sábado, março 14, 2020

A arte que trouxe o demónio ao convento

Naquela manhã, cumpridas as obrigações religiosas, a Gracelinda sentia-se maravilhada. Já havia passado um mês sobre a sua entrada no convento e tudo lhe parecia diferente da sua primeira e falhada experiência.
«Será da companhia do Pepe? Estas irmãs são muito tolerantes…».
Efetivamente, o cãozinho partilhava a cela com ela e todos os dias davam enormes passeios nos frondosos jardins do convento.
«Mas falta-me qualquer coisa. O que será?».
Nesse momento, o Pepe farejava por todo o lado na sua cela de 20 metros quadrados e, a certa altura deteve-se diante um móvel.
- Béu, béu…
- Que queres tu, lindo menino?
O cãozito apontava para uma gaveta como que a dizer-lhe para a abrir. Ainda hesitou, mas, pouco depois, como que levada por uma inspiração divina, abriu a gaveta e deparou com algo que a maravilhou.
- Material para desenhar. Que maravilha!!!
Imediatamente se sentou e começou a fazer alguns rabiscos. Ao lado dela, o cãozito contemplava-a embevecido. É que alguém parecia conduzir a mão dela.
«Estas paredes são demasiado tristes. Vou cobri-las com os desenhos que a inspiração deste convento me traz».
E desenhou, desenhou, desenhou… Depois sombreou.
Ao fim de três horas, tinha produzido sete magníficas obras. Contemplou-as encantada.
«Nunca me julguei capaz de fazer coisa tão bela. É sem dúvida o sagrado na sua mais pura expressão».
Decidiu pendurar os desenhos na parede para a cela ficar mais alegre.
«Vão acompanhar-me nas minhas orações do dia a dia. Nunca me senti tão bem».
Naquele momento, a irmã Sandrine veio chamá-la para o almoço e, para isso, abriu a porta da cela.
- Irmã Gracelinda, está na ho…
Não disse mais nada. Levou a mão à boca, proferiu algo ininteligível apontando os desenhos e caiu no chão desmaiada.
A Gracelinda ficou assustadíssima.
- Que se passa? Dir-se-ia que não gostou dos meus desenhos. O melhor é guardá-los.
E apressadamente recolheu os desenhos e escondeu-os. Depois, prestou assistência à irmã Sandrine. O Pepe já lhe lambia a cara e ela abriu os olhos, espantada.
- Aquele homem… Aquele homem a apontar… Eu vi o diabo naquela parede.
E desatou a fugir pelo convento fora. A Gracelinda resolveu calar-se e não mostrar mais a sua arte. Sorrateiramente, dirigiu-se ao refeitório e, pouco depois, tentava acalmar a irmã Sandrine sugerindo-lhe que ela tinha tido uma alucinação demoníaca por já não se confessar há muito tempo….


Vejam... vejam só os desenhos que a Gracelinda fez depois de entrar no convento. Que apelo seria este?



sexta-feira, março 13, 2020

Dois olhares

O comboio rodava entre árvores frondosas e os sinais das patas de um ou outro animal extraviado nos campos que rodeavam Ourém.
Balouçado pelos solavancos da carruagem, alheio às conversas de outros passageiros e ao barulho das portinholas desengonçadas, o senhor Marques dormitava a um canto, deixando que a poeira que entrava pela janela fosse formando nas pregas do seu melhor fato pequenos sulcos amarelos.
No banco em frente da velhíssima carruagem, cujos forros interiores estavam comidos pelo Sol, pelo vento e pela poeira, a Gracelinda pousava os lindos olhos azuis na figura de seu pai.
A posição que cada um ocupava poderia ser tomada como símbolo dos seus estados de espírito: a Gracelinda ia sentado na direção da marcha do veículo, de frente para as terras que pareciam vir ao seu encontro – quer dizer, para o futuro; ia entrar secretamente num convento como forma de escapar a uma perseguição implacável do comandante do posto da GNR de Ourém. Ao seu lado, o seu cãozinho Pepe dormia e jurava que nunca largaria aquela menina que era tão boa para ele.
O senhor Marques contemplava a longínqua linha do horizonte que ia ficando para trás – dir-se-ia que olhava para o passado para as horas maravilhosas que aquela filha lhe proporcionara. De futuro, já não a levaria ao Café Central aos domingos para ela se distrair com a televisão, parecia que uma parte da sua vida tinha acabado naquele momento…
E a reclusão da Gracelinda durou cerca de um ano.



