quarta-feira, abril 05, 2006

O caso do gato cirúrgico


Era uma manhã primaveril de Ourém quase há uns cinquenta anos. Tinha estado no Central a assistir ao desembrulhar das novidades o que me trouxe irresistível atracção: um álbum do Cavaleiro Andante com uma aventura da cadela Bessy.
Não sei se os meus amigos recordam o fascínio que este canino trazia.
Naquelas aventuras, ela dominava os malfeitores, comandava os rebanhos, mordia os tornozelos de quem a queria atacar, dava monumental salto para cima de quem não tivesse uma atitude correcta com o seu dono ou pedia socorro no rancho mais próximo quando alguém ficava em situação difícil.
Isto também era visível na televisão, onde, curiosamente, não se chamava Bessy, mas Lassy. Não importa.
Vinha eu do Central com o álbum na mão...
Subi as escadinhas junto ao Mariano, virei à direita, avancei e, de repente, dei com eles...
O Licínio e o TóLiz eram duros. Passar no seu território era quase uma aventura do tipo atravessar território apache. Por vezes, cobravam direitos de passagem. Por isso, pus-me logo em guarda à sua aproximação...
- O que é que levas aí? Mostra cá.
É o mostras. Num instante, avaliei a situação e corri para o outro lado da rua. Apanhados de surpresa, eles não reagiram logo, mas, pouco depois, perseguiram-me. Eu corri na direcção da loja do Adelino, flecti para a esquerda e fui na direcção do largo de Castela. Um súbito obstáculo surgiu. No meio da rua, junto à casa do Luís Nuno, estava estacionada uma camioneta do Sr. Isidro, carregada de jaulas com galinhas, frangos, galos, patos e o espaço para passar não era muito largo.
Não abrandei. Corri como pude ao lado da camioneta que, dos lados, tinha daqueles elementos metálicos pontiagudos onde as cordas que seguravam as jaulas se fixavam. De repente senti o braço preso e a camisa a ser rasgada. O corpo foi projectado para a frente e para a direita, aproximando-se do chão. Bati com a cara em cheio mais à frente na camioneta.
Mesmo assim, não desisti. Livrei-me da camioneta e continuei a corrida para o Largo de Castela, enquanto eles desistiam vendo a minha situação. Ao mesmo tempo, a minha camisa ia-se tingindo de vermelho.
Ao chegar a casa, com o álbum na mão, esfarrapado, a minha mãe ficou aterrorizada.
- Ó Luís, já viste como tu vens, o que é que te fizeram?
Mas eu não consegui falar. A pancada tinha sido forte, sentia algo estranho sobre os dentes à frente que estavam doridos.
- Mas tu estás a deitar sangue, tens o lábio aberto...
A minha mãe percebeu do que se tratava.
- Tens de ir para o hospital.
- Não - murmurei como pude, com a mão sobre a boca e já a pensar nas torturas que aí vinham - isto passa...
Mas não passou e tive mesmo de ir para o hospital.
Lá, o enfermeiro Cruz examinou-me cuidadosamente, estancou a hemorragia, desinfectou a zona e, pouco depois disse:
- O espigão de ferro abriu-te o lábio. Não vou coser-te, mas tens de levar um gato ou dois...
Fiquei admirado, mas a ideia não me desagradou de todo, já que sempre tive alguma simpatia pelos felinos.
Como devem estar recordados, um gato era uma espécis de agrafo mais largo.
Ele espetou-me dois gatos sobre o lábio a unir os dois pedaços em que se tinha dividido. Imaginem bem, as garras de um felino bem espetadas sobre a vossa boca. Mas confesso que não custou muito. Tudo tratado, tapou e lá voltei para casa.
Não podia falar nem comer com grande facilidade, mas a minha aventura foi estória para os amigos no colégio.
Já mais calmo, tratado, pude finalmente descansar de tão longa caminhada e sentar-me no meu recanto a ler a magnífica aventura da Bessy...

5 comentários:

Anónimo disse...

Mais uma peripécia de infância, bem escrita, com muita graça, realismo e sentimento.
E já havia assaltos nesse tempo...
X

Lobo Sentado disse...

Calma, X
quem me dera os assaltos desse tempo não fosse o precalço dos ferros da camioneta.

Anónimo disse...

Afinal o baú de histórias do Luís ainda tem muito para deitar cá para fora. Não volte a pensar em encerrar o seu "Ourém", Luís. Histórias como estas fazem-nos saltar da cadeira e viajar, sem sairmos do mesmo lugar.

Anónimo disse...

pá!, estória do caraças.

Lobo Sentado disse...

Carmen, isto é ilusório. Cada vez é mais difícil encobrir o baú vazio.
sf, é um gosto que apareça.
Obrigado aos dois

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