sexta-feira, junho 05, 2020

Uma equipa que ganha / um busto que desaparece

O jogo contra o Tomar, «os da ponta do rabo branco», mais uma vez foi épico. O Atlético alinhou com o Mário que alternou na baliza com o Fonseca, o Abel, o Rui Costa, o Piriquito e o Rui Prego. A famosa «Equipa Maravilha» que se dava ao luxo de ter um Pintassilgo a suplente. Ao princípio estavam nervosos e os outros muito rápidos, tanto que, em determinada altura, o Carreira atirou o Abel contra a cercadura do campo que se partiu e caíram os dois cá para fora.
A multidão puxava pela sua equipa.
- A-tlé-ti-cu! A-tlé-ti-cu!! A-tlé-ti-cu!!!
Sentados na bancada lateral, o João e a Deolinda, de mão dada, quase não davam pelo jogo, tão concentrados estavam um no outro. O Estorietas estava mais para a esquerda, perto dos balneários com outro grupo de amigos.
 Certa altura, a Deolinda apontou o atelier do Bernardino.
- Estás a ver, João?
- A ver o quê?
- Do outro lado. O busto…
Efectivamente do outro lado do campo, na varanda do atelier, o busto do Bernardino, uma representação perfeita do autor, quase parecia assistir ao jogo.
- João, aquele homem é que é o verdadeiro artista. Quero aquele busto para mim, para a minha cabana…
- O quê? Estás louca?
- Nem por sombras. Nunca estive tão lúcida. E já sei quem vai ser responsabilizado pelo desaparecimento do busto. João, tu vais ajudar-me.
Estava tão chegadinha a ele, tão entrelaçada, tão doce que ele não pôde recusar.
- Está bem. O que queres que faça?
Foram interrompidos por formidável manifestação de júbilo. O Abel, o grande defesa do Atlético, acabava de marcar um golo que virava o resultado. Pela primeira vez na partida, o Atlético estava a ganhar.
O João levantou-se a gritar a apoiar a equipa. Nessa altura jurou que, toda a vida, apoiaria qualquer equipa cuja designação fosse Atlético. Mas a rapariga não o deixou embriagar-se na comemoração. Puxou-o para ela e segredou-lhe:
- Quando isto acabar, deixamos sair todos, tu saltas lá acima, tiras o busto e levamo-lo no carro para a cabana. E eu deixo algo a incriminar o Estorietas…
- JJjjjejjejjjjejjjj. O busto pesa muito.
- Não sejas maricas. Eu ajudo a transportá-lo.
Pouco depois, o jogo acabava com uma gloriosa vitória do Atlético. A multidão saiu satisfeita. Encolhidos, a um canto do campo, o João e a Deolinda esperaram que o campo ficasse vazio, que saíssem os jogadores e dirigentes, que alguém fechasse a luz. Depois ele saltou ao atelier do Bernardino, retirou o busto que pesava a valer, pois era de madeira maciça, saltou com a rapariga o muro que os separava do exterior e enfiou-se com ela dentro de um carro que, pouco depois, os conduziu para fora de Ourém. No local do busto, ficava uma coisa estranha, parecia um pedacito de madeira com papel, mas neste podia ler-se claramente um nome: «Estorietas».

quinta-feira, junho 04, 2020

Planos para uma noite em Ourém

A cabana reconstruída estava uma maravilha. Situada no meio da natureza, transformava qualquer momento em algo muito especial.
Enquanto se dirigia para lá, o João, recordando a imagem da linda rapariga, cantarolava:


Tenho fome tenho sede, não é de pão nem é de vinho, tenho fome de um abraço, tenho sede de um beijinho.