quinta-feira, março 12, 2020

Flores que abrem e embriagam

Os guardas chegaram a Peras Ruivas quando o Sol já se escondera atrás do horizonte e as estrelas começavam a pestanejar no céu. A lua ficou só no azul celeste ornado de estrelas e a sua luminosidade cada vez mais dominava a paisagem. Era noite de Lua cheia.
O Estorietas e a sua amiga Mari’mília viram-nos passar a pé e dirigir-se a uma taberna perto da Igreja.
- Que engraçado! Temos vigilância policial. Daqui a uns cinquenta anos vamos ter saudades destes tempos.
Sem entrarem na taberna, ouviram, cá fora, tudo o que se tinha passado. E, quando eles conseguiram uma boleia para Ourém, resolveram ir até ao sítio onde tinha ficado o comandante e o outro guarda.
 Passaram sobre um outeiro. Aqui e além, os «saguaros»(1) abriam os seus braços como enormes e grotescos seres humanos.
- Olha, Estorietas! – exclamou a rapariga. – As flores começam a abrir.
Assim era, com efeito. Como se obedecessem a uma misteriosa ordem, os «saguaros» abriam as suas lindas flores brancas. O silêncio do bosque parecia invadido por um crepitar ténue, produzido por milhares de flores que se abriam sem interrupção. Sob a difusa claridade da Lua, o bosque de «saguaros» parecia cobrir-se com rapidez de grandes e aromáticos flocos de neve. A brisa vinha impregnada de um perfume embriagador que, por vezes, se tornava mais denso e sufocante.
- Oh! Estorietas! – exclamou a rapariga – Que maravilhoso espetáculo.
Ele não respondeu. Os seus olhos luziam como duas brasas, perturbando a rapariga. Esta afastou os seus e deixou-os vaguear sobre o bosque que continuava a cobrir-se de um manto de lindas e níveas flores. O perfume era cada vez mais forte. Uma doce embriaguez invadia a rapariga, provocando-lhe um torpor voluptuoso.
- Ai, Estorietas! – disse ela, a rir. – Tenho a impressão de que me estou a embriagar. Não haverá perigo de morrermos asfixiados?
- Não. Já presenciei muitas vezes o florescimento dos «saguaros» e nunca ouvi dizer que alguém morresse asfixiado.
-Vou ver.
Ela avançou na direção das plantas, mas uma cova no caminho fez com que se estatelasse. Ele ajudou-a a levantar-se. As suas mãos fecharam-se sobre a graciosa cintura da rapariga e, através das roupas, o Estorietas percebeu um estremecimento nervoso do corpo da jovem.
E foi nesse momento crucial que o Estorietas viu os dois guardas sentados a serem ameaçados pela serpente a uma distância de uns vinte metros.
- Olha! Ali!
Ela olhou na direção apontada. Rapidamente puxou a saia, mostrando a sua perna bem torneada e retirou uma faca longa de uma funda que trazia colada à perna. Num instante apontou e atirou a faca. A cabeça da serpente foi pelos ares e puderam ver como os dois guardas respiravam aliviados…


(1)«saguaros» - O saguaro faz parte da família Cactaceae, sendo nativo da região do Deserto de Sonora, que abrange parte do México e Estados Unidos. Trata-se de um cacto colunar, com ramificações em forma de candelabro, espinhos curtos e grandes flores brancas e tubulares, com antese noturna. As flores abrem durante a noite produzindo um perfume inebriante. Foram trazidas para a região de Peras Ruivas pelo Estorietas depois de uma viagem virtual àquele deserto, mas a ação do homem fez que, pouco a pouco, fossem desaparecendo. Os campos de Peras Ruivas já não são inebriantes…

