sábado, dezembro 07, 2019

O fascínio de um livro de leitura



Livro de Leitura Posted by Hello

Palavras para quê?
Mais um livro que me fascina pelo aspecto e pela simplicidade e ingenuidade de muitos dos seus textos. Um livro, por onde, certamente, terão estudado muitos oureenses do século passado.
Aqui ficam alguns extractos
São textos de Bulhão Pato, Bocage e Xavier de Novais, uma delícia...

sexta-feira, dezembro 06, 2019

O regresso do Luís Nuno


Naquele dia, tinha estado na Revolução até às dezanove. Regressei a casa e informaram-me.
- Sabe, esteve cá um amigo seu...
- Mas quem era?
- Não sei. Trazia umas barbas muito grandes. Disse que volta mais tarde.
Fiquei intrigado. Mas, confiante como sempre, resolvi esperar.
Tocam à porta. Vou abrir e aparece-me um Luís Nuno, regressado de França após longa ausência e dolorosa separação de pais e amigos, completamente diferente daquele que eu recordava. Mal o reconheci, mas o abraço que nos uniu foi mais forte que qualquer desconfiança.
- Então, voltaste de todo?
- Sim, temos que fazer alguma coisa pelo país...
Olhando para ele, como estava diferente!. A pele muito queimada, rouco, barbas enormes, uma respeitável barriguinha. Impressionante...
Pouco a pouco, a nossa conversa mostrou-me que ele era alguém diferente de tudo o que eu podia imaginar.
- Sabes, é preciso ter muito cuidado no trabalho político. Há dias, um grupo em que me integro deu uma conferência de imprensa onde apareceram mascarados...
Lembrava-me. Mais ou menos uma semana antes, tinha visto na televisão uma reportagem sobre uma organização muito estranha que se dava pelo nome Grito do Povo.
E eu continuava a ouvi-lo.
- Os gajos do PC estragaram aquilo tudo na União Soviética. São nossos inimigos. É preciso sabermos escolher muito bem as pessoas para a nossa organização.
Na altura, eu andava entusiasmado com o MES, e falei-lhe nesse movimento.
- Não acredites neles, mais ano menos ano, enfiam-se todos no PS, pelo menos foi o que aconteceu em França.
Eu confirmei a veracidade da previsão do Luís. Mas então quem existiria para suportar uma actividade política pela causa justa?
- E os do PC?
- Só desmobilizam o povo. Não vês o que eles andam a dizer: “o povo unido jamais será vencido”? Isto não é correcto. No Chile, disseram o mesmo e vê o que se passou. Eles pensam que tudo está feito quando o povo ainda tem de vencer. Tem de fazer-se uma revolução democrática popular.
Fiquei admiradíssimo. Para mim, nos livros, vinha revolução socialista e, depois, extinção do Estado.
- Luís, somos muito poucos. Temos que ir com muito cuidado fazer trabalho para os campos, para as fábricas, nas próprias forças armadas. Não te esqueças que as forças armadas são, pela sua natureza, uma força repressiva, mas, no momento final, se trabalharmos bem, os soldados estarão ao lado do povo.
- E que podemos fazer no campo tão afastados que temos estado?
- Há muita coisa a fazer. No local de onde venho, realizavam-se festas populares onde os artistas têm uma mensagem que é imediatamente recebida. Trago-te aqui um exemplo das canções que põem o povo logo a dançar e a desejar a revolução.
E entregou-me dois discos em formato single ou EP que eu contemplei. Tino Flores.
Nunca tinha ouvido aquele artista popular. As canções até tinham um nome engraçado. Ó senhora Guida, O meu amigo está preso...
- Luís, ouve essas canções e podes ter a certeza que com elas convenceremos toda a gente.
Efectivamente, a primeira audição foi fantástica. Eu fiquei a recordar o Luís Nuno como um ser que em determinado momento me tinha trazido a mensagem correcta, a mensagem necessária. E imaginava-me em Ourém, frente às massas, a tentar conduzi-las para a revolução. Mas não conseguia aceitar todo aquele radicalismo que se desprendia da sua figura, das suas palavras.
Abandonar tudo e todos? Os meus hábitos, apesar de tudo, burgueses? Os meus amigos do MES, do PC, do PS...?
Não fui capaz. Fiquei para sempre um adepto da unidade na diversidade de todas as forças da esquerda, inclusivamente em momento de construção da nova sociedade. E, se alguém não estiver de acordo, mais do que o obrigar, há que o ir convencendo pouco a pouco.
A verdade é que o Luís Nuno também evoluiu muito a partir dessa data e transformou-se numa pessoa maravilhosa que pudemos desfrutar até àquele dia de Dezembro. 
E, se ele aqui estivesse, como gostaria de brincar com os blogs!

