sexta-feira, abril 24, 2020

Um merecido par de coices

Pouco depois, o Estorietas teve uma ideia:
- O melhor é desatrelarmos os burros, deixá-los ir para o campo de futebol para estarem mais à vontade e tirar as carroças da estrada.
À falta de melhor ideia, assim fizeram e, pouco depois, o trânsito podia circular.
Mas o brutamontes não estava satisfeito. Estacionou um pouco mais à frente e saiu da camioneta dirigindo-se para o sítio onde estavam os nossos amigos.
- Vou dar uma lição a esses burros – praguejou enquanto exibia um pau enorme que trazia na mão.
A Mari’mília saltou-lhe para a frente.
- Você não faz mal aos burros, ouviu? Eles não têm culpa da sua natureza.
Mas ele não a ouviu e dirigiu-se para os burros. A verdade é que a Dulcineia percebeu as suas intenções. Saciada dos beijinhos do burro, quando o homem se aproximou para lhe bater, apoiou-se nas pernas da frente e mandou-lhe monumental par de coices que o fez estatelar-se imediatamente.
O homem ficou aturdido. A Mari’mília chegou junto dele e disse-lhe:
- Nunca mais ameace a minha burra, senão sou eu quem trata de si. – e mostrou-lhe a faca que ocultava debaixo do saiote. – Ainda há dias dei cabo de uma serpente muito mais perigosa que você.
Era terrível aquela rapariga. Nada lhe metia medo e tinha sempre argumentos contra os que enfrentava.
O brutamontes encolheu-se com medo enquanto o Estorietas o ajudava a levantar.
- Isto não vai ficar assim…
- Não volte a aproximar-se de nós – respondeu a Mari’mília muito séria. - E dê-se por feliz por o castigo ser apenas um par de coices. Suma-se…
O brutamontes meteu o rabo entre as pernas e afastou-se. Pouco depois, ligava a camioneta e desaparecia na direção de Tomar.
- És uma mulher cheia de coragem – dizia o Estorietas.
- Bom. Vamos atrelar os burros e prosseguir o nosso caminho.
Pouco depois, estavam em cima das carroças, percorrendo pacificamente os caminhos para os seus destinos. A conversa já não era romântica, enervados que estavam com o incidente com que se haviam deparado.
Depois, já cada um em seu destino, pensavam no futuro, afastados daquela terra maravilhosa longe de todas as aventuras que ela lhes tinha proporcionado…



FIM

quinta-feira, abril 23, 2020

As carroças do amor

A Mari’mília e a mãe preparavam o regresso a casa e esta decidiu voltar na camioneta dos Claras.
- Olha, eu vou à frente para preparar o almoço. Chego lá muito antes da carroça.
A Mari’mília entregou-lhe o produto da venda e respondeu:
- Está aqui o dinheiro dos limões. Eu vou buscar o Estorietas que vai ver os tios.
- Tem cuidado com esse malandro. Ele olha-te de uma maneira esquisita.
Ela riu-se.
Foi para o quintal da Dona Aurora e, pouco depois, tinha a burra aparelhada à carroça. O Estorietas chegou e tomou o lugar ao lado dela.
Desceram a rua da Olaria, entraram na Avenida e viraram na direção de Tomar. A burra trotava a um ritmo suave.
- Gostas de vir na carroça a Ourém? – perguntou o Estorietas.
- Enquanto não tiver melhor meio… ao menos respiramos ar puro e não ar poluído pela combustão de gasolina… e posso desfrutar da tua companhia.
- Sem dúvida, uma companhia muito agradável e motivadora. Olha e para onde vais quando terminares o quinto ano?
- Vou para o Magistério em Leiria. Quero ser professora…
- Gostas de miudagem? Eu… nem vê-los. Não me imagino a aturar cachopos mal educados.
- Então, para onde vais depois?
- Devo ir também para Leiria, para o Liceu, possível para a área de Economia e Finanças.
- O curso do nosso Presidente do Conselho…
- É o que me dizem… outros gozam afirmando que vou para ciências alcoólicas e bagaceiras.
- Então, se vais para Leiria, poderemos encontrar-nos algumas vezes.
E a conversa prosseguiu acerca dos projetos daqueles dois miúdos.
Já estavam a chegar ao Lagarinho quando viram vir em sentido contrário outra carroça puxada por um burro e sentiram a burra um pouco nervosa.
- Lá vem o burro do ti’ Guilherme. É o namorado aqui da Dulcineia…
- Não me digas que se conhecem…
- Passam o fim de tarde juntos. Antes de ontem, ela deitou-me no chão para ir para o pé dele.
O certo é que naquele momento, o burro zurrou fortemente e a Dulcineia virou na direção dele. As carroças atreladas não os deixavam mexer-se à vontade pelo que ficaram atravessados na estrada a ocupá-la no sentido da largura. Os condutores bem faziam esforços para os fazer seguir para o seu destino, mas o parzinho de burros não obedecia. Davam beijinhos, encostavam a cara, uma doçura…
A Mari’mília contemplava aquilo embevecida. O Estorietas começou a lembrar-se que tinha uma bela miúda a seu lado.
- Eles é que nos ensinam. Aquilo é amor verdadeiro…
- Quem me dera ter alguém que gostasse assim de mim.
Ele decidiu avançar.
- Quando te vejo, o meu coração…
Mas aquele momento maravilhoso foi destruído por uma formidável buzinadela. Um brutamontes, dentro de uma camioneta, fazia gestos e praguejava.
- Tirem-me essa porcaria da frente ou passo-lhe por cima.
Os condutores das carroças bem faziam todos os esforços para separar os burros, mas estes, dignos exemplares da espécie, eram bem teimosos. As duas filas de carros e camionetas continuavam a crescer sem que se conseguisse uma solução para o caso. Todos buzinavam e praguejavam…


