«Chamem Inês, digam-lhe para vir imediatamente.» A voz de
Lenine é fraca, mas o tom é firme. Está no seu quarto no Kremlin, as duas balas
que o atingiram causaram danos na garganta e nos pulmões; os médicos acabam de
lhe dizer que se trata de uma ferida feia, poucos milímetros salvaram-lhe a
vida. Agora vai precisar de muitos cuidados e de um longo período de
convalescença. Para lhe permitir um pouco de repouso, e por precaução, ninguém
pode aproximar-se.
Lenine está cansado, assustado, algumas horas antes a morte
passou por ele, vê-se obrigado a obedecer aos médicos e a permanecer naquele
quarto longe de tudo e de todos, ao menos por algumas semanas. Fá-lo-á, mas
quer que Inês esteja perto dele.
O atentado aconteceu no final de uma assembleia de
trabalhadores da Mickelson Plant. Marija, a irmã que vivia com ele no
apartamento do Kremlin atribuído à família Ulyanov, desaconselhara-o a
participar naquele encontro. O chefe da Ceka de São Petersburgo tinha sido
morto e Marija não achava prudente que o irmão se deslocasse a um lugar público
sem escolta. Lenine não lhe deu ouvidos. Desde que regressara a Moscovo, depois
de assinar a paz com os alemães, queria encontrar-se o mais frequentemente
possível com os trabalhadores militantes para limpar, através daquelas relações
diretas, uma imagem negativa e a desconfiança que ainda sentia viva em parte do
povo, já que o chefe dos bolcheviques regressara num comboio do inimigo,
assinara a paz com este e, depois da Revolução, para fugir ao processo escapara
para a Finlândia.
O pressentimento de Marija revelou-se acertado: quando,
depois de falar com os trabalhadores, se dirigia ao automóvel, foi atingido por
duas balas disparados por uma jovem de nome Fanny Kaplan. Caiu, com as mãos na
garganta, a camisa suja de sangue. Quem, até ali, o ouviu, aplaudiu, e seguiu
com o olhar os seus passos, temeu pela sua vida. Mas Vladimir Ilyich ergueu-se
imediatamente e, mantendo as mãos na ferida, entrou no carro e ainda conseguiu
fazer sinal para arrancar. Foi o motorista, Stepan Gil, quem decidiu a direção:
diretamente para o Kremlin. O hospital não era um lugar seguro, eram muitos —
pensou o fiel Stepan — os que desejavam a morte de Lenine, qualquer um poderia
aproveitar facilmente. Chegados ao edifício vermelho, Lenine conseguiu subir as
escadas, chegar ao quarto e ao seu leito. Aí Marija e Nadja fizeram o que
puderam; foram elas a prestar-lhe os primeiros socorros porque não confiavam em
ninguém. Os cirurgiões chegaram apenas na manhã seguinte.
Inês chega rapidamente. Já sabia do atentado, mas conseguiu
conter o impulso para ir logo ao seu encontro. Conhecia bem as regras que
disciplinavam a vida do chefe do Estado soviético e sabia que era difícil, num
momento daqueles, aproximar-se da sua cabeceira, até mesmo ela que ainda
mantinha uma relação de intimidade com ele. Agora, apressa o passo, as poucas
centenas de metros que deve percorrer são mais rápidas do que o habitual.
Acompanhada pela filha Varvara, chega ao apartamento de Lenine e entra no seu
quarto. Presentemente, aquela divisão com o resto do apartamento foi
transferida, na íntegra, do edifício do senado do Kremlin para uma pequena dacia
a trinta quilómetros de Moscovo, nos arredores da localidade de Gorki
Leninskie. Não é grande e está modestamente mobilada. O mesmo apartamento
inclui os quartos de Nadja e de Munja, depois há uma salinha com um piano e uma
cozinha sem adornos com chávenas lascadas, panelas remendadas e o mínimo
necessário. O quarto de Vladimir Ilyich é quase todo ocupado pela cama de ferro
forjado, com o cobertor aos quadrados, uma cómoda e uma poltrona. Três pessoas
naquela divisão serão demais, pensa. Talvez por isso Marija e os médicos saem
rapidamente deixando espaço para Nadja, Inês e Varvara.
Nos primeiros minutos do encontro, Vladimir Ilyich e Inês
estão nervosos e acanhados, não conseguem falar muito: a emoção, o medo e o
perigo da morte libertaram os seus sentimentos mais profundos, mas as palavras
— as únicas possíveis perante a presença de Nadja e de Varvara — só podem ser
de cortesia afetuosa. Nadja percebe o embaraço, sabe o que desejaria Vladimir
Ilyich e está habituada a secundar os seus desejos, mesmo quando a magoam,
dizendo a Varvara que quer mostrar-lhe algumas fotografias de família,
convidando-a a sair do quarto.
Vladimir Ilyich e Inês ficam a sós, as mãos que se apertaram
num cumprimento afetuoso procuram-se de novo para um contacto mais intenso. Os
sentimentos, até ali postos de parte em nome de «questões mais importantes», no
silêncio daquele pequeno e austero quarto do Kremlin voltam a encontrar os seus
valores. A partir daquele momento, renasce uma intimidade que estava suspensa e
inicia-se um novo capítulo da sua história.
Apenas a algumas centenas de metros daquele apartamento,
Fanny Kaplan, a atacante, a jovem que disparou dois tiros de pistola, é
interrogada pela Ceka. A polícia secreta sabe que é uma anarca e que durante o
regime dos czares passou alguns anos nos campos de trabalho. Agora é uma
socialista revolucionária, mas — como afirma — agiu na ignorância dos seus
companheiros, isolada e por vontade própria. Fanny Kaplan considera Lenine um
traidor. «Quanto mais tempo viver», diz, «mais se afasta a ideia do
socialismo».
Enquanto Inês e Lenine reatam a sua relação, o comandante do
Kremlin, Pavel Malkov, continua a interrogá-la. Depois, sem investigações
ulteriores, interrogatórios ou processos, aniquila--a. Para não dar azo a
rumores entre os habitantes do edifício, na garagem, onde decorre o
interrogatório, ligou o motor de um automóvel, e depois fez desaparecer o
corpo. Não se saberá mais nada dela: quem era na realidade, para além das suas afirmações,
a jovem que queria assassinar Lenine? Será que não haveria verdadeiramente
instigadores? Teria agido sozinha? Ou seria uma emissária dos
socialistas-revolucionários? O atentado terá sido organizado por homens
insuspeitos e organizações próximas do chefe do Kremlin?