sexta-feira, novembro 01, 2019

Regresso à casa dos fantasmas

Noite saborosa, a manhã quase a clarear. “Não tarda muito começaremos a ouvir os pássaros” – pensámos.
E não nos enganámos.
Por volta das sete, um magnífico cantar trouxe nova vida à nossa casa:


Pi-Pa-Pi-Pa-Pi-Pa-Pi-Pa
Pi-Pi-Pi-Pi-Pi-Pi-Pi-Pi
Pa-Pa-Pa-Pa-Pa-Pa-Pa-Pa
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii


Que simpático passarinho. Logo de manhã a dar-nos música...
Passaram 10 minutos.
- O diabo do pássaro nunca mais se cala...
Sete e meia.
- Já estou com a cabeça doida. Vou enxotá-lo.
A Pipoca já estava escondida debaixo de um cobertor aterrorizada com tanto ruído.
- É ali na chaminé.
Pum! Pum! Pum!
Mas o pássaro não se calava.
- Já sei é atrás daquele vidro. Vem cá e abre a janela...
A vontade não era muita, o frio não convidava, mas lá fui. No fundo, não tinha grande vontade de afastar o bicharoco que tinha sido tão simpático em vir saudar-nos.
- Olha que ele canta muito bem...
- Quero lá saber! Estou farta, já não aguento...
Junto à janela havia um móvel em cima do qual estava um relógio. Aproximei-me e reparei que o ruído vinha mais da direcção do móvel.
Não havia dúvida, era dali...
Peguei no relógio e logo o cantar mudou de direcção, ele acompanhava a minha mão.
- Foste tu quem ligou isto?...


quinta-feira, outubro 31, 2019

O caso do assalto frustrado a duas avozinhas

Naquele fim de tarde, já escuridão, a voz dum famigerado criminoso voltou a fazer-se ouvir num sussurro para os seus capangas que chegava até mim tão perto estava deles numa mesa do Café Avenida.
- Há duas velhotas que vão todos as noites à Igreja. Nas malas levam o dinheiro das reformas e o livrinho de Missa. Não quero que lhes façam mal, mas precisamos do dinheiro delas para continuarmos a nossa partida de King. Ao meu sinal ataquem, mas não esqueçam de lhes deixar o Missal para elas poderem fazer a reza em paz. Se elas resistirem, amordacem-nas e atem-nas pelos pés a um banco da Igreja.

E, à hora por ele marcada, saíram sorrateiramente do Avenida e esconderam-se na esquina da alfaiataria do Zé Penso. 
Do Avenida, vi as velhotas a descerem a rua e a atravessarem a praça Mouzinho de Albuquerque de braço dado, totalmente alheias à sorte que as esperava. Será que podia consentir naquilo?
Rapidamente, elaborei um plano com os companheiros de mesa, uma manobra de diversão. Saímos do Avenida, calcorreámos rapidamente o espaço até às avozinhas e dois de nós tirámos-lhe os chapéus e assim seguimos disfarçados até ao local da emboscada. Ali chegados, a abordagem dos assaltantes foi de imediato repelida e eles foram postos em fuga sem saber quem os tinha tramado.
Com toda a deferência, devolvemos os chapéus às avozinhas que assim puderam assistir à Missa em paz sem lhes passar pela cabeça a malvadez que alguém lhes tinha preparado.
Mas quem seria o famigerado malfeitor que tão más horas queria proporcionar àquelas simpáticas criaturas? No momento da fuga, tentei fotografá-lo, mas um súbito movimento de um capanga introduziu um inesperado elemento de distorção na imagem. Mas, aquelas pernas… aquelas meias… creio que já as vi em qualquer lado… Com um pequeno esforço, talvez os meus amigos me ajudem a identificá-lo...
Não voltes a Ourém, perigoso malfeitor! Breve serás descoberto mesmo que fales castelhano. A Justiça te espera sem piedade…

quarta-feira, outubro 30, 2019

O primeiro grande fanico de um futuro Presidente

Naquele tempo, Cavaco Silva era um rapazinho que ensinava Finanças no ISCEF. Era acompanhado, nas práticas, por uma jovem de nome Manuela Ferreira Leite e a opinião geral era a de que a disciplina era um cadeirão em que exigiam que se soubesse localizar no Orçamento de Estado as rubricas mais estranhas. Apesar de tudo, a sua juventude tornava-os simpáticos num mundo muito cinzento.
Acima deles, assistentes da disciplina, havia o patrono da cadeira, o catedrático Alves Martins de quem se contava um episódio curioso.
Dizia ele, nas suas brilhantes aulas:
- Há tempos estive numa conferência. Só sábios éramos 11, a minha modéstia não me permite mencionar qual o maior de todos eles…
Com sábios destes como havia a disciplina de correr mal?
Ai Ourém que me estás tão longe!...

***



E um dia Cavaco teve o seu primeiro cagaço a sério.
Estava-se numa daquelas aulas teóricas a que assistia o curso todo, mais de 100 mânfios enfiados numa sala, alguns quase pendurados no tecto em posição de morcego. E Cavaco explicava os benefícios de um Orçamento para um desenvolvimento harmonioso da Nação.
De súbito, ouviu-se uma voz que se sobrepôs à do professor:
- O sr. Doutor dá-me licença?

