sexta-feira, novembro 29, 2019

Encontros inesperados

Depois da apanha da azeitona, andava a passear pelos campos de Peras Ruivas com uma amiga. O silêncio, avassalador, só era quebrado pelo chilrear dos pássaros e pelas nossas vozes. O ambiente estava maravilhoso, convidativo…
- Que bela tarde para um passeio.
- O Sol brilha com uma intensidade que faz com que a vida pareça mais luminosa…
- Ouvem-se os pássaros a chilrear…
- Oh! Que beleza! Que sítio maravilhoso para os ouvir…


E a conversa prosseguiu naquela significativa toada, prolongando-se o passeio pelo campo entre os raminhos de oliveira entretanto abandonados depois da apanha. A certa altura, baixei-me, apanhei um ramo e virei-me para a garota:

- Ofereço-te este ramo como prova de…
Não pude continuar. De repente, de trás de uma árvore, apareceu o ti’ Guilherme, um sujeito ultra simpático, maroto, mas que gostava de beber o seu copito. Vinha acompanhado da sua mula de estimação, um magnífico exemplar da raça. Às costas trazia uma enxada, e uma cabaça, onde guardava o precioso néctar de Baco, pendia-lhe do cinturão. O seu olhar denunciava que já não estava sozinho.
- Então o que é que os meus amigos fazem por aqui?
A minha amiga não se conteve:
- Ó ti’ Guilherme, já anda a passear duas mulas?

quinta-feira, novembro 28, 2019

A aula de Geografia no CFL

Recordo o encanto das aulas de Geografia com os mapas pendurados e estendidos ao longo da parede da sala em torno do quadro preto.
Naquele dia, o Dr. Armando resolveu fazer uma revisão da matéria e procurou na caderneta alguém para ilustrar a localização de diversas regiões.
- Venha cá o Amadeu…
Amadeu… um nome que me lembra sempre o concerto para piano nº 21 de Mozart. Mas ali não era uma aula de música. Era um interrogatório que o nosso colega, mais conhecido por Trinca-Espinhas, iria sentir na pele.
Cabe dizer que o distintíssimo professor para apontar coisas no mapa utilizava um varão com mais de 2 metros de comprimento que algumas vezes vi descer sobre a cabeça dos alunos com inegável força e irascibilidade.
- Amadeu, localiza-me aí no mapa onde fica a Venezuela…
O Trinca-Espinhas ficou branco como a cal.
- A Venezuela, sôtor? – e olhava com terror para todos os mapas sem notar onde ficava aquele país. Acredito que os próprios nervos suscitados pelo interrogatório o levassem a não ver nada.
De repente, pareceu lembrar-se e apontou para o mapa da Ásia para uma localização muito perto do Paquistão.
- É aqui…
O professor olhou-o furibundo e deu uma cacetada no mapa com o varão.
- Então não vês que é ali? – disse a espumar de raiva, apontando o mapa da América.
A menina do Castelo pediu para falar, esfregando as mãos de tanta sabedoria.
- Eu sei onde é, sôtor.
O varão saiu disparado e bateu com força em cima de uma carteira fazendo a Borda d’Água dar um salto e exclamar:
-Kakakakkakakaka…
- A menina cale-se. Responda quando eu lhe perguntar. – gritou ele para a miuda do Castelo.
A pobre miúda encolheu-se e o Dr. Armando voltou a virar-se para o aluno em avaliação.
- Vê-se que não estudas nada, malandro. Sabes ao menos onde fica Lisboa?
- Sim, sr. Professor, é lá que é o estádio da Luz, não é?
- Grrrrrrrr! O estádio da Luz… esse covil de lampiões. Devia ser banido do cimo da terra. Ah! E localiza-me, no mapa que apontaste antes, as nossas fortalezas de Goa, Damão e Dio…
- Perdão, sr. Professor, isso já não é nosso. Foi ocupado pelas forças indianas.
- Esses malvados… Estás muito informado para quem erra tanto em Geografia… Sim, foram ocupadas por eles, por esse Neruh de uma figa. Mas agora é que eu quero ver quando os chineses lhes caírem em cima. Quero ver como vão ser corajosos e se batem com eles que são milhões.
E ficou a falar sozinho e enervado acerca da ocupação indiana.
- Eramos um país tão grande… e vamos perder tudo o que conquistámos. O nosso império… porque, vocês, coiotes, não querem lutar para o defender. O vosso dever seria DEFENDÊ-LO ATÉ À MORTE!
Deu com o varão em cima da secretária que estranhamente ficou incólume e saiu, afirmando já de costas:
- A aula terminou
Toda a gente respirou aliviada… Que se lixe o Império! Ao menos ficámos vivos…

quarta-feira, novembro 27, 2019

E os livros também ajudam a mudar a História





Um dos locais mais importantes para encontrar os primeiros livros que me ajudaram a formular o pensamento acerca da realidade em que me inseria foi uma cooperativa livreira denominada «Livrelco». 
Há imensa literatura acerca da sua atividade pelo que me limito a enunciar a sua importância tanto mais sentida quanto, em momento de invasão pelos esbirros do sistema, estes apreendiam tudo por mais inocente que fosse, mas muitas vezes não se apercebiam que havia esconderijos no interior da livraria e muitas obras eram salvas. 
Em Fevereiro de 1972, a Livrelco foi encerrada pela PIDE/DGS, mas já tinha cumprido muito bem a sua missão. Todos os que passaram por lá sabiam escolher um autor, procurar um livro, ter uma palavra sobre a sinistra ditadura que nos envolvia...

terça-feira, novembro 26, 2019

E um dia a suversão chegou ao nosso meio

A vida dos amigos do Granada não era apenas estudar e brincar...
O Félix, o ciganito e o Mestre Graça encarregaram-se de nos virar a cabeça para outra realidade bem dura. A presença constante da polícia de choque na escola demonstrava que havia algo de estranho. E os livros que líamos diziam tanto e era tão fácil chegar-lhes!
Um dia, um amigo do Granada encarregou-se de me virar para a subversão. E, depois de um intensa sessão em que me apresentou uma edição clandestina do Capital, ofereceu-me este belo livro: «Poemas de Guerra». Dele, aqui fica um poema.



A MORTE DO SOLDADO

Sento-me na tua cama
vejo-te desmembrado
digo palavras mansas
tu começas a chorar.
Interiormente
as minhas lágrimas
voam em baionetas.
Mas digo palavras mansas
sorrio.

Passa-se uma hora
passa-se um homem.

Morres.

Nada dizes
choras os vinte
que nunca serão vinte e um.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Contra a fábrica - Económicas 70



Passeios, farras e patuscadas...
Assim parecia ser a vida dos amigos do Granada. Por vezes, um dos nossos trazia aqueles maravilhosos chouriços que degustávamos no Gordo (se não me engano Conimbricense) com queijo e imperiais à mistura.
Depois, quando chegávamos ao ISCEF, pelos corredores fervilhava intensa actividade contra o sistema. 
E assim ganhávamos forças para a Revolução... porque esta não se faz sem ideias nem com exércitos esfomeados.
Apreciem este belo exemplar que ainda conservo e que, pelos sublinhados, parece que li imensas vezes. 
Faz-me lembrar o Mestre Graça a interromper e interpelar os professores naquelas horrorosas aulas de Direito e Finanças. 
Foi elaborado pela Associação de Estudantes, na altura composta por muitos elementos que mais tarde viriam a juntar-se no MES. Belos tempos...
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