quinta-feira, dezembro 05, 2019

Vingança servida em aula de Francês

Mas o João não gostou da humilhação que sofrera com a história do clister. A prestação da futura enfermeira sempre lhe pareceu muito suspeita e procurou arranjar uma maneira de se vingar.
A pequena tinha a sua carteira mesmo em frente à secretária do professor. Não é de admirar. Era uma excelente aluna e estava sempre atenta a tudo o que os professores explicavam e não explicavam na aula.
Aos poucos, a sua mente tenebrosa ia formulando um plano.
- Vais ver, malvada, vais ver… - murmurava baixinho enquanto esfregava as mãos.
E, se bem o pensou, melhor o fez…
Um dia, a sua tia, a Dra. Maria Júlia, chegou à sala de aula com o objetivo de transmitir mais umas noções de francês aos seus alunos. Como sempre, pousou a sua mala em cima da secretária e começou a abri-la para tirar o material de apoio.
- É curioso – comentou – esta mala tem qualquer coisa de estranho…
De repente, deu um grito e retirou a mão com toda a força. Logo atrás disso, uma série de pequenos e horrorosos bichos começou a saltar, saindo de dentro da mala.
- Que horror! São ratos… - gritou a futura enfermeira levando as mãos à boca enquanto um rato lhe saltava para o pescoço.
E foi o pânico na sala de aula. Os ratos a correrem para um lado, os alunos a correrem para outro, a Dra. Maria Júlia a subir para cima da secretária e a levantar os pés perante algum bicho que se tivesse atrasado na fuga, numa dança muito estranha que a sua avantajada compleição nunca deixaria pensar possível.
O mais engraçado é que, como ninguém abria a porta, todos ficavam dentro da sala a fugirem uns dos outros. Os alunos fugiam dos ratos, os ratos fugiam dos alunos e todos cada vez mais assustados e a gritar. Por fim, perante aquele estardalhaço, o sr. Nunes abriu a porta e os bicharocos fugiram a sete pés para o quintal. E a paz voltou à sala de aula…
Algumas meninas choravam baixinho. A professora limpava o rosto com um lenço e pediu:
- Por favor, senhor Nunes, traga-me um copo de água…
Depois de saciada, olhou para a turma e afirmou:
- Não percebo o que se passou. Como é possível a minha mala vir cheia com esses bichos horrorosos?
A menina do Castelo, essa, já tinha algum juízo formulado. O seu olhar ia da professora para a mala e da mala para a professora. Nesse momento, à porta da sala de aula apareceu o João.
- Olá! Tiveram problemas? Ouvi tanto ruído aqui ao lado…
Foi então que a professora percebeu tudo:

- João, que andaste a fazer esta manhã com a minha mala?

O João olhou desdenhosamente e afastou-se no seu andar de gato importante...


E, mais uma vez, foi expulso de um colégio…

quarta-feira, dezembro 04, 2019

Será que esta conversa existiu?


Preparem-se.
Faltam poucos dias...
Temos de aproveitar para libertar o Sérgio e o Zé Quim.
Temos de criar condições para o Luís Nuno poder regressar de França.
Maia, parece que tens alguém porreiro para comandar um pelotão quando avançares. É de Ourém e...
Mas que se passa, camarada Luís? Parece triste, nostálgico, pouco confiante...

Não é isso, meu major. Tive uma visão do que vai ser isto daqui a quarenta e tal anos: corrupção, fuga ao fisco, tráfico de droga, insegurança, mentira, terrorismo de Estado… e venturosos gajos fascistas a fingir que assumem o combate a essas barbaridades...
Comparada com isto, a exploração capitalista, aquela em que o patrão paga o salário para obter mais-valia, parece uma santa. Mesmo o meu major vai ser perseguido e acusado de coisas horríveis...

Eu, perseguido? E achas que é a primeira vez? Tu próprio vais escrever sobre uma história um tanto semelhante que ocorreu quase há dois mil anos. O nosso povo padece de um défice, não aquele com que uma tal troika vos vai torturar, mas educacional. Mas eu vou tratar já disso, das perseguições políticas...
Aspirante Sampaio, vá pensando numa lista de homens de confiança porque temos que extinguir a dita...
A verdade é que o Luís Nuno (que aqui representa o português inconformado que resistiu até à última relativamente à integração na tropa colonial) pôde regressar e o Sérgio (o preso político) e o ZéQuim (militar detido por ter participado no golpe que antecedeu e anunciou o 25 de Abril) foram libertados. Um pelotão de Salgueiro Maia que avançou para Lisboa foi comandado por um oureense.
Curiosamente, aquele que preparou tudo isto ao pormenor (e que o fez com o sentido de gerar o que gerou), acabou por ser preso e perseguido. Tantas vezes as revoluções devoram os seus heróis!