E agora? Que vai acontecer? O brutamontes concretizará a sua ameaça?

quarta-feira, abril 22, 2020

Nas boas graças do Poder

Pouco depois, a Mari’mília terminou a venda de limões e foi na direção do posto da GNR intrigada com o que tinha visto antes.
Ao entrar ainda ouviu parte da conversa e ficou abismada. O guarda que a recebeu perguntou-lhe:
- O que pretende a menina?
- A minha mãe está aí dentro. O que se passa?
- Vou levá-la ao comandante e à sua mãe.
E conduziu-a ao gabinete do comandante que a reconheceu imediatamente. Entretanto, a mãe desatou a chorar:
- Nicha, querem multar-nos. Não temos licença de feirante e era necessária para vender no mercado. A multa é de 500 escudos. Como vamos arranjar o dinheiro?
- Mãe, decerto que há uma solução diferente para o caso.
O comandante, entretanto, tinha-se levantado e pôs uma mão nas costas da senhora:
- Esteja descansada. Nós não vamos multá-la nem apreender os produtos. Não podemos fazer isso a quem nos salvou a vida.
- Mas o que se passa? – perguntou a senhora muito admirada. – Não percebo nada.
- A sua filha salvou-nos a vida há uma semana em Peras Ruivas. Nós temos de cumprir a lei, mas temos de mostrar a nossa gratidão a quem nos ajuda. Guarda Ernesto, traga imediatamente, os produtos apreendidos.
O guarda referido apareceu, cumprimentou timidamente a Mari’mília e disse:
- Comandante, o guarda Elias já levou dois coelhos para casa. Nós pensámos que os podíamos repartir entre nós.
- Seus alimárias. Desde quando lhes tenho dito que não podem ficar com os produtos apreendidos??!! Todos os produtos devem ser enviados para o quintal do nosso venerado Presidente do Conselho de Ministros onde ele cria galinhas e coelhos para se alimentar. – e curvou-se perante a salazarenta fotografia. - Tratem de o avisar imediatamente para trazer os coelhos. E tu, vai já à Câmara tratar de arranjar uma licença de feirante para esta senhora e filha.
- Às suas ordens, meu comandante.
Pouco depois, já com licença de feirante na mão, as nossas amigas puderam completar a venda e iniciar o regresso a Peras Ruivas. Mas as suas atribulações não tinham acabado…

terça-feira, abril 21, 2020

Uma licença para vender

Manhã cedo, na quinta-feira seguinte, a Mari’mília e a mãe atrelaram uma carroça à burra e começaram a carregar as coisas para o mercado: uma cesta com limões, outra com pintainhos e noutra puseram os coelhos a que, previamente, ataram as patas.
Sentaram-se e iniciaram a deslocação para Ourém num trote bastante suave. Pelo caminho, a miúda revia-se num auto de Gil Vicente:

"Vou-me à feira de Ourém e farei dinheiro grosso. Do que dos pintos e coelhos render comprarei ovos de pata, que é a coisa mais barata que eu de lá posso trazer; e estes ovos chocarão; cada ovo dará um pato, e cada pato um tostão, que passará de um milhão e meio, a vender barato. Casarei rica e honrada por estes ovos de pata, e o dia que for casada sairei ataviada com um brial de escarlata, e diante o desposado, que me estará namorando: virei de dentro bailando assim dest'arte bailado, esta cantiga cantando."

