quinta-feira, maio 27, 2004

O Piromaníaco

Recordo Ourém, há cinquenta anos, talvez lá para 1953/54 ou mesmo antes.
Desfrutava a magnífica casa do Largo de Castela.
A partir daquela janela sobre a porta de entrada, dominava todo o espaço circundante.
Em frente, a rua que conduz à avenida. Mais ou menos a cinquenta metros, ficava a casa da Vizinha e do Rafael. Ela era uma espécie de terceira mãe sempre pronta a proteger-me em momentos difíeis, ele um verdadeiro avôzinho que me levava a passear pelos pinhais e até ao rio para que, de lingrinhas, ultraleve e doentio, me transformasse em alguém forte e saudável.
Mais abaixo, a casa do Luís Nuno e do Zé Rito à frente da qual ficavam os quintais onde o sr. Isidro guardava as galinhas que transacionava. Ao fundo e, já a dar para a avenida, o estabelecimento comercial do sr. Adelino e, do outro lado da rua, um sítio onde me lembro que se comprava carvão.
O largo de Castela, famoso pelas formidáveis partidas de futebol que possibilitava, era rodeado por mais duas casas relativamente habitáveis e por outra em piores condições. À direita, era a padaria da Júlia padeira e do sr. Zé Maria, avós do Fernando e do João, dois miúdos ultra-arreliadores primos do Quim e do Julito. Ela era a fornecedora do magnífico pão que podíamos saborear na época; do lado esquerdo era a casa da Dona Aurora, mãe da Aurorita que me ensinou as primeiras letras e números.
Em frente à padaria e do outro lado da rua, numa casa que penso que ainda lá está, o Souto dedicava-se ao trabalho artesanal de construir jaulas em madeira, cortando pacientemente pequenos pausinhos e descacando-os com uma navalha para depois os assemblar em estruturas mais complexas. Eu passava horas e horas a contemplar esse trabalho, embevecido e sem pensar nos pobres animais que iam ali ser guardados e torturados.
Por vezes, o espectáculo a partir da casa era mais animado. Se não estou em erro, regularmente, pelo dia três, realizava-se a feira do mês no largo junto à escola da Dona Iria, perto da prisão da GNR. E a rua de Castela enchia-se das mais diversas espécies de animais - ovelhas, carneiros, cabritos, burros, vacas, mulas - que a desciam para se dirigirem ao largo da feira onde eram transacionados. O ruído dos chocalhos, a mistura dos sons produzidos pelos animais e pelas pessoas que os controlavam, o seu tropel eram magníficos dando a tudo aquilo uma sensação que de semelhante só se encontrava nos filmes do Oeste com as cavalgadas junto aos bisontes ou a manadas de gado tresmalhadas. Eu abria a porta e via todo aquele ondulado barulhento a passar. Depois era de novo o silêncio, a rua ficava um pouco suja com excrementos do tipo azeitona e, no mês seguinte, lá se repetia a história.
Mas o objectivo do nosso post de hoje é a casa do largo de Castela.
Vamos até lá e entremos.
Logo do lado direito, uma escada conduzia-nos à parte superior da casa. Subindo-a, há que fazer um ângulo de noventa graus à esquerda para termos acesso às várias divisões.
À direita, existia uma casa de banho com um anexo que, com uma escada, permitia o acesso ao sótão.
Em frente, era o quarto do meu irmão. Lembro-me que ele tinha uma cama de metal toda bonita, uma mesa de cabeceira onde religiosamente guardava a colecção do Mundo de Aventuras que eu, com a mania de tudo ler, e, aproveitando uma possibilidade de acesso retirando a gaveta superior, contribuí para destruir e uma pequena estante com um rádio onde, na época, se ouviam delícias como os folhetins do Tide e do Omo, adaptados por Alice Ogando e cujo começo era mais ou menos assim: Teatro Tide apresenta.... a gata...
Do lado esquerdo era o meu quarto, do qual tenho a primeira recordação desta minha passagem por este efémero planeta, onde tive a honra de conhecer os meus excelsos amigos, e que se resume simplesmente a isto: um acordar, sentindo qualquer coisa junto aos dedos que se ia desfazendo e que era, afinal, a parede do quarto que eu riscava com as unhas. Ao lado, era o quarto dos meus pais.
Na parte de baixo, a casa tinha menos divisões devido ao espaço que a monumental escada ocupava. Assim do lado esquerdo, tinha uma verdadeira sala de jantar, onde a minha mãe, à quinta-feira, escondia as tangerinas que eu depois me entretinha a procurar para meu exclusivo proveito.
Em frente, era a cozinha que tinha uma despensa relativamente grande. Na altura, ainda não tínhamos fogão a gaz, pelo que o fogareiro de petróleo e aquele fogareiro a carvão do tipo que se utiliza quando fazemos grelhados nas praias eram os mais usados. Assim, em minha casa, na despensa, havia sempre caruma e carvão. E um dia a contemplação daquela caruma deu-me uma brilhante ideia.
Estava sózinho na parte de baixo, ouvia-se o Tony de Matos:
O vendaval passou, nada mais resta...
e eu, pé ante pé, vou até à cozinha para me apoderar dos fósforos, dirigindo-me posteriormente para a despensa. Risquei o primeiro fósforo e, depois de aceso, atirei-o para cima das carumas.
Frustrado, vi que se apagou no ar, pelo que pensei logo em repetir a operação. Como não era muito corajoso, não me aproximei suficientemente e o resultado era sempre o mesmo: fumaça e algum cheiro...
E estava eu todo entretido nesta operação que, mais tarde, me lembraria o que possibilitou aquela cena de Nero a contemplar Roma, quando oiço a voz da minha mãe: Oh Luís! O que é que estás tu a fazer?
Gelei, fiquei paralizado. Só me ocorreu uma resposta: era para ouvir a sirene dos bombeiros...
Não sei se a a sova foi grande ou pequena, sei que deu para fugir de casa, ir até à casa da Vizinha, para me acolher à sua quase maternal protecção, dar umas voltas a fugir em torno da cama, enquanto a minha mãe, ainda relativamente jovem, me perseguia com algo na mão e que eu não queria que me fizesse chegar a roupa ao pelo.
A Vizinha, sempre conciliadora, lá conseguiu acalmá-la e o caso ficou por aqui depois de eu fazer mil promessas de que nunca mais repetiria tão valente feito.

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