quarta-feira, março 11, 2020

O despiste

Os guardas partiram para Ourém fulos e o comandante ameaçava com os mais tenebrosos projetos de vingança.
- Esse cão vai para o canil municipal e todos os dias vou lá picá-lo com uma vara. Será torturado até à última. Vai arrepender-se de ter nascido.
Mas o azar dos GNR ainda não tinha acabado naquele dia. Ao passarem perto de um campo de «saguaros», junto à povoação de Peras Ruivas, o condutor sentiu que o carro lhe fugia ao mesmo tempo que ouvia o estoiro de um pneu. De um momento para o outro, o jeep enfeixou-se numa árvore, tendo-lhes valido o facto de não irem muito depressa. Mesmo assim, o comandante, que viajava ao lado do condutor, foi cuspido e as suas calças ficaram desfeitas.
Quando saíram do jeep, contemplaram os estragos.
- E agora? Que vamos fazer? – perguntava o guarda Lourenço.
- Temos de ir para Ourém a pé – respondeu o comandante sem se aperceber da figura ridícula em que estava.
- Nesta figura? – perguntou o guarda que tinha os fundilhos das calças rotos. – Não podemos aparecer assim em Ourém. Todos se ririam de nós.
O comandante olhou para o guarda Lourenço e para o outro que não tinha qualquer mazela.
- Vão vocês. Está a fazer-se noite. Por hoje esquecemos a miúda e o cão. Eu e o guarda Ernesto ficamos aqui, enquanto vocês chegam a Peras Ruivas a pé e pedem a alguém que os leve a Ourém. Mobilizam dois guardas para nos trazerem roupas e virem buscar.
Os dois soldados partiram, o comandante e o outro soldado dispuseram-se a esperar e sentaram-se no chão junto do carro à espera de ajuda. O tempo, que parecia infinito, foi passando. A noite caiu…

*

Junto a um cato, os dois guardas esperavam pacientemente que chegasse ajuda. Custava-lhes saber o modo como estavam vestidos, pois iam ser, com certeza, o objeto da risota dos seus camaradas. Porém, estava em causa o prestígio dos homens daquela corporação e dar uma lição à menina e ao cão era o objetivo mais importante. Desta maneira se esqueceria aquele incidente.
De repente, os dois guardas ouviram um assobio pouco familiar, acompanhado de um estranho rastejar. Assustados, olharam em volta, descobrindo uma enorme serpente cascavel que se aproximava. Os dois homens olharam-se receosos. Encontravam-se indefesos, sem armas, sentados no chão quase sem se mexerem. A serpente ia avançando, lentamente…. De repente, parou, ergueu-se e repetiu o assobio, pronta a atacar. A língua agitava-se ameaçadora.
Os dois homens continuavam imóveis. A serpente abanava a cabeça, contemplando-os e repetindo os seus ameaçadores assobios. Ia atacar. Os dois guardas morreriam ali, entre horríveis dores, sem que ninguém soubesse jamais o que fora feito deles.
De repente um silvo feriu os ares, ouviu-se um pequeno ruído e o réptil caiu, torcendo-se, com a cabeça cortada. À frente deles, apareceram o Estorietas e a sua amiga Mari’mília. Ela apressou-se a recolher a faca com que abatera a serpente. Terrível aquela mulher…
- Creio que chegámos a tempo.
O comandante e o guarda concordaram reconhecidos…


Mas o que se passara para estes nossos amigos se passearem por ali?

