sábado, fevereiro 08, 2020

Uma construção que se refaz

Em deslocação aqui pela Parede, notei uma estranha construção. Não eram só as pedras, mas também as duas cruzes que mal se distinguiam na parede e que só a fotografia me fez notar. Quase me senti o fotógrafo do «Blow-up». Para além disso, aquilo parecia um altar onde se poderão colocar oferendas.
Esta construção já está naquele local há alguns meses. Houve uma vez que as pedras não estavam empilhadas, sugerindo que tinham sido destruídas, mas, logo no dia seguinte, estava refeita.
Que coisa estranha é esta? O que pretende quem a mantem?
Procurei imagens semelhantes na NET e fui conduzido à civilização Inca e à palavra «apacheta».
Apachetas são altares em honra aos deuses incas.
Utilizando pedras encontradas pelo caminho ou nos espaços em que vivem, as pessoas vão empilhando uma em cima da outra, em formato cónico, para pedir e agradecer principalmente a Pachamama (Madre Tierra) e aos Apus (deuses das montanhas).
Pedir para que tenham proteção, para que tenham uma bela colheita, um bom ano...
Agradecer pela saúde, pela chuva, pela fartura, pelas estrelas, pelo sol, pelas riquezas da natureza...
As apachetas podem ser formadas por pedrinhas pequenas ou por pedronas. Algumas chegam a alcançar 3 metros de altura.
Um dos provérbios fundamentais dos guias peruanos diz-nos algo como isto:

Na vida há três caminhos: o certo, o errado e o do coração.
O certo nem sempre é o certo, o errado nem sempre é o errado, mas o do coração é sempre o do coração.
Portanto, segue o teu coração!

Posso não saber o que significam aquelas pedras tão perto de mim, mas posso garantir que o que é válido para os Incas também o pode ser para nós…

sexta-feira, fevereiro 07, 2020

A menina que colecionava lacraus

Conheci a Gracelinda ainda muito novinha no CFL. Curiosamente, pensava que ela me tinha acompanhado desde a primeira classe, mas há dias ela revelou que só tinha entrado no colégio para a quarta classe. Mas gostei logo dela. Tanto que, um dia, numa aula, pus-me a dizer em estilo de cantarolar:
- Gracelinda, és muito linda…
Tanto bastou para que as alcoviteiras de serviço começassem logo a dizer:
- O Luís gosta da Gracelinda…
Eu sabia lá. Simpatizava com ela, achava piada ao nome e, por isso, nunca a esqueci. O certo é que nunca me apercebi no seu ego da sua vocação para freira recentemente revelada. Claro, era uma pessoa bondosa, simpática, bonitinha, mas de freira não tinha nada… como poderão concluir através de uma revelação que vos vou deixar.
A Gracelinda era uma pessoa adorável, mas tinha um estranho costume: ela tinha a mania de colecionar lacraus…
Como vivia no campo, rapidamente apurou uma técnica de levantar uma pedra, ver lá o bicho, apanhá-lo com um rápido movimento dos deditos e enfiá-lo numa caixa de plástico transparente. Através de um orifício, dava-lhe umas ervitas e uns insectos e o simpático bicharoco ia sobrevivendo.
Por essa altura, no cineteatro de Vila Nove de Ourém foi projetado o filme «Marcelino, pão e vinho» com o Joselito. Eu gostava mais da Marisol, mas lá fui ver o filme e assisti ao sofrimento do rapaz quando sofreu a mordidela do lacrau. O filme foi muito comentado no CFL.
Um dia, numa aula de Inglês, o Dr. Laranjeira interrogou a turma:
- Decerto já viram o filme do Joselito. Quem é que sabe como se diz lacrau em inglês?
Respondeu logo a sabichona do Castelo:
- O lacrau é uma espécie de escorpião. Deve ser scorpion.
Ao lado dela, a Gracelinda não se fez rogada e puxou a sua caixinha de estimação com dez lacraus bem nutridos.
- Olhem o que eu aqui tenho. Posso distribuir pela turma toda.
A Ciete viu aquilo e só lhe ocorreu gritar:
- Ai! Que horror! Ela trouxe lacraus para a aula…
O Dr. Laranjeira ficou amarelo. As meninas ao lado da Gracelinda fugiram dela e abriram a porta da sala para escapar. Mas a pequena com toda a calma, voltou a guardar a caixinha na mala e disse:
- Bom! Era só para ilustrar a aula. Escusavam de fazer uma cena dessas.
Quando tudo acalmou, do alto da sua sabedoria e autoridade, o Dr. Laranjeira só disse:
- Gracelinda, nunca mais traga qualquer espécie de bicho para as aulas.
Bolas! E tinha a miúda vocação para freira…