O João adorou a cabana, adorou o almoço e adorou a companhia.
Depois de comerem, sentaram-se no exterior em cadeiras que baloiçavam e o rapaz sentiu a tentação de lhe pegar na mão, mas conteve-se.
- Estás a gostar deste dia, João?
- Sem dúvida, nunca pensei desfrutar de um momento tão bom e numa companhia tão doce.
Foi ela quem lhe tocou na mão e, pouco depois, estavam de mão dada.
- Achas que sou uma companhia doce?
- Doce, bela, um encanto…
- E como interpretas que alguém me recuse?
- Mas… eu não recuso a tua companhia.
- Tu não, mas aquele teu amigo…
- É um parvalhão. Não sabe o que perde, Jejjjejjjjjejje
- Mas fez com que me sinta muito magoada.
- Ele magoou-te?
- Tanto! Tanto! Tanto!
E levantou-se de um salto que até assustou o rapaz.
- Anda comigo. Vou mostrar-te…
Levou-o para o interior da cabana e mostrou-lhe duas ou três telas. Todas com animais horríveis com dentes ameaçadores.
- Olha o que ele me fez. Pedi-lhe várias vezes para me desenhar e fez estes animais horríveis. Não achas que tenho razão para o odiar?
- Que horror! Como é que alguém pode fazer uma desfeita como essa a uma miúda linda como tu?
Ela encostou-se-lhe ao peito e aproximou a cara da dele.
- Não me farias isso, pois não, João?
O rapaz sentiu-se fraquejar, sentiu que começava a ser dominado por aquele encanto soberbo.
- Deolinda, eu não sei desenhar – foi o que conseguiu articular.
- Mas felizmente não me rejeitas…
E o João sentiu a força do amor daquela linda miúda. Estava encantado.
- Deolinda, temos de encontrar-nos muitas vezes.
- Sempre que quiseres, meu amor. Mas temos de ter cuidado com o Estorietas…
- É um cretino. Não conseguirá fazer nada – garantiu o João.
- Se calhar, devíamos preparar-lhe uma partida…
- Ouve, não vais fazer mal ao meu amigo…
- Só uma pequena partida…
- Mas o quê?
- Ainda não sei. Depois pensaremos. Agora, diz-me uma coisa: gostas de ver hóquei em patins?
- Gosto, porquê?
- Eu aprecio muito e vai começar o campeonato. O Atlético agora joga no antigo campo do Juventude donde se avista o atelier do Bernardino. Hoje é contra os de Tomar. Queres ir ver o jogo comigo?
- Claro…
- Então, encontramo-nos em Ourém logo à noite antes do jogo.


O João, pateta como sempre, vai cair no jogo da beldade? Trairá a sua amizade com o Estorietas? 

quarta-feira, junho 03, 2020

A integração no grupo

Viu que a rapariga lhe sorria.
«Parece um anjo. Quem diria que me espetou a forquilha no traseiro?»
- Ansiava por poder desculpar-me daquele dia na minha cabana…
- Mas está viva? Como escapou?
- Naquele dia, apenas desmaiei. Quando voltei a mim, fui ter com os meus familiares que me socorreram. Somos um grupo muito unido. Tanto que já reconstruímos a cabana…
- Mas a polícia não voltou a procurá-la?
- Não houve queixa contra mim. No fundo que mal fiz eu? Era apenas um momento de paixão louca a que o Estorietas não conseguia corresponder.
- Vejo que ele não a merecia.
Ela colocou a mão no braço dele.
- Esqueçamos isso. Felizmente você está bem e já esqueceu a agressão a que o sujeitei…
- Tudo esquecido – disse o João sorridente. – Estou encantado por a conhecer. Aliás, acabou de me salvar a vida. Quer vir até ao café?
- Hoje não posso. Tenho de regressar a casa…
- E amanhã? Por que não aparece amanhã no Avenida? Apresentava-a a todos os meus amigos…
Combinaram encontrar-se no dia seguinte na esplanada do Avenida. E, pelas onze horas, um pequeno grupo falava animadamente quando ela ali chegou. O João levantou-se, pegou-lhe delicadamente na mão e anunciou:
- Meninos e meninas, esta é a Deolinda uma amiga que ontem me salvou e vida…
E contou rapidamente o que lhe acontecera na noite anterior. Todos ficaram muito admirados com a agressão da Teresinha.
- Não consigo acreditar – dizia a Livinha. – A Teresinha não é pessoa para maltratar ninguém…
- Possivelmente excedeste-te. Ela anda atrapalhada a estudar para exames – informou a Leninha. – Também me custa a crer nessa agressão por parte dela…
- A verdade é que o encontrei num estado lastimoso – afirmou a Deolinda. – Mas ela já não estava à janela. Acredito que não se tenha apercebido das consequências…
- Olha, Deolinda, não interessa. Oportunamente ela esclarecerá tudo. Agora, és nossa amiga. Queres vir ao nosso bailarico desta noite no sótão do Luís Filipe?
Ela ficou encantada com o convite.
- Ainda agora os conheci. Não sei se deva aceitar…
- Tens de vir – acrescentou o João. – Vais ver que todos te tratam bem.
Ela sorriu, mas de repente ficou tensa a olhar na direção dos Correios. Pelo passeio, vinha uma figura conhecida.
O Estorietas começou a atravessar a rua. Ainda não a tinha visto, mas, mal olhou para a esplanada, virou a cara, fez um esgar de desprezo e mudou de direção como se fosse para o Central.
«Será que perderam um amigo? – pensou a Deolinda».
À noite, a rapariga foi uma espécie de rainha do baile. Todas as atenções dos rapazes eram para ela e o João foi a pessoa que mais tempo passou a dançar com ela. Estranhamente, O Estorietas não apareceu no bailarico, mas pouco pensaram nisso.
Já eram onze da noite quando a rapariga disse para o João.
- Devo ir-me embora. Amanhã não queres visitar a minha cabana? Podemos almoçar por lá…
- Lá estarei – respondeu o João ansioso por avançar.


