sexta-feira, junho 19, 2020

Um encontro casual

No sábado seguinte, na cabana na Urqueira, a Deolinda procurou o João.
- O meu irmão quer que o acompanhes às compras para os ajudar a trazer as coisas. Vai tomar banho para não chamares demasiado a atenção e tem cuidado durante a deslocação, pois, se fizeres algum movimento em falso, eles não são meigos.
- Não me obrigues a ir. Não me apetece sair daqui.
A rapariga ficou irritada.
- Faz o que te digo. Olha que te arrependes.
Nesse momento, apareceu o pai da rapariga.
- Então, isso está demorado?
- Ele diz que não quer ir convosco.
- O quê? – avançou rapidamente para o João e enfiou-lhe um murro no olho esquerdo.
O rapaz caiu no chão e, quando esboçou o gesto de se levantar, viu que o indivíduo se preparava para o pontapear. No entanto, a rapariga interpôs-se.
- Pai, não precisas ser tão violento. Eu tenho a certeza que ele vai convosco.
- Então que se despache.
Daí a pouco, um estranho trio circulava pela Urqueira a adquirir alguns bens essenciais para a sua subsistência. Quando entraram na loja do ti’Alberto, o Amândio ia a sair e reparou neles. Ele não conhecia o João, mas a sua cara fez-lhe lembrar alguma coisa.
«É estranho. Aquele rapaz nada tem a ver com aqueles indivíduos. Acho que já o vi em qualquer sítio.»
Esperou que eles saíssem da loja e reparou então que tratavam o João como um criado sem direitos dirigindo-se para uma azinhaga e pouco depois desaparecendo da sua vista.
«Já sei, é a ciganada que construiu a cabana de madeira lá atrás. Mas o rapaz parece contrariado.»
E, de repente, fez-se luz.
«Já sei, é o miúdo pelo qual oferecem uma recompensa em Ourém Tenho de avisar o Estorietas.»
Foi buscar a bicicleta e pôs-se a caminho de Ourém, pedalando a toda a velocidade. Demorou cerca de meia-hora a chegar à casa rosa da Rua de Castela onde pôs o seu amigo ao corrente do que se passava.
- Vamos falar com o Dr. Preto para ele decidir.
Pouco depois, o Dr. Preto e a GNR estavam ao corrente da localização do João e seus sequestradores e uma força policial pôs-se a caminho da Urqueira tendo procedido à libertação do João e efetuado a prisão da Deolinda e seus familiares.
O Estorietas e o Amândio recusaram a recompensa, mas aceitaram um lauto banquete no restaurante do café Avenida na companhia do Dr. Preto. Ainda estavam a meio da refeição quando viram o João entrar e saudaram-no.
O Estorietas levantou o seu copo e afirmou:
- Bebo à tua saúde, amigo João. Não te esqueças de fazer outro disparate para termos recompensas como estas…
- Não haverá mais disparates – garantiu o Dr. Preto. – Vou cortar-lhe a mesada e as saídas. E, para o acalmar, vou receitar-lhe uma coisa que ele próprio sugeriu há uns dias: um clister diário com sedativo. De certeza, não terá vontade de fazer mais disparates.




FIM

quinta-feira, junho 18, 2020

Recompensa por um pirata

Três dias depois, sem qualquer notícia do João apesar das diligências da GNR, o Dr. Preto dirigiu-se ao posto com o objetivo de falar com o comandante que o recebeu imediatamente.
- É verdade, doutor. Apesar dos nossos esforços, não consigo transmitir-lhe qualquer boa notícia. Até parece que se evaporaram.
- Mas não seria possível fazer uma busca sistemática pelo concelho utilizando em simultâneo um grande número de agentes?
- Doutor, deixe-nos proceder às investigações. Em breve, teremos notícias, tenho quase a certeza. Eu respeito a sua ansiedade, mas deixe-nos trabalhar. Pelo menos até agora, não teve nenhuma má notícia e estas chegam sempre depressa.
- Grande consolação… mas informo-o que decidi fazer uma coisa.
- O quê, posso saber? Tenha cuidado, olhe que este caso só o é devido a todos os disparates feitos.
- Sou suficientemente maduro para determinar o que posso ou não fazer – respondeu secamente o Dr. Preto. -  Vou oferecer uma recompensa de 100 mil escudos a quem der informações fidedignas e que nos conduzam a encontrá-lo.
- Cuidado, doutor, há muitos aldrabões que podem tentar aproveitar-se da oferta. É uma quantia bastante elevada…
- Deixe lá, ele pagará em duplicado, porque o deixarei sem mesada até me sentir compensado.
Nessa mesma tarde, o Dr. Preto foi ter com o Melo à tipografia e, ao fim da tarde, estavam feitos cartazes oferecendo uma recompensa a quem desse informações sobre o João que levassem ao seu retorno são e salvo.
Mais uma vez, o grupo de amigos do João, agora incluindo o Estorietas, participaram na distribuição do cartaz, colando-o em pontos chave da vila desde o CFL até ao Regato e à Melroeira.
E foi exatamente no CFL que o Amândio teve conhecimento de que o João era procurado, depois de uma fuga com uma rapariga muito bonita e dois indivíduos mal encarados com um aspecto que fazia lembrar ciganos, sendo oferecida uma recompensa de 100 mil escudos a quem desse informação que ajudasse a encontrá-lo.

