sábado, janeiro 25, 2020

Base de Dados é o que está a dar…

As coisas no Centro Nacional de Pensões, apesar de uma ascensão rápida, não correram bem do ponto de vista do gosto pela profissão. Ao se aperceberam que investia muito na investigação das potencialidades das linguagens, os responsáveis entenderam estar ali o indivíduo ideal para a área de sistemas e trataram de me fazer transitar para lá.
Ora, eu adorava a área de aplicações. O que gostava era idealizar sistemas de aplicações, ficheiros, rotinas de tratamento de dados e programar muito do necessário para o implementar. Comparada com isso, a área de sistemas era uma chatice em que tinha de andar atrás dos técnicos do fabricante, preocupar-me com circuitos, coisas horrorosas.
E comecei a pensar em sair, apesar de adorar os colegas com quem trabalhava.
A ocasião surgiu através de um concurso para a Carris. Esta usava um equipamento IBM com algumas afinidades com o que usava na CNP e a transição não foi difícil pois a CNP estava, na altura, uns passos à frente já com o teleprocessamento em produção.
Tornei-me um excelente ouvinte dos conselheiros que vinham daquela corporação gigantesca e só relativamente tarde me apercebi que muitos desses conselhos estavam relacionados com a sua necessidade de fazer negócio. «A máquina tem mau desempenho?», então «O melhor é fazer um upgrade ou adquirir uma máquina nova».
E, um dia, a palavra mágica surgiu: Base de Dados. Seria o fim da anarquia, o fim da redundância… os dados bem organizadinhos a servirem toda a empresa. As primeiras bases de dados foram apelidadas de hierárquicas e não trabalhei praticamente com elas. As que me entusiasmaram bastante designavam-se por relacionais e a palavra chave para o seu uso era SQL (Structured Query Language).
Adorava o SQL, tudo quis fazer com SQL. Um dia, perante a administração da Carris, eu e alguns técnicos tivemos uma conversa engraçada:
- Em SQL, é possível determinar imediatamente o impacto de um aumento de salários de 10% aos motoristas.
O administrador ficou entusiasmado:
- Olhe. E esse rapaz, o Ezequiel, ele não está para ir embora, pois não?
A evolução era tão rápida que as pessoas tinham de ignorar alguma coisa na sua profissão… 
Cabe dizer que, na altura, era muito difícil a uma empresa como a Carris reter os seus técnicos de Informática. Mal sabiam alguma coisa e provavam que eram bons, a Banca e algumas empresas tratavam de os contratar com salários francamente superiores: era uma pressão sufocante para o Centro de Informática.

sexta-feira, janeiro 24, 2020

Onde «ter de conhecer muito» equivale a «baixo nível»

A minha vida profissional começou com um emprego de programador de computadores no Centro Nacional de Pensões. Entrei numa leva em 1973, adquiri os primeiros conhecimentos à conta do empregador e após uns testes de aptidão e executei alguns programas que, a breve trecho, demonstraram que tinha algum jeito. A linguagem utilizada estava muito perto da linguagem máquina, era um Assembler e o computador uma anedota quase sem memória que utilizava cartão perfurado (Univac 1005). Programa e dados utilizavam este suporte.
Passados uns três meses fui chamado para o serviço militar e, quando regressei, o panorama era substancialmente diferente: os programas ainda entravam em cartão, mas ficavam gravados em disco onde podiam ser editados. Os dados também podiam usar esse meio, mas já os encontrei em disco e banda magnética. Começou aí um dos meus períodos áureos na profissão um bocado exacerbado pelo momento político. Assim, quando tinha de testar os programas, tinha de fazer fichas em cartão com uma simulação dos dados e via-me obrigado a inventar nomes de beneficiários, moradas, etc. etc.
Era um martírio fazer fichas teste e o que me aliviava era escolher nomes do mundo político. Assim, ao fim de algum tempo, a diretora do Centro começou a receber queixas das operadoras de registo de dados que afirmavam que um programador andava a gozar com os políticos, pois criava fichas teste com os nomes de :«Álvaro Barreirinhas Cunhal», «Melro Antunes», «Sá Meme», «Mário Bochechas Soares», «Basilino da Horta»...
Lá fui chamado à pedra e comprometi-me a não gozar mais com os nossos queridos políticos, passando a usar nomes completamente inócuos.
A linguagem de programação, entretanto, tinha evoluído: já usava o Cobol e aquelas palavras em Inglês com um certo sentido passaram a transmitir-me muito gosto pela função. Cada programa que fazia era um desafio diferente e procurava sempre testar aspetos novos da linguagem, sendo caraterizado por muitos colegas como tendo uma «programação demasiado arrevesada». Eu diria mesmo disparatada, esse seria o termo correto, já que, revendo os programas, diria que tinham sido feitos por um louco.
Um dia, aproximavam-se as férias, e fiz um programa à pressa. Quando voltei fui envergonhado perante os colegas pois tinha estoirado com a banda dos salários. As especificações de análise não eram muito claras, mas o que eu quis foi fazer o programa, não esclareci nada e… Bum!!! Lá andaram a repor os dados do ano em salários enquanto eu me deliciava em férias. A partir daí, fui mais cuidadoso.
Cabe dizer ainda que já se discutia muito o nível das diferentes linguagens: uma linguagem de alto nível seria aquela que estaria muito perto do modo como falamos, tornando a vida do programador  muito simples; pelo contrário, uma linguagem tipo Assembler, apesar de exigir muitos conhecimentos a quem a utilizava, era considerada de baixo nível.
A ilustração esclarece o que disse antes. O Assembler estava abaixo daquilo tudo. O Cobol estaria ao nível dum Fortran (Formula Translator) que também cheguei a usar e, depois, por ali acima, era tudo de uso mais fácil. Confesso que ficava danado quando me diziam que programava numa linguagem de baixo nível. Os pedantes… que nem sabiam escrever uma instrução para ler um registo de um ficheiro.