E agora? Estará o João em perigo? Terá a Deolinda alguma ideia em mente?

terça-feira, junho 02, 2020

Aparição

Mal o Zé Manel sentiu que a Teresinha estava incomodada, deixou de tocar e foi direito ao Avenida, deixando o João sozinho. Este continuou a cantar mesmo sem acompanhamento e, de repente, sentiu que um corpo pesado, mas não muito duro, lhe caía em cima.
O problema é que algo se rasgou e começou a sentir-se envolvido por uma massa branca totalmente pulverizada.
- Pffffff! Que porcaria é esta?
Tentou afastar aquilo de cima, mas não foi capaz. O nariz começou a ficar tapado e a não conseguir respirar, a boca ficou cheia de uma massa branca pulverulenta, os olhos estavam incapazes de ser abertos já que cobertos daquele pó horroroso.
Começou a sentir-se atrapalhado e batia com toda a força com a mão na cara para sacudir a massa horrorosa que parecia sufocá-lo. No entanto, a impotência começou a dominá-lo.
O João desesperava.
«Parece que não escapo desta. O que aquela malvada me fez… a minha doce Teresinha».
A pobre rapariga, alheia a tudo aquilo, continuava a preparar-se para os exames.
E foi quando o João já pensava que ia morrer calçado que uma voz muito doce soou ao seu lado:
- Precisa de ajuda?
Arfou, fez todo o possível para mostrar que estava o pior possível. A dona da voz doce puxou um lenço e começou a limpar-lhe o rosto. Mas os progressos eram lentos e o rapaz sentia-se cada vez mais com falta de ar.
Ela sugeriu:
- Vamos ao chafariz e eu retiro-lhe a farinha com água.
Farinha… então a malvada da Teresinha tinha-lhe atirado com um saco de farinha acima…
A providencial ajuda serviu-lhe de apoio para irem até ao largo do chafariz frente à casa do Administrador onde ainda funcionava a alfaiataria do Sabino e a Anita pôde assistir ao estranho espetáculo de uma rapariga muito bonita a lavar a cara do João e a retirar-lhe a farinha que tinha enfiado por todos os buracos da cara.
«Se calhar meteu-se nos copos – pensou e não ligou mais ao assunto.»
Entretanto, o João começou a respirar com mais facilidade e a sentir-se melhor. E houve um momento que pôde ver a sua salvadora… e teve um arrepio.
«É ela… é ela.»