quinta-feira, fevereiro 06, 2020

Regresso à aula de Português

Uma das técnicas do Dr. Laranjeira para prestarmos aos livros de leitura obrigatória maior atenção, era fazer proceder a uma leitura dividida entre os diferentes alunos, por vezes intervalada por comentários para melhor interpretação ou para introduzir conceitos da gramática.
Foi assim que fizemos quase um teatro a ler o «Frei Luís de Sousa» que culminava naquele: «Quem és tu, romeiro» e na resposta com o dedo a apontar: «Aquele…».
Mas, se a leitura da obra de Garrett decorreu excecionalmente bem, até porque convidava a usar um certo estilo teatral, ao passarmos por Júlio Dinis, as coisas não foram tão fáceis.
Estávamos a tratar a obra «A Morgadinha dos Canaviais». A aula já ia um pouco longa e o professor quis fazer-nos ler algumas passagens.
- Começa a menina Borda d’Água.
E a Lena não se fez rogada. Com voz firme, pausada, bem colocada iniciou a leitura da passagem atribuída.
- «O ti' Zé Pereira era homem dos seus quarenta e tantos anos; tinha no rosto, principalmente no nariz, vestígios evidentes das suas simpatias pela divindade celebrada nos antigos ditirambos. Esposo da Sra. Catarina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perene sabatina com a sua cara-metade, sujeitando lhe todas as suas ações, mas salvando sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no ofício de hortelão, e, aos domingos e dias de festa, à força de rufos e pancadaria na retesada pele do seu companheiro inseparável — o zabumba. Era aos cuidados e vigilância deste par conjugal que o recoveiro Cancela confiava o seu mais precioso tesouro, a pequena Ermelinda, uma mimosa criança, que lhe ficara à sua viuvez, tão cheia de saudades, e a quem ele mais queria do que à menina dos olhos.
«Ermelinda era afilhada da família Zé Pereira, e a mesma a quem ouvimos referir-se Ângelo no fim da carta.»
O Dr. Laranjeira interrompeu a leitura da Lena e disse:
- Estivemos a caraterizar a figura do ti’ Zé Pereira e a submissão conjugal a que ele se sujeitava. Mas há esta passagem em que se fala numa divindade celebrada em antigos ditirambos. Quem sabe o que é isto?
Ouviu-se logo a vozinha da sabichona:
- É uma referência ao Deus do vinho, Baco…
- Mas aqui a referência é a Grécia. Daí ser uma louvação a Dionísio. Prossiga agora o Luís Manuel.
- O Zé Pereira é parvo – dizia o Amândio ao meu lado.
O certo é que eu estava a achar piada à descrição. Parecia que via a figura do homem tisnado pela bebida. E iniciei a leitura.
- «Zé Pereira estava, como dissemos, só na cozinha, quando Augusto ali chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e vazio, falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e rouca da sua escala de barítono, até o mais agudo e desafinado falsete. A língua pegava-se lhe ao céu da boca, dificultando-lhe suspeitosamente a articulação de algumas sílabas; era evidente que se apossara do hortelão o espírito familiar, o qual, neste caso, era um verdadeiro espírito, na aceção química do termo.»
Naquele momento, começou a invadir-me irreprimível vontade de rir. Mas ainda continuei:
- «Zé Pereira era um homem baixo, já grisalho, suficientemente nutrido, de olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o entusiasmo, o rapto artístico se apoderava dele; usava de umas suíças que pareciam tentar sumir-se-lhe pela boca dentro; tinha longos braços, acomodados às dificuldades e evoluções da sua arte, e pernas que, do joelho para baixo, lhe divergiam em ângulo de mais de trinta gra… gra… gra… us.»
Não aguentei mais. Um homem baixo, nutrido, vesgo, com umas suíças até à boca era demais. Ainda tentei, mas as palavras não saiam. Ri, ri, ri que nem um perdido.
Os outros alunos começaram todos a rir também e eu que não parava. O Dr. Laranjeira teve de interromper a aula e fazer uma pausa.
Quando tudo acalmou, virou-se para mim e disse:
- Não sei onde estava a piada…
- Desculpe, professor, não aguentei, comecei a ver a figura do homem à minha frente…
- Espero que não se repita, se não terei de falar com o diretor…
A verdade é que nunca mais esqueci esta aula de Português. E resta dizer que o relacionamento com este professor foi, a partir daí, sempre excelente.