Olhámos todos naquela direção. Um barbaças, mais barbaças que o Marx, com o braço no ar e apontando, parecia querer dizer qualquer coisa. 
A seu lado, com ar de Ciganito, um estudante que hoje todos conhecemos numa prestigiada posição pública(Eduardo Ferro Rodrigues). 
Do outro lado, um dos dirigentes mais dotados que o ISCEF conheceu (Félix Ribeiro), um tipo miudinho de bigode mas de clarividência notável. 
Mas foi o barbaças que retomou a palavra:
- O que o senhor está a dizer só serve os capitalistas, não serve o povo… É preciso fazer um orçamento que sirva o povo e abale o poder dos exploradores.
- O sr. é um contestatário, diga-me o seu nome, vou apresentar queixa à escola.
Um enorme sururu fez-se então ouvir. Cavaco ia tendo um fanico e retirou-se apressado. A partir daquele dia, a figura daquele barbaças passou a inundar a grande maioria das aulas. Alguns tratavam-no por Mestre. Mas o seu nome era Graça, Eduardo Graça, se não me engana a memória porque me parecem Eduardos a mais.


… e, de vez em quando, lá vem o malvado sonho: ainda me falta uma cadeira para acabar o curso…

terça-feira, outubro 29, 2019

Passeio interrompido

Fazem-se passeios com mais de três metros de largura. Que belo espaço para uma caminhada, pensa o incauto transeunte. Depois, instala-se uma esplanada no mesmo. A esplanada até é jeitosa, tem vista para o Castelo, é relaxante, passa-se ali um bom bocado.
Mas não ficaram satisfeitos. Ao espaço ocupado pela esplanada, juntaram uns vasos em madeira cada um deles com perto de um metro de comprimento por cinquenta centímetros de largura.
Alguns desses vasos foram instalados na parte frontal da esplanada o que significa que, quem quer passar frente à mesma tem de ir para a estrada. E garanto que já vi automobilistas a circular nessa estrada a mais de oitenta à hora.
Será que a Administração do Intermarché não tem noção do mau serviço que presta ao obrigar o peão que pretende seguir relaxadamente pelo passeio a fazer parte da caminhada na estrada, isto é, na parte alcatroada do parque de estacionamento onde se circula à bruta?
Se tem, não merece permanecer em Ourém. Se não tem, é inconsciente…

segunda-feira, outubro 28, 2019

Autos relativos a um roubo de equipamento no CFL

Apesar de sair em liberdade graças ao dinheiro de que a família dispunha, o famoso João Passarinho foi submetido a apertado interrogatório acerca da sua capacidade para produzir dinheiro falso, tendo-se apurado que tinha desviado as máquinas para o seu fabrico a partir da reprografia do CFL. Uma pesquisa atenta aos autos, permitiu reconstituir os seus passos, sendo claro que não executou sozinho o crime.
O acusado soube da existência do equipamento e da sua localização através de uma aluna do CFL de nome Teresa Simões que não teve qualquer participação no assalto, já que falou casualmente no assunto. Na posse dessa informação, contatou a Leninha das Meias Negras para conseguir o seu apoio:
- Leninha, hoje vai ser um dia grande em Ourém e na história do CFL, pois vai ser sujeito ao primeiro assalto. Vou dizer o que preciso que tu faças. Dez minutos depois de começarem as aulas das onze, altura em que todos devem estar na sala de aula, vais vestir as tuas meias negras. Depois, escondes os teus cabelos negros sob uma peruca loira e tiras os teus óculos. Vestes-te à turista e vais ao CFL ter com o senhor Nunes e pedir-lhe que ele te mostre as instalações mais afastadas da porta de entrada, pois estás interessada em matricular-te no Colégio no ano seguinte. Não duvido que ele te seguirá imediatamente para todo o lado.
Conseguindo a concordância da Lena, foi falar com a futura enfermeira Céu.
- Céuzinha do meu coração, preciso que me faças um grande favor. Pelas onze e um quarto, o Dr. Armando está à espera de uma enfermeira para lhe dar uma injeção com um anti-inflamatório. Eu quero que tu sejas essa enfermeira, mas não lhe dás o anti-inflamatório, dás-lhe sim um forte sedativo bem injetado no traseiro e, quando ele estiver a dormir fazes-me sinal para eu entrar. Depois, retiras-te tranquilamente enquanto faço o que tenho de fazer.
Tendo conseguido a concordância da futura enfermeira Céu, o acusado pôs o seu crime em prática. Assim, no dia, 14 de Novembro de 1963, quando uma enfermeira do Hospital de Ourém se dirigia ao CFL para injetar um anti-inflamatório ao seu diretor, foi intercetada junto à tasca do Frazão por dois malandrins que a obrigaram a acompanhá-los ao interior da mesma, retendo-a aí durante mais de duas horas. A enfermeira não conseguiu identificá-los, embora um deles fosse parecido com o neto mais novo do Dr. Preto. Quando a libertaram, dirigiu-se ao CFL onde encontrou o Dr. Armando a dormir no seu gabinete e o Sr. Nunes a bater com a mão na cabeça:
- Estou desgraçado. Roubaram o equipamento da Reprografia e eu sou o culpado pois uma loira obrigou-me a sair do meu posto. Maldita a hora em que me deixei enfeitiçar...
Ela tomou imediatamente as medidas para despertar o Dr. Armando e mandou chamar a polícia. Mas já era tarde, o equipamento da Reprografia tinha-se sumido sem deixar rasto.

O Dr. Armando manteve uma calma significativa, talvez um pouco estranha numa pessoa como ele, e tratou de elaborar um retrato robot acerca de quem tinha administrado o soporífero. É esse retrato que aqui reproduzimos e a participação da pessoa a quem corresponde foi confirmada pelo acusado.
Estes autos foram elaborados apenas para constarem na História de Ourém, já que o acusado devolveu tudo e pagou uma caução elevada para sair em liberdade.
Nestas condições, arquivem-se os autos, esqueça-se a acusação e proceda-se à libertação do acusado.
Vila Nove de Ourém, 15 de Dezembro de 1963
O escrivão
(assinatura não legível)
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