Naquele dia, tinha estado na Revolução até às dezanove. Regressei a casa e informaram-me.
- Sabe, esteve cá um amigo seu...
- Mas quem era?
- Não sei. Trazia umas barbas muito grandes. Disse que volta mais tarde.
Fiquei intrigado. Mas, confiante como sempre, resolvi esperar.
Tocam à porta. Vou abrir e aparece-me um Luís Nuno, regressado de França após longa ausência e dolorosa separação de pais e amigos, completamente diferente daquele que eu recordava. Mal o reconheci, mas o abraço que nos uniu foi mais forte que qualquer desconfiança.
- Então, voltaste de todo?
- Sim, temos que fazer alguma coisa pelo país...
Olhando para ele, como estava diferente!. A pele muito queimada, rouco, barbas enormes, uma respeitável barriguinha. Impressionante...
Pouco a pouco, a nossa conversa mostrou-me que ele era alguém diferente de tudo o que eu podia imaginar.
- Sabes, é preciso ter muito cuidado no trabalho político. Há dias, um grupo em que me integro deu uma conferência de imprensa onde apareceram mascarados...
Lembrava-me. Mais ou menos uma semana antes, tinha visto na televisão uma reportagem sobre uma organização muito estranha que se dava pelo nome Grito do Povo.
E eu continuava a ouvi-lo.
- Os gajos do PC estragaram aquilo tudo na União Soviética. São nossos inimigos. É preciso sabermos escolher muito bem as pessoas para a nossa organização.
Na altura, eu andava entusiasmado com o MES, e falei-lhe nesse movimento.
- Não acredites neles, mais ano menos ano, enfiam-se todos no PS, pelo menos foi o que aconteceu em França.
Eu confirmei a veracidade da previsão do Luís. Mas então quem existiria para suportar uma actividade política pela causa justa?
- E os do PC?
- Só desmobilizam o povo. Não vês o que eles andam a dizer: “o povo unido jamais será vencido”? Isto não é correcto. No Chile, disseram o mesmo e vê o que se passou. Eles pensam que tudo está feito quando o povo ainda tem de vencer. Tem de fazer-se uma revolução democrática popular.
Fiquei admiradíssimo. Para mim, nos livros, vinha revolução socialista e, depois, extinção do Estado.
- Luís, somos muito poucos. Temos que ir com muito cuidado fazer trabalho para os campos, para as fábricas, nas próprias forças armadas. Não te esqueças que as forças armadas são, pela sua natureza, uma força repressiva, mas, no momento final, se trabalharmos bem, os soldados estarão ao lado do povo.
- E que podemos fazer no campo tão afastados que temos estado?
- Há muita coisa a fazer. No local de onde venho, realizavam-se festas populares onde os artistas têm uma mensagem que é imediatamente recebida. Trago-te aqui um exemplo das canções que põem o povo logo a dançar e a desejar a revolução.
E entregou-me dois discos em formato single ou EP que eu contemplei. Tino Flores.
Nunca tinha ouvido aquele artista popular. As canções até tinham um nome engraçado. Ó senhora Guida, O meu amigo está preso...
- Luís, ouve essas canções e podes ter a certeza que com elas convenceremos toda a gente.
Efectivamente, a primeira audição foi fantástica. Eu fiquei a recordar o Luís Nuno como um ser que em determinado momento me tinha trazido a mensagem correcta, a mensagem necessária. E imaginava-me em Ourém, frente às massas, a tentar conduzi-las para a revolução. Mas não conseguia aceitar todo aquele radicalismo que se desprendia da sua figura, das suas palavras.
Abandonar tudo e todos? Os meus hábitos, apesar de tudo, burgueses? Os meus amigos do MES, do PC, do PS...?
Não fui capaz. Fiquei para sempre um adepto da unidade na diversidade de todas as forças da esquerda, inclusivamente em momento de construção da nova sociedade. E, se alguém não estiver de acordo, mais do que o obrigar, há que o ir convencendo pouco a pouco.
A verdade é que o Luís Nuno também evoluiu muito a partir dessa data e transformou-se numa pessoa maravilhosa que pudemos desfrutar até àquele dia de Dezembro.
E, se ele aqui estivesse, como gostaria de brincar com os blogs!