sábado, novembro 16, 2019

Aprenda a explorar qualquer indústria





Eis mais um livro do baú.
Não sei qual terá sido o seu ano de edição. É dedicado a "fórmulas práticas para se ganhar dinheiro explorando qualquer indústria, ao alcance de todas as inteligências".
Magnífico legado em que tudo parece fácil perante uma realidade que o desmente ao vermos as dificuldades que as gerações que chegam ao mercado de trabalho têm para organizar as suas vidas.
Mas é curioso: há uma personagem que participa em torneios de Bridge que acho tremendamente parecida com o da capa do livro...

sexta-feira, novembro 15, 2019

Ilustração da vida



Voltei ao baú da casa dos fantasmas
Reparem na ilustração. Não lhe critiquem o mau estado, ela tem mais de cinquenta anos.
Sempre a olhei embevecido. Nela revejo o meu percurso, se calhar semelhante ao de muitos de vós. Recordo o primeiro acordar consciente na casa do largo de Castela, no quarto frente à rua da Olaria, com as unhas a raspar a parede. 
Depois, o arco parece tirado a papel químico daqueles que nós usávamos; faltam talvez os carros de pau que os prisioneiros junto à Câmara nos faziam ou as carretas que inventávamos para descer a rua. 
Recordo o enamoramento, quase paixão, os dias de nascimento dos filhotes, a alegria que eles me transmitiram. O primeiro na tropa em pleno processo revolucionário em curso, o segundo já bem estabelecido como técnico de informática.
Nunca fui grande caçador embora tivesse cometido algumas malfeitorias de que logo me arrependi e, é verdade, até já tentei o discurso político sem qualquer êxito. Ainda bem que não me ligaram nenhuma, pois não teria jeito para o exercício de funções.
Agora, parece que me sinto naquela fase descendente que culmina no velhinho que já não dá acordo de si e que tem à sua frente o paraíso. Já falta pouco tempo, ainda bem porque a adaptação é cada vez mais difícil.
Olho aqueles animais, de certeza a Pipoca não poderá estar lá, tão má que era, tão disponível que estava sempre para a mordidela ou para espetar as unhas. 
A ilustração mostra assim a sequência do nosso percurso na unidade de contrários vida e morte...

quinta-feira, novembro 14, 2019

A aula de História

Da Divina Comédia...


Naquela manhã, o Dr. Armando estava visivelmente bem disposto. Envolto em enorme sobretudo cinzento, entrou pela sala de aula, exibindo as baforadas do seu cachimbo.
Nós esperávamos em pé, sentindo o desconforto do assento das carteiras nas pernas, por trás dos joelhos, fazendo-as dobrar-se.
- Podem sentar-se – disse ele.
Enquanto nos sentávamos, ele inspirou intensamente a partir do seu objecto de fumo e lançou-o pelos ares.
- Sumário: A Divina Comédia.
(Lembro-me que quando chegava a casa e o meu irmão me perguntava “então o que fizeram hoje?”, eu respondia “fizemos o sumário...” e ele retorquia “isso é o resumo das coisas que se vão dar...”)
Aquele excelente professor fitou-nos e começou:
- Hoje vamos falar de um vulto incontornável da litereatura medieval: Dante. Foi autor de uma obra que, em crítica à religião católica, nos traz a sua caminhada pelo Inferno, pelo purgatório, pelo céu...
Nós começávamos a ser levados para o ambiente que ele criava com a sua descrição. O fumo proveniente do cachimbo conferia-lhe ainda uma certa distância e, apesar de, de quando em quando, aquela mão descer sobre a secretária com incomensurável força e ruído, iamo-lo seguindo dando por bem aproveitada aquela disponibilidade que ele conseguira para estar connosco... 
- Dante nasceu em Florença em 1265... - continuem a ler a narrativa aqui - A sua obra fundamental chamou-se «A Divina Comédia», um poema com uma estrutura notável que nos faz passar pelo Purgatório, pelo Inferno e pelo Paraíso apoiado no poeta Virgílio e na sua filha Beatrice.
Depois de nos ter falado na obra de Dante, o professor levantou-se e começou a arrumar o material para dar por terminada a aula.
E foi então que tudo aconteceu...
- Tenho mais uma coisa para vos dizer. Como sabem, tem estado entre nós o grande desenhador Garcês que está a fazer o trabalho prévio para a publicação da História de Ourém. Este autor tem muitos episódios da História de Portugal disponíveis em BD. Ele e o grande José Ruy têm contribuído imenso para o conhecimento da nossa História através da sua obra notável. Depois de algumas horas de negociação consegui convencê-los a realizarem no CFL algo que nunca aconteceu em Ourém, exatamente: «A primeira conferência sobre  Banda Desenhada na divulgação da História de Portugal». Claro que todos devem estar presentes, isto é, não serão toleradas faltas sob qualquer pretexto.
Entusiasmado, o Jó Alho levantou-se e perguntou:
- Sr. Doutor, posso vir vestido de Cavaleiro?
O Dr. Armando olhou-o furibundo. Num instante perdeu toda a doçura que tinha mostrado na aula. Abriu a janela que dava para o recreio dos rapazes e berrou:
- Anda cá, malandro!
Pegou no Jó Alho e atirou-o pela janela para fora da sala de aula, fazendo-o passar miraculosamente pelo espaço deixado livre pela caixilharia.
O Jó Alho era bastanre elástico. Mal atingiu o chão, rebolou e pôs-se em pé de um salto. Olhou espantado para o que lhe tinha acontecido e, já refeito, reapareceu à janela:
- Posso entrar por aqui para ir buscar os meus livros?
- Some-te, malvado - gritou-lhe o professor.
E assim terminou aquela brilhante aula de história

