sexta-feira, fevereiro 03, 2006

O último suspiro do ciclope

Fui pelos campos e, a certa altura, encontrei umas varas de tom castanho esverdeado. Ena! Que descoberta! Eram perfeitas para jogar à espada ou levar o arco ou simular o cajado de peregrino.
Com uma pequena incisão vi que era fácil dar-lhes novo aspeto, pois aquele película superior teria talvez um milímetro e saia em tiras com um leve puxar.
Trouxe-as para casa e passei algumas horas a descascá-las. Ficaram lindas, clarinhas, ainda um pouco esverdeadas. Quando a minha mãe viu aquele arraial, disse logo:
- Vais levar tudo isso daqui para fora, para o lixo...
O quê? A minha obra ia para o lixo?
Mas em breve tive uma ideia salvadora. A casa da Vizinha(1) tinha um pequeno quintal a que a porta do lado direito, sempre aberta, dava acesso. Podia guardar lá o meu tesouro. Juntei o molho de varas e transportei-o para lá.
Os dias foram passando. Regularmente, eu ia ver a minha obra e apreciar como as varas iam ficando cada vez mais secas e claras. Estavam quase perfeitas para ser utilizadas...
Até que uma manhã saí de casa e vi dois vultos conhecidos junto à casa da Vizinha. O Fernando e o João, netos da Júlia padeira. E o mais insólito é que transportavam com eles as varas. As minhas varas!...
Desatei a correr que nem um doido na direção deles.
- Isso é meu. Vão pô-lo onde tiraram...
E tirei-lhes algumas das mãos para as repor no seu sítio. Mas não consegui reaver tudo o que me pertencia, eles não estavam pelos ajustes apesar do arraial que eu fazia. Até que a mãe deles, atraída pelo ruído, veio ter connosco frente à casa da Aurorita.
- Que é que se passa?
- Essas varas são minhas. Façam favor de mas dar...
- Chegam para todos brincar...
- São minhas, quero-as de volta...
Irritei-a tanta que ela pegou em duas ou três varas e quebrou-as sobre a perna, atirando-as desprezivelmente para o chão.
- Vê o que eu faço às tuas varas…
As minhas varas... reduzidas a pedaços, espalhados pelo chão.
Impelido por formidável impulso, agarrei num pedaço e atirei-lho acima, acertando-lhe em cheio na testa de onde, qual ciclope ferido, o sangue jorrou imediatamente. O dia na rua acabou por ali...
Em casa, aquela voz protetora, que nunca esqueço, ouvidas as minhas razões, deixou o apelo:
- Não voltes a fazer aquilo, podem-te prender ou mandar para uma casa de correção...
Curiosamente, nesse momento, na rádio, ouvia-se aquela canção:

Notas:
(1) Vizinha - designação para uma senhora deliciosa que vivia numa casa junto ao Picalimas, casa essa com vista para a varanda do Luís Nuno. Depois mudou para o Bairro Dr. Trigo de Negreiros...

1 comentário:

Sérgio Ribeiro disse...

*****!
... como o "Macieira", que também tinha ** e não era mau.

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