quarta-feira, junho 17, 2020

Caminho para a escravidão

O carro em que seguiam o João, a Deolinda e os familiares desta saiu de Ourém a toda a velocidade e com os seus ocupantes muito nervosos.
- Eu logo vi que este gajo nos ia arranjar algum problema – dizia o irmão da rapariga, olhando significativamente para o João.
- Cala-te – respondeu ela. – Vocês é que são uns atrapalhados, pois não perceberam que os cartazes eram uma armadilha para nos atrair a Ourém. Caíram que nem uns patinhos…
- Agora, não podes ficar naquela casa. Se te apanham acabas por nos denunciar.
Chegaram à cabana e começaram a levar todo o recheio para dentro do carro. O João olhava tudo aquilo como se fosse um sonho, não acreditando no sarilho em que se tinha metido.
- Esperem. Eu posso voltar a Ourém e assumir o que fiz…
- Para nos denunciares? Não! Vais connosco e não voltarás a ver os teus amiguinhos. Vamos, salta para o carro, pois ainda temos de voltar para levar mais coisas.
Arrancaram na direção de Caxarias. Passaram a povoação e, pouco depois, chegaram à Urqueira. Aí, meteram-se por um caminho não alcatroado e, pouco depois, chegavam a nova casa construída em madeira. Era bem maior que a da rapariga, mas notava-se que estava pouco cuidada.
- Esta é a tua nova casa. Só sairás daqui na companhia de um de nós. Para já, não irás a Ourém, nem temos necessidade, pois há uma ou duas lojas aqui na Urqueira onde nos podemos abastecer da maior parte das coisas.
- Mas porque não me deixam regressar? Eu juro que não digo nada…
- Para já, vais trabalhar um pouco para nós. A Deolinda mostra-te o local onde vais dormir e ficas encarregado de tratar das galinhas e dos porcos. Ai de ti se deixas os bichos com fome.
- Eu a tratar de gado? Não sei, nunca fiz uma coisa dessas.
- A Deolinda ensina-te. Vá, rapariga, não querias escolher o teu noivo? Ensina-o a trabalhar. Já… - e deu um tal piparote na filha que ela movimentou-se imediatamente.
- Anda, João. Vem comigo.
Saíram os dois e ela conduziu-o aos currais e capoeiras ao lado dos quais havia uma pequena casota.
- Aqui encontras tudo para tratar da bicharada. Tens água naquela torneira e todas as manhãs limpas o curral dos porcos. Tens ali palha seca para substituir a que retiraste. Em relação às galinhas tens que lhe dar milho duas vezes por dia, deixa-as andar pelo campo e, depois, recolhe-as…
- Eu… eu… eu…
- Anda, agora vou mostrar-te onde vais dormir.
E conduziu-o a um casebre onde existia uma cama andrajosa.
- Podes dormir ali. Depois de jantar, vens para o teu quarto e o meu irmão virá trancar-te a porta. De manhã, tirará a tranca e podes cumprir o teu trabalho.
- Mas… mas… então não vou ficar contigo?
- Tudo passa, João, tudo passa… Apoiaste-me contra o Estorietas, mas algo estragou tudo. Desculpa, mas já não tenho qualquer interesse em ti.
- Mas tu juraste…
- Nunca acredites nas promessas de uma mulher. Têm sempre validade limitada.
O João sentiu-se desesperado. De um momento para o outro ficará sem os amigos, sem a rapariga e podia considerar-se numa situação de quase escravatura.