quinta-feira, janeiro 23, 2020

A tática da punição mútua

Lembro-me que, na instrução primária, uma tática utilizada pela professora para reforçar o amor mútuo entre alunos era pôr os que acertavam uma pergunta a dar umas reguadazinhas aos colegas que erravam… e o sistema era maquiavélico, porque, se algum não desse a reguada com um mínimo de força, era ele quem levava depois das mãos da professora.
Eu era dos que mais era chamado a dar a reguadazinha, mas, como era boa pessoa, tratava todos os colegas com suavidade, todos ou quase todos. Mas havia uma ou duas meninas da nossa turma que eram terríveis. Uma era a Borda d’Água e outra a menina dos Castelos. Um desgraçado que levasse uma reguada delas já sabia que tinha de pôr a mão de molho durante três ou quatro dias, pois eram impiedosas, batiam com raiva… só lhes faltava pôr pregos na extremidade da régua.
E um dia calhou-me levar três reguadas dadas pela Borda d’Água. Tinha errado uma pergunta sobre os rios de Portugal e, no entretanto, ela tinha visto a resposta no livro e oferecera-se para responder ganhando o direito de me punir.
Vi-a chegar junto de mim com a régua na mão…
- Estende a mão…
Que me iria acontecer? Olhei para ela e o ar dela não denunciava um mínimo de piedade…
- Leninha, sê suave!!!
- Eu te digo… ainda há dias me torturaste com cinco reguadas.
Eu já nem me lembrava…
Lá estendi a mão, ela levantou o braço, fez a régua ficar quase perpendicular ao chão, cabeça para trás quase em posição de mortal e aplicou o primeiro golpe.
-Ai!!!!!!
Todos a contemplarem o belo espetáculo, inclusivamente a professora que, assim, nem tinha o trabalho de nos castigar. Acho que alguns até se arrepiaram.
- Malvada! Se te apanho a jeito…
Segunda reguada ainda com mais força. A menina dos Castelos ria que nem uma perdida, cheia de pena por não ser ela a aplicar o castigo.
Até que chegámos à última reguada…
- Agora é que vais ver – dizia a Lena entre dentes.
Vi que o seu olhar não estava para brincadeiras. Ela repetiu os gestos anteriores, trouxe o braço até mais atrás e desferiu sobre a minha mão.
Desferiu…
… só que a mão já lá não estava. E, sem algo para lhe amparar o movimento, a Lena estatelou-se no chão e a régua fez-se em mil pedaços. Os minutos seguintes foram passados a dar-lhe assistência. Que coisa estranha se passara para ela cair no chão se eu nem me mexera?
Acho que ela aprendeu. A partir de então tornou-se a pessoa mais suave a aplicar os castigos que, pelo direito vigente, caberiam à professora.

terça-feira, janeiro 21, 2020

O início do fim da Feira do Mês


Por vezes, o espetáculo a partir da casa do Largo de Castela era bastante animado. Se não estou em erro, regularmente, pelo dia três, realizava-se a feira do mês num largo enorme junto ao local onde depois surgiu a escola da Dona Iria, perto da prisão da GNR.
E a rua de Castela enchia-se das mais diversas espécies de animais - ovelhas, carneiros, cabritos, burros, vacas, mulas - que a desciam para se dirigirem ao largo da feira onde eram transacionados.
O ruído dos chocalhos, a mistura dos sons produzidos pelos animais e pelas pessoas que os controlavam e o seu tropel eram magníficos, dando a tudo aquilo uma sensação que de semelhante só se encontrava nos filmes do Oeste com as cavalgadas junto aos bisontes ou a manadas de gado tresmalhadas.
Eu abria a porta e via todo aquele ondulado barulhento a passar. Depois era de novo o silêncio, a rua ficava um pouco suja com excrementos do tipo azeitona e, no mês seguinte, lá se repetia a história.