quarta-feira, novembro 13, 2019

O arrear da bandeira

No local onde agora é o ISEG, existia uma pequena esquadra de polícia. Todos os dias cumpriam o saudável ritual de hastear e arrear a bandeira.
Do outro lado da rua, ainda existe uma pequena pastelaria, a pastelaria Dâmaso, com uma minúscula esplanada onde por vezes nos sentávamos à espera da hora da jantarada.
Um dia estava lá em amena cavaqueira com o Morgado, um sujeito de Viseu que morava perto da Emissora na célebre Calçada do Pasteleiro.
E,  de repente, aconteceu aquilo…
Do outro lado da rua, começámos a ouvir vozes e movimentos. Era o infalível procedimento do arrear da bandeira. Ciente de que eram sete horas, levantei-me e preparei-me para o regresso a casa, o Morgado permaneceu sentado ainda aguardando o troco.
Mas uma voz gutural impediu as nossas intenções:
- Esse senhor aí…
Virámo-nos admirados.
Um fardadinho com cassetete olhava-nos com ar de poucos amigos.
- Esse senhor aí, venha cá falar connosco.
E fomos os dois a pensar no que aquilo ia dar. Quando chegámos, ele insistiu olhando para mim:
- Não é nada consigo. Vá-se embora.
- Mas nós não fizemos nada… eu estava com o meu amigo.
- Já disse. Retire-se imediatamente.
E apontou-me o cassetete. Bolas! Apressei-me a obedecer e abandonei o meu amigo.
Mal disposto, danado comigo, cheguei a casa e contei aos outros.
- Vão-lhe dar tareia até de manhã – dizia o Morais, o verdadeiro Morais.
Depois do jantar, passámos perto da esquadra, mas ficámos mais tranquilos porque tudo parecia calmo. Não se ouvia qualquer grito.
- Se calhar já está desmaiado. Vamos até ao Granada.
O Granada era o nosso café, perto dos armazéns Conde Barão. O grupo já começava a ser grande devido aos amigos do Morais e aos novos conhecimentos.
O caso do Morgado foi ventilado e todos estavam apreensivos, embora neste momento não houvesse qualquer vestígio de subversão entre nós.
E, de repente, entrou o Morgado. Admirados, vimos que ele não trazia nenhum olho ao peito e vinha todo sorridente, todo inchado por ser o foco das atenções.
- Grandes amigos, hem? – disse olhando para mim.
- Jorgito, estávamos todos preocupados. Que fizeram? Bateram-te?
- Não, apenas me identificaram, fizeram uns telefonemas e mandaram-me logo embora.
- Mas que tinhas feito?
- Aqueles burgessos entenderam que eu tinha desrespeitado a bandeira.
- O que? Tu? Quando?
- Quando foi o arrear… eu estava sentado e não me levantei.
- Mas eu estava contigo…
- Pois estavas, mas levantaste-te exatamente naquela altura para ires embora, inclinaste-te para dizer qualquer coisa e os estúpidos entenderam que isso era um gesto de respeito.
Ditosa sorte a minha! É que sempre tive gestos repentinos salvadores.