Meia hora depois, chegaram ao mercado junto à esquadra da GNR e cada uma levou os cestos para os locais respetivos de venda.
- Mãezinha, olha pela minha cesta, enquanto vou estacionar o carro.
Naquele tempo, em Ourém, havia muitas pessoas que disponibilizavam os pátios para estacionamento das carroças e para descanso dos animais. A Nicha conduziu a carroça na direção da Rua de Castela e parou no largo junto à casa da Dona Aurora. Falou com a senhora e estacionou o carro no pátio, depois deu algo de comer à burra e saiu.
Nessa altura, o Estorietas saía de casa para ir para as aulas. Ela contou-lhe rapidamente por que estava ali.
- Então, vais para Peras Ruivas quando o mercado fechar… podias dar-me boleia na carroça para ir ver os meus tios.
E combinaram o ponto de encontro. Ela foi na direção do mercado e, daí a pouco estava junto ao cesto a enfrentar os clientes.
- Quanto custam os limões? – perguntou uma senhora.
- Cinco escudos o quilo.
- Arranje-me um quilo.
Os limões foram desaparecendo e a Mari’mília ia guardando o produto da venda. Um pouco afastada, a ti’ Núncia já tinha despachado os pintos e, naquele momento, mostrava um coelho a uma cliente. O pobre bicho, agarrado pelas orelhas, olhava-as com terror e não deixava de dar às pernas traseiras.
Foi então que dois GNR pararam em frente ao ponto de venda da senhora.
- Belos coelhos, não achas, Ernesto?
A senhora olhou para eles e ficou apreensiva. O chamado Ernesto olhou-a com desconfiança e perguntou:
- A senhora tem licença de feirante? Faça favor de me a mostrar…
Ela ficou muito atrapalhada.
- Senhor guarda, não sabia que era necessária…
- Nunca sabem. Vou ter que lhe apreender os coelhos – pegou no cesto e dirigiu-se ao outro guarda. – Dá aqui uma ajudinha. Temos de levar isto para o posto. E a senhora acompanhe-me pois tenho de a autuar.
A Mari’mília praticamente já não tinha limões e começou a ver a mãe a acompanhar os guardas que transportavam a cesta com os coelhos. Pouco depois, estavam no posto da GNR. O comandante recebeu-a enquanto os guardas combinavam entre si:
- Há seis coelhos. Dois para cada um de nós e dois para o comandante. Que achas?
- Está bem. Vamos guardá-los naquela cela que está disponível. Se calhar, o melhor é também apreendermos a cesta.
- Olha, a minha casa é aqui ao lado. Vou já lá pôr os que me cabem…
- Ok. Não demores.
Entretanto, o comandante explicava à ti’Núncia as razões da multa e apreensão.
- Sabe? O que fez é muito grave. A senhora devia ter tirado uma licença de feirante que só custa 15 escudos na Câmara Municipal. Não o fez e veio vender produtos ilegalmente para o mercado, pelo que vai ser autuada e os produtos serão apreendidos. A multa é de 500 escudos. Como vê, teria sido muito mais simples e menos dispendioso tirar a licença.
- Que horror! Eu nem fiz esse dinheiro na feira…
- As pessoas têm de aprender. A Economia tem de ter regras senão a concorrência desenfreada leva à ruína de todos.

segunda-feira, abril 20, 2020

O apelo do amor

Certa tarde, a Mari’mília esteve na fazenda da família a regar. Para isso, prendeu a burra à nora, tapou-lhe os olhos com um pano e, suavemente, pô-la a caminhar. O animal ali ficou cerca de meia hora a tirar água que ela aproveitou para transportar para os diversos canteiros: feijões, couves, batatas, melões… tudo ela conseguia tirar da terra com o seu formidável labor.
«Nem sei para quê estudar se gosto tanto desta terra, de fazer o que faço e consigo tirar daqui o meu sustento…».
É que, apesar de tudo, era duro o seu dia a dia já que, de manhã, tinha aulas no colégio e, à tarde, tinha de trabalhar na fazenda para além de tratar dos animais.
Depois de regar, sentou-se numa pedra e olhou o horizonte de uma forma sonhadora. 

Entardecer
Serenidade idílica das fontes
E em silêncio
Eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater...

Reparou então que o limoeiro estava carregado. Limões lindos…
«Ena. Será que se vai perder aquilo tudo?».
Separou a burra da nora, tirou-lhe a venda e atou-a a uma árvore, dando-lhe de comer umas couves e umas cenouras. O animal zurrou, agradecido.
«Mereces um beijinho. Trabalhas tanto…».
Foi buscar um cesto de verga vazio, um cesto enorme, e entregou-se à tarefa de o ir enchendo de limões.
«Isto tem de ir para o mercado de Ourém, senão apodrece».
A Mari’mília terminou a tarefa de colheita dos limões e, como se fazia tarde, olhou para a burra e disse:
- Bom, vou levar-te para o curral. Hoje já trabalhaste que chegue…
Libertou a burra e pôs-se a conduzi-la na direção de casa. Nessa altura, proveniente do outeiro, ouviu-se um zurro muito forte. A burra levantou as orelhas e espojou-se no chão fazendo a dona acompanhá-la na queda e largar a rédea. Depois levantou-se e correu para o outeiro.
- Malvada! Deitaste-me no chão… vais pagá-las.
Mas a burra já não a ouvia e não ligava nenhuma aos seus chamamentos. Percebeu que o encontro era inevitável e murmurou:
- Já percebi. Queres ir ter com o namorado. Ninguém pode calar o amor. Vou a casa pôr os limões e, depois, vou-te buscar.
Pegou na cesta carregada de limões, pô-la sobre a cabeça e dirigiu-se para casa.
«Bolas! Isto pesa…».
A mãe já a esperava.
- Ai, filha, vens tão carregada.
- Mãe, esta quinta-feira, falto às aulas e vou ao mercado de Ourém vender estes limões.
- Não gosto que faltes às aulas…
- Não tem importância. É Desenho e Religião e Moral. Eu depois justifico com uma doença.
- Vou aproveitar para ir contigo e levo os pintainhos e os coelhos para vender.
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