lhe um bilhete e ponho no meio dos livros dela…».
No dia seguinte, no CFL, a primeira aula era de Ciências Naturais. Quando a DRa. Lurdes Moreira mandou sair os alunos e abandonou a sala, o Estorietas deixou-se ficar para trás. O lugar dela era na primeira fila, o mais à direita, mesmo junto à porta. Um alvo fácil…
Ia nervoso, bastante nervoso. Se fosse apanhado a fazer aquilo, ainda diziam que lhe estava a espiar os apontamentos. Mas teve sorte. Abriu um livro e deixou lá o bilhete.

«Cietezinha
Espero que já me tenhas perdoado pelo meu comportamento no salão da banda. Tenho um pedido para te fazer, mas para isso preciso de me encontrar a sós contigo. Acredita, sou um rapaz honesto, as minhas intenções são as melhores. Por favor, diz-me um sítio onde nos possamos encontrar.
Sempre amigo
Estorietas»

Ao sair, ainda olhou para todos os lados. Não vinha ninguém. Respirou aliviado e foi para o recreio onde já era estranhada a sua ausência.
- Anda aqui marosca – resmungava o Amândio
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