sexta-feira, março 27, 2020

O fim de um sonho

Quando acordou, viu que estava sentada numa cadeira e que alguém fazia movimentos com um abano para a refrescar.
- Sente-se melhor? – perguntou um dos coordenadores.
- Eu estou bem, não percebo o que se passou.
- Já expulsámos os outros dois atores. Decididamente, não serviam ou eram realistas demais. Lamento, mas vamos ter de ir embora e prescindir dos seus serviços. Aproveitaremos, no entanto, as suas fotografias e pagaremos o seu esforço.
- Mas que se passou. Por que chegaram eles àquele ponto?
- Vou-lhe mostrar o argumento para a cena que eles estavam a protagonizar – e entregou-lhe uma pequena folha retirada de uma revista de banda desenhada. – Trata-se de uma passagem do álbum «Arizona Love» da autoria de Giraud. Nós sentíamos que podíamos recriá-la aqui, mas a infantilidade dos outros dois atores estragou tudo. Agora vamos para outra terra testar outros candidatos.
- E eu não sirvo?
- Pretendemos centralizar numa localidade todas as cenas. Para isso, criámos todos estes cenários em que foi fotografada e em que decorreram estes trabalhos. Receio que, noutro local, não lhe dê muito jeito.
- Mas eu posso ir de camioneta…
- Nem pense. Ainda anda a estudar, não pode faltar às aulas…
Nesse momento, ouviu-se uma travagem brusca junto à banda. De dentro de um Peugeot 304 saiu a figura enorme do Dr. Armando. Mas não só…
Pela outra porta, saiu o sr. Bragança, muito direito, com ar de poucos amigos.
- Explica-me lá minha filha, porque faltaste às aulas estas duas tardes…
E assim se frustraram os sonhos da Cietezinha de vir a ser uma grande actriz de fotonovelas.



FIM 

(por enquanto...)

quinta-feira, março 26, 2020

Um argumento perigoso

A Cietezinha passou com sucesso por todas as provas. Ela pôs a mesa na senhorial casa com toda a classe. Limpou o quarto do Estorietas, fez a caminha, sempre com o homem da máquina fotográfica a registar a sua ação. Faltava uma prova para a decisão final…
- Estamos muito contentes consigo – disse um dos coordenadores. – Vamos fazer uma última prova para determinar se usamos as suas fotos e avançamos para um projeto mais elaborado. É importante que comece a manifestar os sinais de uma paixão avassaladora para com o galã e hoje vai ser submetida a uma prova crucial: vai encontrá-lo numa gruta com outra mulher. O argumento é o seguinte: é preciso levar alimentos ao nosso herói que está refugiado numa gruta, pois é perseguido pelos homens de uma comunidade minoritária. Uma mulher dessa comunidade apaixonou-se loucamente por ele. Tem ali uma cesta com os alimentos, pegue nela e caminhe lentamente para a gruta, espreite lá para dentro para ver se pode entrar e, em caso afirmativo, entregue os alimentos ao herói. Sorria, transmita calor ao encontro e, à saída, mantenha a sua mão entre as dele mais do que o normal.
Ela começou a não gostar muito da conversa já que não estava preparada para um encontro romântico, mas pegou na cesta e aproximou-se da gruta enquanto o fotógrafo ia registando os seus passos.
Olhou para o interior da gruta e, de repente, soltou um grito, levou a mão ao peito e caiu redonda no chão.
Que se passaria?
Um dos coordenadores olhou para o interior da gruta e começou a gritar como um louco:
- Parem, parem, dominem-se, não é local para essas coisas…
Efetivamente, no interior da gruta, o Estorietas e a Deolinda consumavam um amor frenético. O ambiente era avassalador. A jovem não tinha resistido a uma paixão louca suscitada pela proximidade de um beijo técnico e todo o ambiente do salão da banda parecia anunciar que algo ia acontecer.
E, de repente, a gruta explodiu.