terça-feira, dezembro 03, 2019

O anúncio de uma nova era

A chegada à EPAM para cumprir a especialidade fez-se debaixo de intensa chuva. Em breve, descobri que os bons tempos de Mafra tinham passado. O instrutor, não sendo uma besta, não era motivador, não tinha carisma. O frio tinha-se intensificado e a chuva parecia não largar o nosso dia a dia.
A entrada na camarata nada teve de agradável pois estava repleta de cartazes de propaganda ao regime e à Guerra Colonial. «A Pátria não se discute!» e outras frases salazarentas enchiam os nossos olhos. Até que me passei e rasguei um dos cartazes. Fiquei um pouco assustado com o que tinha feito, senti alguns olhos em cima de mim, mas não houve consequências. 
Mais tarde, um amigo fez-me o indispensável aviso: «Tens de ter cuidado. Somos vigiados, nem todos são de confiança…».

A manhã era para preparação física, a tarde para aulas. Mas nada daquilo me seduzia, eu mandava lá o corpo, mas não estava lá. Não estudava, aprendia pouco, em termos desportivos era uma nulidade, por isso consegui um brilhante quase último lugar.
Os cheirinhos a mudança já se faziam sentir. Uma noite, no regresso de uma caminhada, uma voz fez-se ouvir dentro do pelotão:

Não há machado que corte
a raiz ao pensamento
porque é livre com o vento

porque é livre…

Em Março, ninguém pôde sair do quartel, pois ficámos de prevenção sem sabermos o que havia lá fora. Algo de estranho dizia-se…
Pouco depois, algo de magnífico aconteceu…

segunda-feira, dezembro 02, 2019

Um mancebo cheio de sorte

A passagem por Mafra acabou por ser exemplar. O alferes encarregue de conduzir a recruta, de nome Guimarães, era uma excelente pessoa que em todos procurava motivos para ajudar na avaliação. Isso não acontecia noutros pelotões onde a "besta da anedota" acabava por aparecer.
O despertar em geral era agradável e as manhãs na parada com algum nevoeiro e o frio de Outubro, de G3 às costas, até eram engraçadas. Sentia-me um pouco ridículo a marcar passo e na marcha, mas o ambiente do pelotão era saudável.
Politicamente, tive conversas apenas com dois ou três recrutas já que ainda desconfiávamos uns dos outros. Um dos colegas de pelotão era o Amorim, um trotsquista que, um dia, em café, pronunciou severas críticas à atuação de Salvador Allende no Chile, na altura já debaixo da ditadura de Pinochet.  Noutro pelotão, estava o António Reis já muito conotado com a oposição democrática e que andava sempre debaixo de olho. Tinha um ar triste de mártir… E havia ainda malta amiga de Económicas…
Por vezes, o aspirante Guimarães levava-nos pelos campos de Mafra em caminhada ou em suave corrida que terminava algum tempo depois junto a umas sebes. E então apareciam…
Os abutres estavam por trás do muro oferecendo o que tinham para vender numa ânsia que lhes arregalava os olhos, não os deixando pensar em porque estariam ali onde seres esfomeados e necessitados de humanidade procuravam pão e algo como o leite materno para se alimentarem e continuarem numa senda repetitiva que os faria voltar já que o negocio era fabuloso.
Eles teriam assim forma de encontrar na cidade os géneros que necessitavam para a sua auto-subsistência muito embora maldissessem os impostos que pagavam, percebendo que eram para obras coletivas e não das prontas só para eles. Eles, seres cujos filhos também iam a escolas talvez de má vontade, ansiando pela liberdade e desdenhando o tornarem-se úteis e servirem um povo sofredor e amante do trabalho produtivo.
Eram dez minutos e o seu decorrer cheio de palavrões e boca cheia saltitando de vala em vala, do muro para ali e dali para o muro onde estavam os pães, as bebidas e tudo o mais que o esfomeado consumiria pensando estar a fazer algo pelo seu corpo para desenvolver uma formidável musculatura enquanto os olhos arregalados e as vozes livres os procuravam numa confluência de fins que se materializava no exposto.
O dinheiro brilhou e à falta de trocos uma carteira de fósforos serviu para aumentar o negócio.
O abutre tinha na realidade algo de estranho, mas, à noite, um dia que fomos submetidos a fogo simulado para nos habituar ao teatro de guerra, estava completamente esquecido.
Depois, a semana de campo conseguiu ser agradável. Começou com uma caminhada pela parada, uma refeição improvisada com a comidinha em grandes caldeirões e montagem de tendas de campanha. Um acordar harmonioso e bem cheiroso…
Sem chuva, foram três meses exemplares de boa preparação para o físico.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...