Mas também este espetáculo maravilhoso um dia cessou. Vejam como o NO noticiou o princípio do fim da «feira do mês».


Vila Nova de Ourém, 20 de Agosto de 1950.
No Largo de Rodrigues Sampaio (vulgo “Feira do Mês”), no ângulo sueste, um novo edifício escolar começou há pouco tempo a erguer-se. O velho logradouro, de futebolistas incipientes, de amadores de “estrelas” e “papagaios” de papel, das ruidosas e heterogéneas feiras e mercados, vasto palco das festas de outrora, onde bandas de fama e grupos folclóricos bizarros se exibiram, vai ficar talado e como tal reduzido a proporções que dificilmente lhe permitirão voltar a desempenhar-se da função destacada que até aqui lhe cabia na vida local.
Há quem veja com desgosto a amputação do amplo recinto e que o desejasse assim mesmo, para sempre, servindo nas grandes concentrações públicas mercantis ou festivas, e, nos intervalos destas, de grande pulmão ou respiradouro; outros há, pelo contrário, que rejubilam com o desaparecimento mais ou menos próximo dos ruídos que lhes são inerentes e das excrescências e do fétido aroma que a pecuária ali despeja todas as semanas e todos os meses. Uns e outros aduzem razões a que certamente não são indiferentes os seus interesses particulares. Respeitemo-las. Quanto a nós, se bem que a localização da nova escola nos não seja de incondicional simpatia, parece-nos que devemos aceitar a sua construção como um melhoramento de vulto e merecedor portanto do nosso reconhecimento, tanto mais que o desaparecido ou reduzido nas suas proporções o popular logradouro, outros vão surgir certamente, mais belos e mais higiénicos, previstos como estão no plano urbanístico que a Câmara já começou a executar.
De lamentar apenas – e não se julgue que se trata de edifício medíocre ou desgracioso sequer – de lamentar apenas, repetimos, é que em vez de 2 ele não comporte 4 salas como parecia estar indicado para a categoria da Vila e estética local.
Para isso – façamos justiça – se bateu esforçada e insistentemente a Câmara junto de quem de direito, mas infelizmente sem resultados satisfatórios.

segunda-feira, janeiro 20, 2020

O prazer de fumar

Comecei a fumar a sério no meu segundo ano em Leiria quando completava o antigo sétimo ano. Na altura, o Rui Themido tinha ido para lá e um domingo convidou-me para irmos até a um café nas arcadas da Praça Rodrigues Lobo. Ali, estivemos toda a tarde e, a certa altura, ele puxou de um maço e ofereceu-me um cigarro.
- Toma. Fuma um cigarro…
Bebemos o café e, depois do primeiro cigarro, ofereceu-me outro e disse-me:
- Agora, engole o fumo.
Lá tentei e confesso que não me saí muito mal, pois não desatei a tossir como muitas vezes via acontecer com os novos dependentes do hábito. Passámos a tarde inteira na conversa e confesso que gostei da sensação que o tabaco me tinha transmitido.
No dia seguinte, comprei o meu primeiro maço de tabaco e, a partir de então começou uma viagem maravilhosa pelos prazeres da nicotina.
Gostava especialmente dos cigarros após as refeições e o primeiro da manhã tinha um sabor especial. Mas o ritual associado ao tabaco era outra coisa.
Conduzir um automóvel com o cotovelo sobre a janela e um cigarro na mão enquanto olhava desprezivelmente os que caminhavam a pé…
Enfrentar um novo problema, mas, antes disso, puxar do cigarro e iniciar um profundo processo de concentração…
Também gostava de observar os outros quando fumavam. O jogo do King era particularmente elucidativo nesse aspeto. Por exemplo, o Kansas, quando estava atrapalhado, aspirava profundamente o cigarro e depois soprava longamente. Era um notável fumador, um fumador que eu admirava pois conseguia fazer rodelas de fumo que evoluíam no ar com significativo encanto quando expulsava o que tinha nos pulmões.
Nunca consegui fazer essas rodelas de fumo e o malvado do Kansas nunca me ensinou talvez para me irritar durante o jogo. Mas eu ficava fascinado com as mesmas.
Bom, um dia o prazer do tabaco teve de terminar. Um médico, aos 28 anos, disse-me:
- Ou o meu amigo para ou…
E eu preferi parar. Mas ainda recordo com saudade aqueles processos de profunda concentração que o tabaco me proporcionava e sinto, garanto que sinto, a falta dele…
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