terça-feira, novembro 12, 2019

O sequestro do Baloo

O Baloo vivia em Ourém e acompanhava todos os dias uma senhora, a sua dona, Natacha Pigmalião, ao supermercado. Era o cãozinho mais simpático, fiel e brincalhão que se pode imaginar.
Ficava à porta aguardando fielmente a dona. Não ligava a quem passava, olhava fixamente para o interior. Depois, quando ela saia, acompanhava-a a um metro de distância sem a perder de vista. Não consentia qualquer trela porque era fiel ao extremo.
Mas os nossos passos estão sempre a ser seguidos por quem se quer aproveitar de nós, sem nos apercebermos disso.
Houve alguém que viu o seu comportamento e pensou:
-É mesmo o cãozinho que eu precisava. Como farei para o apanhar?
O malvado arquitetou rapidamente um plano. Assim, um dia dirigiu-se ao café Central e comprou uma dúzia de pastéis de nata, carregando-os de soporífero. Na loja do Moreira, comprou “petfood” e no seu interior disfarçou o mesmo produto.
Pelas quatro da tarde, dirigiu-se a casa da dona do Baloo. Era simpático, charmoso, insinuante…
- Olá, minha doce amiga, trago aqui uma oferta para si e para o Baloo.
Ela ficou encantada.
- Oh! João! É tão simpático em ter-se lembrado de mim. Mas entre, entre, eu vou fazer um chá e terei muito prazer na sua companhia.
Na sala, estava o Baloo que ficou todo contente com a visita.
- Trago também estes docinhos para o Baloo.
- É tão simpático. Vou já dar-lhos.
Todo risonho, o simpático burlão ali esteve perto de meia-hora a dar conversa à dona do Baloo. Este já dormia a um canto quando ela disse:
- É curioso. Estou a ficar cheia de sono.
O João aproximou-se, deu-lhe um beijo na testa e confortou-a:
- Então durma, durma, eu retiro-me já de seguida. Deixo a porta aberta, porque o Baloo pode querer ir à rua…
E ela adormeceu profundamente.
Quando acordou, tinham passado umas três horas e reparou que estava sozinha.
- Meu Baloo! Onde está o meu Baloo?
O João já tinha saído e notou então que ele tinha deixado a porta aberta (o que não é de estranhar na Ourém dos bons tempos).
- Se calhar fugiu. Que lhe terá acontecido?
Nunca mais viu o cãozinho. Passaram-se alguns anos.
Um dia, quando consultava o Facebook, viu que ele acompanhava um sujeito muito parecido com o seu amigo João, mas uns anos mais velho, que aparecia todo encapuçado e que, descobriu pouco depois, se dedicava a enganar alunas com falsas promessas de torná-las grandes jogadoras de Bridge. Intrigada pensou:
- Terá sido ele?... Tenho de apurar a verdade.
E pôs-se a caminho de Madrid, procurando a morada que um dia o João lhe tinha fornecido…
Encontrou-os com alguma facilidade, pois o João, julgando ficar impune, não se disfarçava numa Metrópole tão grande.
Quando a viu, o Baloo correu para ela e saltou-lhe para o colo. Foi o primeiro beijo depois de tão longa ausência. Ficou sem dúvidas que era o seu Baloo. Mas o ar do João mostrou-lhe de imediato que não levaria a melhor.
- Cabrönaza!! Voy a dezer qua apoyas la independenza del a Cataluña e serás presa multos anos. Jejejejejeje!!!!!
E assim fez. A pobre senhora foi levada pela Guarda Civil, na sua mala encontraram duas granadas que o João sorrateiramente lá tinha posto e o Baloo ficou com o sequestrador.
Natacha Pigmalião nunca mais voltou a Ourém. Consta que ainda aguarda julgamento por terrorismo…



segunda-feira, novembro 11, 2019

1968: a ida às Sortes




Fomos convocados prá banda
Que é que nos querem fazer?
Contratar carne pra canhão...
Será que isso lhes dá prazer?

Mas onde está o Luís Nuno
Que também é da nossa idade?
Pirou-se para França, oportuno,
Anda preso à saudade...




O que pensam eles de nós
Enquanto aqui esperamos?
Até nos mandaram despir ...
Julgam que são nossos amos?



Olha o papelinho na mão
Contentes por ser perfeitos
Mas no fundo a apreensão:
A que vamos ser sujeitos?

Vamos buscar os instrumentos
E cantar nossa desdita
Toda a gente de Ourém
Merece saber da fita



tum, tum, turum, tum, tum

Ouve lá, ó mãe querida
Querem que eu vá prá guerra
Que abandone a boa vida
E oprima os de outra terra

tum, tum, turum, tum, tum



tum, tum, turum, tum, tum

Vamos direitos à Praça
Para toda a gente ver
Que o pessoal até tem raça
Que é bravo a valer

tum, tum, turum, tum, tum

5 anos vão esperar
Podiam até ser mil
O curso quero tirar
E ser tropa em Abril

tum, tum, turum, tum, tum



Almoçámos no Vilar
Que hoje é vila por sinal
O repasto até foi bom
E partimos pró Agroal



Ai que águas tão bonitas
Aqui viemos encontrar
Mas as guerras são malditas
Há que as fazer acabar




Vamos fazer um bailarico
A banda é um bom lugar
Toma banho, põe a gravata
É toda a noite a dançar


domingo, novembro 10, 2019

O gerico do Clemente



Que mártir, as 5.as feiras,
Quando ia para o mercado
Carregadinho, ajoujado
Com sacas, fardos e ceiras!


Se eu lhes disse que o jumento
Carregava como um macho,
Palavra que nao invento,
Calculo ainda por baixo.


E era tao forte o costume
Que fôsse o peso qual fosse,
No seu olhar triste e doce
Nao se lia um azedume.


Um dia, vendo-lhe as chagas,
Compadecido, o patrao
Resolveu, com muitas pragas,
Melhorar-lhe a situaçao.


E pôs-lhe em cima um carrego.
Tao leve, tao maneirinho,
Que até no dedo mendinho
O levaria um galego!


Pois, nao lhe digo mais nada!
O pacientíssimo bruto,
Ao sentir sôbre a lombada
Um peso tao diminuto,


Pôs-se aos coices a zurrar,
A recusar o serviço
E naquele reboliço
Atirou a carga ao ar!


Conheço muito casmurro
Que, em sendo tratado bem,
Agradece como o burro
De Vila Nova de Ourém.


(Do livro Fábulas e historietas de Acácio de Paiva) in Notícias de Ourém de 07-04-1935
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