segunda-feira, junho 01, 2020

Serenata numa noite de quase Verão

Era uma noite quente de quase Verão. A miudagem de Ourém encontrava-se no café e dava longos passeios pela Avenida e até ao jardim frente à Câmara. Entre eles estava o João, mas um João um pouco triste, pois, havia uma série de dias que a Teresinha não se juntava ao grupo, passando todo o tempo a estudar para exames.
Nessa noite, o Zé Manel trouxe a sua viola e uma ideia mirabolante ocorreu de imediato ao João.
- Zé, anda comigo vamos fazer uma serenata a uma miúda…
- Pá, eu não te consigo acompanhar. Só posso tocar «A brasileirinha».
- Não faz mal, dás uns acordos espaçados e eu canto. Basta que sigas o mesmo ritmo.
O Zé Manel lá se dispôs e, com o seu ar sonolento que fazia lembrar o Bob Dylan, acompanhou o João.
- Espera, ao menos ensaia um pouco…
- Pá, não me vou pôr a cantar no meio desta malta toda. Pensam que estou maluco.
- Então, vamos até ao pé da escola das meninas e, lá, podes erguer a tua voz.
Assim fizeram. Afastaram-se do grupo com uma pequena desculpa e, pouco depois, o João cantava:
«O meu desejo / é dar-te um beijo / é ter desejo / de te beijar…»
O rapaz nem cantava mal, pode-se garantir, mas nunca sentira aquele chamamento para a arte de cantar. A verdade é que, com tanta afinação, o Zé Manel em pouco tempo acertou o acompanhamento e, pouco depois, dizia:
- Bom, parece que funciona. Aonde vamos então?
- Frente à casa da Teresinha…
- Ena. Perdeste o juízo ou quê? Olha que ela tem uns irmãos mais velhos e a Céu também não me parece para brincadeiras.
- Que é que pensavas? Querias que te acompanhasse a Alcanena, não?
- Essa história da miúda de Alcanena é invenção tua. Nunca existiu tal miúda. Olha que, se a coisa der para o torto, piro-me logo. Não quero nada com o Luís ou o Taito.
- Vamos lá, vá… - dizia o João já agitado.
E dirigiram-se para a frente da pensão Simões que ficava na Avenida quase em frente ao cineteatro. Nesse dia, não havia sessão de cinema pelo que praticamente não se via ninguém na rua.
E, pouco depois, o João satisfazia o frémito do seu coração e elevava a sua voz numa canção lancinante procurando que a Teresinha aparecesse à janela.
Lá dentro, a pequena esforçava-se por estudar.
«Bolas! Isto está difícil. Por que hei de ter exames e os outros todos a passear?»
De repente, ouviu aquilo…
«Estranho! Alguém parece estar a cantar na rua. E tem acompanhamento. Que se passará?»
Foi até à janela e abriu-a. E foi então que viu o cantor e acompanhante e quase se sentiu sufocar. Lá fora, estava o seu amigo João, um verdadeiro pinga-amor, a cantar uma balada conhecida, sendo acompanhado pelo Zé Manel.
Ao princípio, não conseguiu balbuciar palavra. Depois, pensamentos preocupantes começaram a invadi-la: que iria pensar a família? Os vizinhos? Os outros amigos? E arranjou força para falar:
- João, o que é que te deu?
Ele nem respondeu. Continuou a cantar e a Teresinha notou que já outras pessoas chegavam à janela.
«Que irão pensar de mim? Eu, uma menina sempre ajuizada…»
E gritou lá para baixo:
- João, para com isso ou chamo a polícia.
Mas ele não se calava. A balada parecia ser interminável e ele arranjava sempre forma de repetir, repetir…
A miúda sentiu-se afogueada. Como poderia acabar com aquilo?
Olhou para o lado e viu um saco de farinha que devia pesar uns vinte quilos. Ainda avisou:
- João, para com isso ou arrependes-te.
Foi inútil. Ela não encontrou outra solução. Pegou no saco e atirou-o para cima do João, fechando de imediato a janela. Como por encanto, o silêncio voltou a Ourém
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