Poemas entrelaçados..., 6Porta #4: Amigo da bicharadaHá dias, estava no Central e ouvia o miar lancinente de uma série de gatos, entretanto abandonados pelo facto de a sua dona estar numa condição física que não lhe permitia prosseguir o tratamento. Vistos do café, em cima do telhado, ao fim do dia, com restos de Sol projectados sobre eles, mostravam toda a sua beleza. Mas a situação não deixava de ser muito triste e a questão ocorreu imediatamente: não existirão serviços na autarquia que os possam recolher, tratar e eventualmente reencaminhar para adopção?
Ourém, noutros tempos, era uma terra amiga da bicharada. Que o digam os familiares do médico veterinário que nos legou um
Caderno de apontamentos e cujo carteiro procurava o
devaneio nocturno. Que o diga a estória do
gato cirúrgico ou
a paciência do Tejo naquele dia em que resolvi dar-lhe um banho.
Mas mais enternecedor que tudo isso é, com certeza, este poema de António Gedeão que nos traz a preocupação do ser humano com estes amigos quando sente a inevitabilidade de os vir a abandonar.
Poema do gato
Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prá rua,
cheira o passeio
e volta pra trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre pra mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente.
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas.
e rosna.
Rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
António Gedeão