terça-feira, junho 16, 2020

A libertação do Estorietas

Após entregar o busto a mestre Bernardino, o primeiro acto do comandante foi voltar ao posto e abrir a porta da cela onde estava o Estorietas. Foi acompanhado por grande grupo de miúdos que, mal ele saiu, o saudou com uma salva de palmas.
- Caro Estorietas, – disse o comandante. – lamento o tempo que aqui passou o que foi motivado por uma prova forjada contra si pelo João e pela Deolinda.
- Já tinha pensado nisso, mas confesso que fiquei muito desiludido com o João. Que lhe vai acontecer?
- Ainda não sabemos. No fundo o delito que cometeu nem é muito grave. Foram piores as consequências da prova forjada que o fizeram passar este mau bocado. Tenho de falar mais uma vez com o Dr. Preto. Possivelmente, será enviado para uma casa de correcção.
- Não, não façam isso ao meu querido irmão – suplicou a Luzinha. – Eu ajudarei a fazê-lo voltar ao bom caminho.
- Todos nós ajudaremos, comandante – garantiu a Teresinha. – No fundo, a culpa disto foi toda minha ao atirar-lhe um saco de farinha à cabeça.
- Não se culpe, menina, nem culpe o saco. A culpa foi toda dele e da rapariga com quem se relacionou. Mas ainda não o apanhámos, vamos ter de o procurar e, antes de qualquer decisão, terei de falar, mais uma vez, com o Dr. Preto.
Os miúdos foram embora, agora acompanhados pelo Estorietas, e o comandante preparou-se para mais uma missão:
- Guarde Ernesto, prepare o jeep e mobilize o Elias. Vamos fazer uma investigação à zona do Olival.
Pouco depois, partiam na direção da cabana da Deolinda. Encontraram-na completamente abandonada como se ninguém a habitasse.
- Fugiram – dizia o comandante, afagando queixo. – Vou ter de falar ao Dr. Preto para lhe contar a situação do neto. É uma pessoa tão boa que não merecia um pirata destes lá em casa.
Pouco depois, o prestigiado médico era posto ao corrente da situação e ficou bastante incomodado.
- Faremos tudo para o encontrar, doutor.
- Conto convosco. Se não o encontrarem no prazo de três dias, eu próprio tomarei a iniciativa de fazer algo.
- Espero que não seja necessário. Envidaremos todos os esforços.

segunda-feira, junho 15, 2020

O busto volta a casa do legítimo dono

Depois de sair do Avenida, triste por não encontrar os amigos, o João voltou à cabana da Deolinda.
- Então o meu gatinho já voltou? Não encontrou os seus amigos?
- Penso que eles suspeitam que eu fiz uma partida ao Estorietas e estão a pôr-me de lado.
- Olha, há sempre um momento em que temos de optar. Se te puserem de lado, é porque não te merecem…
- Mas o Estorietas era meu amigo, a sério. Sempre o considerei um indivíduo ponderado, amistoso…
- Meu querido, estás no mesmo barco que eu. Aquilo que já lhe fizeste com certeza não tem perdão. Mas vem, vem aos meus braços, eu consolo-te…
O João deixou-se envolver no quente abraço da rapariga. Mas não lhe correspondia o que começou a irritá-la.
De repente, ouviu-se uma travagem no exterior e, pouco depois, uns passos aproximavam-se da cabana.
- Deolinda, Deolinda…
- Eles, outra vez… - murmurou o João.
Efetivamente, eram os familiares da rapariga que chegavam com um significativo ar de aflição. A rapariga ficou apreensiva.
- Que se passa?
- Deolinda, temos de devolver imediatamente o busto. Parece que contém um dispositivo que, se rebentar, pode libertar um gás tóxico e destruir a cabana…
- Não acredito, isso é uma brincadeira…
- E como ter a certeza? Vamos é libertar-nos dessa porcaria. Diz ao teu namoradinho para pegar nele e o trazer. Nós levamo-lo a Ourém e vai ser ele quem deixará o diabo do busto à porta do Bernardino.
O João apressou-se a obedecer. Ocupou lugar na parte de trás do carro ao lado da rapariga e partiram todos para Ourém, chegando pouco depois junto do ringue de patinagem da Juventude onde estacionaram.
Só o João saiu do carro para deixar o busto. Entrou pela pequena vereda que conduzia ao portão de entrada no campo, ali mesmo ao lado da farmácia Verdasca, e, pouco depois, deixou o busto voltando a correr para o carro, sem notar que era seguido por muitos olhos.
Ainda vinha a correr quando alguém gritou:
- Pare! Pare imediatamente!
Mas não obedeceu. Atirou-se para dentro do carro que arrancou logo de seguida. Ninguém os apanhou, mas, a partir daquele momento, o João era um «homem mau».
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