Os sapatos já andavam em estado lastimoso. Que é que se poderia esperar? Jogar à bola, subir e descer a encosta dos moinhos, correr pela calçada, pontapear a terra... Enfim, o aspecto nada tinha de animador e por vezes por baixo eu tinha a sensação de possuir ventilador automático.
A tia Elvira não era para brincadeiras. Um dia viu-me aqueles sapatos e deu imediatamente as suas ordens:
- Luís, amanhã esses sapatos vão para o sapateiro. Não quero voltar a vê-los nesse estado.
Tudo bem...
Os sapatos foram e vieram.
Nem calculam o regalo para os olhos que era receber uns sapatos após arranjo. O artista tinha colocado solas novas, lindas. Tinha também engraxado, dado lustro. Eu imaginava o trabalho que ele tinha tido. Aliás, por vezes deliciava-me a contemplar o seu trabalho a juntar novas meias solas. Limpar todo o espaço da aplicação, pôr cola, juntar a sola, cortar com uma faca que tinha capacidade e precisão notáveis. E, depois, depois, enfiá-los num pé de ferro, espetar uns pregos e dar monumental aderência à aplicação.
Os sapatos brilhavam, estavam melhores que novos, eu hesitava entre guardá-los para qualquer ocasião especial ou voltar a utilizá-los nas frenéticas actividades da infância.
Mas a voz da tia Elvira não me deixou qualquer dúvida:
- Luís, já podes calçar os sapatos arranjados.
Confesso que o fiz um pouco contrafeito, com pena de ir estragar aquela obra-prima.
Comecei a andar com os sapatos. Mas, ao fim de algum tempo, comecei a sentir uma coisa estranha, algo que vinha da sola e me magoava o pé, que picava.
Não disse nada.
Sempre fui assim. Resistir até ao fim, até cair...
E o problema é que ao fim de alguns dias comecei a sentir alguma dificuldade em me deslocar. O pé parecia maior, a perna já me doía, mas curiosamente a picada que tinha sentido nos primeiros dias já não a sentia. Que seria?
A minha mãe começou a ver as minhas dificuldades em andar e achou estranho:
- Luís, o que é que tens?
- Nada, nada...
Mas ela não se deu por satisfeita.
- Luís, mostra-me imediatamente o teu pé...
De má vontade, lá tirei o sapato, a meia e mostrei-lhe a sola do pé.
- Luís, o teu pé está um horror, tens de ir para o hospital!
- Outra ves? Ainda há dias foi a história do gato? Não vou...
Mas fui, porque eu próprio já não aguentava. Mais uma vez, o atendimento do enfermeiro Cruz foi impecável (reparem, para comparar, isto era Ourém na década de 50, sem qualquer exagero).
- Tens isto bonito, Luís. Vais ter de levar uma injecção, vou ter de te lancetar...
As horríveis torturas... mas por que vim eu ao mundo?
Ele desinfectou, cortou um pedaço de pele que cobria uma matéria mais espessa, retirou tudo lá de dentro. Lembro-me que parecia uma espinha esbranquiçada... fez o penso e recomendou:
- Agora, tens de ter cuidado: andar sem assentares a palma do pé no chão, se possível compra uma palmilha macia...
Lá me adaptei como pude. Mas a família quis esclarecer o assunto. Passando a mão por dentro do sapato, sentiu-se imediatamente a ponta de um prego.
- Pois, a culpa é do sapateiro.
Fomos falar com o homem que ficou um pouco acabrunhado.
- Sabe, peço muita desculpa. É que roubaram-me o pé de ferro e eu utilizei um calço de madeira para eliminar as pontas dos pregos. Possivelmente, não correu bem com esse...
Imaginam que a partir de então não calço qualquer bota ou sapato sem, previamente, lhe fazer o teste do prego despistado pelo fé de ferro...
A tia Elvira não era para brincadeiras. Um dia viu-me aqueles sapatos e deu imediatamente as suas ordens:
- Luís, amanhã esses sapatos vão para o sapateiro. Não quero voltar a vê-los nesse estado.
Tudo bem...
Os sapatos foram e vieram.
Nem calculam o regalo para os olhos que era receber uns sapatos após arranjo. O artista tinha colocado solas novas, lindas. Tinha também engraxado, dado lustro. Eu imaginava o trabalho que ele tinha tido. Aliás, por vezes deliciava-me a contemplar o seu trabalho a juntar novas meias solas. Limpar todo o espaço da aplicação, pôr cola, juntar a sola, cortar com uma faca que tinha capacidade e precisão notáveis. E, depois, depois, enfiá-los num pé de ferro, espetar uns pregos e dar monumental aderência à aplicação.
Os sapatos brilhavam, estavam melhores que novos, eu hesitava entre guardá-los para qualquer ocasião especial ou voltar a utilizá-los nas frenéticas actividades da infância.
Mas a voz da tia Elvira não me deixou qualquer dúvida:
- Luís, já podes calçar os sapatos arranjados.
Confesso que o fiz um pouco contrafeito, com pena de ir estragar aquela obra-prima.
Comecei a andar com os sapatos. Mas, ao fim de algum tempo, comecei a sentir uma coisa estranha, algo que vinha da sola e me magoava o pé, que picava.
Não disse nada.
Sempre fui assim. Resistir até ao fim, até cair...
E o problema é que ao fim de alguns dias comecei a sentir alguma dificuldade em me deslocar. O pé parecia maior, a perna já me doía, mas curiosamente a picada que tinha sentido nos primeiros dias já não a sentia. Que seria?
A minha mãe começou a ver as minhas dificuldades em andar e achou estranho:
- Luís, o que é que tens?
- Nada, nada...
Mas ela não se deu por satisfeita.
- Luís, mostra-me imediatamente o teu pé...
De má vontade, lá tirei o sapato, a meia e mostrei-lhe a sola do pé.
- Luís, o teu pé está um horror, tens de ir para o hospital!
- Outra ves? Ainda há dias foi a história do gato? Não vou...
Mas fui, porque eu próprio já não aguentava. Mais uma vez, o atendimento do enfermeiro Cruz foi impecável (reparem, para comparar, isto era Ourém na década de 50, sem qualquer exagero).
- Tens isto bonito, Luís. Vais ter de levar uma injecção, vou ter de te lancetar...
As horríveis torturas... mas por que vim eu ao mundo?
Ele desinfectou, cortou um pedaço de pele que cobria uma matéria mais espessa, retirou tudo lá de dentro. Lembro-me que parecia uma espinha esbranquiçada... fez o penso e recomendou:
- Agora, tens de ter cuidado: andar sem assentares a palma do pé no chão, se possível compra uma palmilha macia...
Lá me adaptei como pude. Mas a família quis esclarecer o assunto. Passando a mão por dentro do sapato, sentiu-se imediatamente a ponta de um prego.
- Pois, a culpa é do sapateiro.
Fomos falar com o homem que ficou um pouco acabrunhado.
- Sabe, peço muita desculpa. É que roubaram-me o pé de ferro e eu utilizei um calço de madeira para eliminar as pontas dos pregos. Possivelmente, não correu bem com esse...
Imaginam que a partir de então não calço qualquer bota ou sapato sem, previamente, lhe fazer o teste do prego despistado pelo fé de ferro...
1 comentário:
Passou-te depressa.
Hoje, não se notava nada. Não coxeavas pelo empedrado do "largo da eira"...
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