quarta-feira, fevereiro 05, 2020

O equipamento do padre



Uma formosa menina, muito viajada e culta, residente em Ourém, mas cuja identidade não me é possível revelar, estava num avião vindo da Suíça. Vendo que estava sentada ao lado de um padre simpático, perguntou:
- Desculpe-me, padre, posso pedir-lhe um favor?
- Claro, minha filha, o que posso fazer por si?
- É que eu comprei um novo secador de cabelo, sofisticadíssimo, muito caro. Realmente ultrapassei os limites da declaração e estou preocupada com a Alfândega. Será que o Senhor o poderia levar debaixo de sua batina?
- Claro que posso, minha filha, mas certamente sabe que eu não posso mentir!
- O Senhor tem um rosto tão honesto, Padre, que estou certa de que eles não lhe farão nenhuma pergunta. 
E deu-lhe o secador.

*




O avião chegou a seu destino. Quando o padre chegou à Alfândega, perguntaram-lhe:
- Padre, o senhor tem algo a declarar?
O padre prontamente respondeu:
 - Do alto da minha cabeça até a faixa na minha cintura, não tenho nada a declarar, meu filho.
Achando a resposta estranha, o fiscal da Alfândega perguntou:
- E da cintura para baixo?
- Eu tenho um equipamento maravilhoso, destinado a uso doméstico, em especial para as mulheres, mas que nunca foi usado.
Soltando uma sonora gargalhada, o fiscal exclamou:
- Pode passar, Padre! O próximo...



A inteligência faz a diferença.
Não é necessário mentir, basta escolher as palavras certas.



segunda-feira, fevereiro 03, 2020

Uma procissão atravessa Ourém



Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.

Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!

Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.

*

Mas um dia que a procissão passou por Ourém, as coisas não foram bem assim. O Padre tinha ganho o bonito hábito de ir saudando os fiéis e beijando as criancinhas.
Naquele dia, entre a multidão estava a nossa bem conhecida Leninha Borda d´Água, uma menina que tinha a mania de puxar o braço da pessoa quando a cumprimentavam, mesmo ao estilo do nosso venerado Presidente, professor Marcelo, que um dia aplicou o golpe ao inenarrável Trump.
E o Padre lá vinha no meio da procissão saudando e beijando à esquerda e à direita. Quando chegou junto da Lena, esta chamou:
- Senhor Prior! Senhor Prior!
O religioso não respondeu, mas aproximou-se dela estendendo a mão. A Lena não hesitou, pegou na mão e puxou por ela, levando o Padre a estatelar-se no chão:
- Oh! O que eu fiz…
As pessoas ajudaram o Padre a levantar-se e a Lena olhou para o chão acabrunhada. Ele aproximou-se e deu-lhe duas palmadas bem merecidas e com ar de zangado:
- Nunca mais voltes a fazer isto, menina mal-educada…
Nessa noite, a Lena sonhou que, um dia, o Papa iria ser puxado com brusquidão por uma mulher de aspeto oriental e que, depois de lhe ter dado uma palmada, acabou por pedir desculpas por se ter irritado.
- Só a mim ninguém pede desculpa – murmurou ao acordar enquanto um soluço lhe percorria o corpo…

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