quarta-feira, março 25, 2020

Uma prova bem sucedida

Na tarde do dia seguinte, à hora marcada, a Cietezinha estava no salão da banda. Viu sair um trio mais ou menos entusiasmado e que, na entrada, estavam o Estorietas e a Deolinda, uma rapariga loira, escultural que vivia em Caxarias. Pouco depois, este estranho grupo era mandado entrar.
O salão da banda estava dividido em vários módulos: à esquerda encontrava-se uma construção em cartão que fazia lembrar um curral de porcos; atrás do mesmo lado, uma espécie de gruta bastante iluminada no interior; mais para a direita e atrás deles, um quarto mobilado também com uma parede de cartão a separá-lo do restante; à frente, à direita uma mesa de refeições com pesadas cadeiras e servida por uma cristaleira bem preenchida.
- Nós estivemos a analisar o vosso perfil e pensamos que poderão participar na nossa fotonovela. Agora precisamos de os ver em ação. A menina Ciete poderá ter um excelente papel como serviçal, a Deolinda pode ser a rapariga meio selvagem que persegue o herói e, claro, este poderá ser o nosso amigo Estorietas. Temos connosco o nosso fotógrafo exclusivo que vos vai acompanhar em algumas ações de treino. Menina Ciete, pegue nesse balde de água que já tem detergente e na esfregona e vá limpar o curral dos porcos.
A Cietezinha engoliu em seco. Nunca esperaria um papel daqueles, mas, uma vez que estava empenhada em conquistar o lugar, obedeceu e iniciou o cumprimento da missão que lhe cabia. Enquanto o fazia, sentia o fotógrafo a seguir todos os seus movimentos e a fazer fotografias. Devia ser um artista tal a rapidez com que cumpria a sua missão.
«Que horror! – pensava ela. – Quando os meus amigos e amigas me virem na Crónica. Eu, uma miúda tão giraça, a limpar um curral de porcos…».
Viu que o curral nem estava muito sujo. Lá dentro, protegido por uma plataforma de papel, estava um porquito que olhava para ela cheio de medo.
«Coitadinho! É tão bonito! Só me apetece dar-lhe beijinhos».
E que cena comovedora se deu então. A Ciete pegou no porquinho ao colo e este encostou a carinha à dela, parecendo dar-lhe um beijinho. O fotógrafo tudo registou.
Ela em breve se arrependeu do acto. Mas, ainda não tinha posto o porquito no chão, já se ouviam os aplausos dos jurados.
- Bravo! Bravo! Que cena comovedora! Nunca nada de tão belo se passou nas nossas fotonovelas. Está contratada…

terça-feira, março 24, 2020

Um papel estranho

Os dias foram passando até que, numa manhã soalheira, uma carta chegou, uma carta dirigida à Cietezinha com o logo da APR.
«A Crónica Feminina agradece a sua disponibilidade para a participação nas suas fotonovelas e solicita que se apresente no salão da banda em Vila Nova de Ourém na tarde da próxima quarta-feira pelas 14 horas».
O coração da Ciete ficou em alta aceleração e engendrou logo um plano para faltar às aulas e comparecer à entrevista.
Chegada à banda, estranhou ver uma fila enorme de rapazes e raparigas de Ourém todos aparentemente com a mesma finalidade. E aquilo que lhe parecera uma tarde de gozo converteu-se numa monumental seca. Havia uns dez à sua frente e notou que cada um demorava pelo menos uns vinte minutos na entrevista. Alguns saiam com um papel nas mãos e entretinham-se a lê-lo enquanto se afastavam.
A certa altura viu passar o seu colega Estorietas também com uns papéis na mão e resolveu perguntar-lhe o que estava ali a fazer.
- Olha, vim a um casting para uma fotonovela de aventuras. O anúncio apareceu no Mundo de Aventuras. Agora, levo aqui um argumento para ler e tentar deixar-me fotografar de acordo com ele. Volto cá amanhã. É giro que também entra aqui uma menina para contracenar comigo…
Contracenar com o Estorietas…
A ideia até não lhe desagradava de todo, mas sempre podiam escolher um galã mais jeitoso. Aquele era muito sisudo, tristonho e olhava-a de um modo estranho.
Daí a pouco viu sair a Mari’mília e ficou intrigada.
- Então também vieste a este casting?
- É verdade, respondi a um anúncio da Crónica. Sempre podia ganhar uns dinheiritos.
- E qual vai ser o teu papel?
Ela sorriu tristemente e deixou que uma lágrima furtiva lhe aparecesse nos olhos.
- Nenhum. Fui excluída. Queria ser a noiva do galã, interagir com o Estorietas ou outro dos rapazes, mas não gostaram de mim…
E foi-se. Cada vez mais curiosa, esperou a sua vez e, algum tempo depois, estava em frente de três jurados que lhe entregaram um papel para as mãos.
- Pegue nesse balde e nessa esfregona e caminhe até àquela janela…
Ela obedeceu.
- Agora, olhe para o exterior e ponha um ar sonhador, um ar romântico.
A Cietezinha pôs o melhor ar que podia pôr de acordo com as instruções e as pessoas pareceram ficar satisfeitas. Pediram-lhe os elementos de identificação e que regressasse na tarde do dia seguinte pelas 15 horas.
- Agradecemos que leia este argumento. É o caso de uma menina que é serviçal na casa de um casal brasonado e o tratamento a que é sujeita não é o melhor. Eles têm um filho simpático, e ela vive na eterna nostalgia de conseguir chegar ao maravilhoso mundo dos ricos. Começa a olhar para o rapaz como uma possibilidade de abandonar o seu mundo de trabalho, mas ele mete-se numa aventura terrível e tem de refugiar-se numa gruta para escapar à perseguição de uma rapariga meio selvagem. Os pais usam essa menina, a serviçal, para lhe fazer chegar mantimentos e os breves contactos de um momento para o outro transformam-se numa grande paixão.
- Mas… mas… o que é que eu tenho de fazer?
- Ainda não sabemos, estamos a avaliar o perfil das candidatas. Segundo nos disse, vive num palácio na vila medieval, por isso, tem experiência destes ambientes mais sofisticados…
Ela não estava muito convencida. Que papel tão estranho o que lhe poderia caber… rapariga semi-selvagem, serviçal e qualquer delas a perseguir a personagem masculina. E se esta fosse o Estorietas? Que horror… tirar fotografias ao lado daquele gato esfolado que parecia estar sempre com fome.
E a verdade é que, nessa noite, permaneceu acordada pelo menos até às duas da manhã.