terça-feira, março 10, 2020

O cão que parecia um leão

A Gracelinda e o Pepe chegaram a casa já passava das cinco da tarde. Ela estava felícissima com o seu cãozinho por este a ter ajudado a libertar o João e a Teresinha.
- Hoje, vais ter ração melhorada, Pepinho. A ação que fizeste foi maravilhosa.
E o Pepe teve uma das melhores refeições da sua vida. Comeu e enfiou-se numa casota que tinha lá dentro um pequeno colchão para se deitar. Daí a pouco estava a dormir.
Por sua vez, a Gracelinda entrou em casa, foi guardar o traje de freira que tinha usado no posto da Guarda, os elementos de estudo que tinha levado para o CFL e foi ver a mãe.
- Então, minha filha, correu bem o teu dia de aulas?
- Sim, mãezinha. Até fomos assistir à saída da prisão da Teresinha e do João…
- Então, já libertaram esses miúdos… espero que eles não façam mais disparates. Olha, menina, vai lanchar, estive a fazer-te uma torta de chocolate.
- Que delícia, mãezinha.
E a Gracelinda foi para a sua salinha de refeições e iniciou o lanche. A sua face estava iluminada num sorriso devido à recordação da ação do Pepe.
«É incrível este cãozinho. Corre tanto que ninguém o vê. E como percebeu que aquelas eram as chaves das celas… Amanhã quero ouvir o que se vai dizer no CFL».
Comia vagarosamente, saboreando os alimentos ao mesmo tempo que se deixava levar pelos pensamentos.
«Se ele participasse numa corrida de cachorros, com certeza ganhava. Podemos vir a ser famosos».
De repente, os seus pensamentos foram interrompidos por uma travagem brusca e por passos rápidos no exterior. Levantou-se assustada e foi espreitar à janela…
E lançou uma exclamação de terror…
Lá fora, com cara de poucos amigos estava o comandante do posto acompanhado de três guardas. A mãe dela veio ver o que se passava.
- O que é isto, Gracelinda? O que faz aqui a GNR?
- Depois explico-lhe, mãe. Agora veja o que eles querem…
A senhora abriu a porta e a Gracelinda ouviu o comandante dizer:
- Minha senhora, vimos à procura da sua filha e do cão para os prender.
- Mas o que fez a minha pobrezinha?
- Ela e o cão ajudaram dois presos a evadir-se da prisão. É um crime muito grave.
- Não posso acreditar nisso. Gracelinda, diz-me que é mentira…
Mas a miúda já estava na rua perto da casota do cão.
- Os senhores não me levam daqui nem ao meu cão. Era injusto o que estavam a fazer ao João e à Teresinha.
Mas o comandante não lhe deu ouvidos.
- Guardas, prendam-na e enfiem-na no jeep. Depois, procuraremos o cão.
De um momento para o outro, a Gracelinda viu-se no jeep, enquanto a mãe contemplava tudo com terror. E foi nesse instante que a grande amizade do Pepe por ela se manifestou.
O cãozinho tinha acordado assustado, mas num instante apercebeu-se da situação. Saltou da casota e mordeu a mão do comandante, depois agarrou-se aos fundilhos das calças de um dos guardas e deixou-lhe o rabo à mostra. Não contente com isso, atirou-se ao outro, bastante barrigudo, e puxou-lhe as calças deixando-o numa figura ridícula em trajes menores. O Pepe mais parecia um leão e o soldado um vulgar vagabundo sem formação.
A Gracelinda estava entusiasmada.
- Força, Pepe, não tenhas pena deles…
O guarda que estava ileso apercebeu-se da situação e gritou:
- Vamos, voltemos ao posto para procurar reforços. Este cão é uma fera.
Saltaram todos para dentro do jeep. O comandante, de braço ao peito, proferia ameaças enquanto arrancavam:
- Hão de pagá-las…
E partiram em direção a Ourém.
A Gracelinda explicou rapidamente à mãe o que se tinha passado e este tomou uma decisão.
- Vamos chamar o teu pai. Tu e o cão não podem ficar nesta casa, senão esses guardas não vos deixam em paz.
Pouco depois, o senhor Marques chegou a casa no seu carro. A Gracelinda e o Pepe entraram no mesmo e, daí a pouco, partiam para casa duma sua tia numa terreola a uns dez quilómetros de distância.
A verdade é que os pais estavam preocupadíssimos. E, à noite, o senhor Marques comunicou a sua decisão à esposa.
- Este caso não tem solução se ela não sair daqui. Ela tem andado a dizer que queria voltar ao convento. É a hora. Vou tratar de tudo para a enviar para Abrantes e espero que, desta vez, se aguente por lá mais tempo.

segunda-feira, março 09, 2020

Um vulto estranho

Quando o graduado viu a Gracelinda passar à frente do posto com o Pepe, ficou intrigado.
«Dir-se-ia que já vi aquele vulto em qualquer sítio».
De repente, percebeu. Levantou-se de um salto e exclamou:
- Guarda Lourenço, prepare o jeep. Temos de ir fazer nova detenção.
O guarda apareceu um pouco estremunhado. Notava-se que tinha estado a dormitar.
- Que se passa, meu comandante?
- Fomos enganados pela Gracelinda, a filha do sr. Marques. Ensinou o cão para nos roubar as chaves das diversas celas. Não podemos permitir que ande por aí impunemente. Vamos partir imediatamente para casa dela para os deter. Já viu a insegurança em que ficamos relativamente aos outros presos.
- É incrível. Esta juventude está perdida. Vou já tratar de mobilizar mais dois soldados. Nunca sabemos do que é capaz um cão ensinado.
Rapidamente, foram chamados mais dois guardas e, dez minutos depois, saltaram para dentro do jeep e puseram-se a caminho.


E agora?
O que vai acontecer à Gracelinda e ao Pepe?
A situação é muito grave pois o comandante pensa que o Pepe está treinado para cometer outras partidas na prisão.
Como podemos salvar os nossos amigos?
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