segunda-feira, março 23, 2020

O nascimento de uma futura artista


Naquele dia, a Cietezinha estava muito triste no quintal da sua casa na vila medieval de Ourém. Sentou-se num banco com um ar sonhador…
«Oh! Quem me dera um cavaleiro andante para me levar com ele e distrair a minha alma! Nesta terra não acontece nada de interessante.»
Pegou num pequeno livro de poesia e sentiu o seu coração pulsar ao ler:


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

«Oh! Como tudo isto é triste nesta Ourém tão isolada. Preciso de algo que me devolva a vida».
Procurava alguma coisa que fazer uma vez que já tinha estudado toda a matéria das aulas. Em cima de uma mesa, viu uma pequena revista.
«Olha! A Crónica Feminina… tão giro…».
Voltou ao banco do quintal e pôs-se a folhear a pequena revista.
«Que conselhos tão úteis! Ainda vou aprender a fazer bolos à conta desta revistinha…».
Mais à frente, viu a fotonovela da revista.
«Que maravilha! Como eu gostava de participar numa fotonovela!... Deve ser tão fácil e interessante. Pomo-nos na posição, eles tiram a fotografia e passa-se à próxima cena. Quem diria que daqui a uns sessenta anos há as telenovelas horrorosas em que têm de filmar tudo».
Foi ter com a Ceuzinha.
- Sabes o que me lembrei que nós podíamos fazer? Uma fotonovela…
A Ceuzinha ficou admiradíssima.
- Repete lá que não percebi…
- Podemos fazer uma fotonovela. Arranjamos um argumento e um ou dois daqueles rapazes estúpidos de Ourém, contratamos o fotógrafo e depois é só juntar uma legenda. Publicamos e pomos à venda no Central…
- Minha irmãzinha está louca. Passou-te alguma coisa pela cabeça à hora de almoço?
- Não. Estive a ler a Crónica Feminina que traz uma fotonovela muito gira. Nós podemos fazer melhor…
- Mostra cá…
A Céuzinha pôs-se a consultar a Crónica Feminina e, no final, afirmou:
- Na realidade, é uma ideia interessante. E já pensaste no argumento, no elenco…?
- Contratamos o Estorietas para o argumento…
- Huuummmm…. Não serve. É demasiado meloso…
- Então, quem? O João?....
- Esse não larga o cão. Estragava as fotos todas…
A Ceuzinha continuou a folhear a Crónica e, de repente, pareceu ter uma ideia fantástica.
- Olha aqui. Este anúncio…
«Procuram-se artistas para as fotonovelas da Crónica Feminina
Se gostas das nossas fotonovelas e queres participar em alguma, envia-nos uma foto tua para a redação desta revista. Não precisas de sair da tua terra, a nossa equipa procurar-te-á e escolherá os cenários mais idílicos».
A Ciete ficou extasiada.
- Ena! Posso vir a ser uma grande artista… e nem é preciso sair da terra.
- Antes isso que andar a dar aulas de Matemática a burros…
- Mas eu estou ansiosa por viajar. Apesar de tudo, vou já inscrever-me.
E, no dia seguinte, o seu primeiro passo foi ir aos correios da vila para enviar uma carta de candidatura a artista de fotonovelas da Crónica Feminina…
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