sexta-feira, dezembro 20, 2019

Oração sobre a desigualdade social

Ourém, lá para 1954/55. 
Na casa do Largo de Castela, o frio já se fazia sentir, convidando a ficar à braseira, ouvindo o ronronar da gatinha bem perto. Sentia-se o aproximar do grande dia. E lá veio aquela voz que nunca me deixa.
- Á, mê menino, o que é que tu vais pedir ao pai Natal?
- Uma bicicleta.
- Não acredites que ele ta traga, não cabe na nossa chaminé. Não vês que é excessivamente larga?
- O Alvega tem lá bicicletas que eu já vi e cabem perfeitamente – rematei, sem perceber o sentido de “não cabe na nossa chaminé”.
Chegou a grande noite. Fui deitar-me excitado, desejando que a manhã chegasse rapidamente para ver se a almejada bicicleta chegava.
Já me estava a ver... subir a rua de Castela, descer direito à Avenida, percorrê-la em grande velocidade e fazer grande arraial frente ao Avenida. Depois, havia a polícia... “e se eles me chateiam por não ter carta?” (os polícias da minha juventude eram tramados, especialmente o Cunha que nos roubava as bolas de futebol todas...).
Voltas e voltas na cama à espera da manhã...
E o grande momento chegou. Lá desci ao rés-do-chão e fui direito à chaminé.
Moedas de chocolate, um jogo, um avião com elástico, mas, sinais da bicicleta, nada. Afinal, era verdade: a nossa chaminé era demasiado pequena para ela lá caber. Devia dar-me por feliz, aliás aquele avião que levantava voo com a ajuda de um elástico tinha a sua piada.
Mas passei uns tempos com algum ressentimento (fico sempre bastante ressentido quando não me fazem as vontades ou quando me enganam e eu conto com as coisas e elas não surgem). Porque é que uns tinham a bicicleta e outros não? Porque é que ainda éramos tão pequenos, ainda nada tínhamos produzido e já éramos em tudo tão desiguais?

quinta-feira, dezembro 19, 2019

Quando o circo chegava a Ourém

O Natal está à porta, por todo o lado se anunciam espectáculos que mobilizam as crianças. Nas empresas que ainda resistem procura-se reforçar a coesão entre as pessoas. O momento é marcado por apelos à paz, à bondade, por vezes, pela pedinchice suportada nas mais nobres causas...
Na televisão, surgem espectáculos de circos consagrados e outros fazem excelente negócio nas cidades mais importantes do país.
Noutro tempo, não era vulgar o circo chegar a Ourém pelo Natal. Era mais típico da Feira Nova. A verdade é que nunca consegui deixar de recordar aquela fabulosa cena do Vasquito e do Anhuka que acontecia sempre depois de tanto se fazer esperar enquanto a menina se exibia no trapézio ou aquela dama mais nutrida, deitada, com as pernas no ar fazia rodar objectos com as mais diversas formas.
Entrava o palhaço rico (Vasquito) e começava a dar música aos oureenses. Vestia roupa de seda (?) com lantejoulas, um barrete, pó de arroz na cara. Era irreconhecível. Os oureenses escutavam embevecidos...
De repente, era interrompido pelo palhaço pobre (Anhuka). Andrajoso, bola vermelha no nariz, calça arregaçada, pelos espetados nas pernas.
Trazia consigo um balde com água, uma cana, ostentando na ponta uma linha, um anzol e uma minhoca. Chegava, poisava o balde e enfiava lá a extremidade do seu instrumento de pesca improvisado.
Os oureenses riam, o rico tudo contemplava desconfiado. E resolveu saber do que se tratava:
- Tu estás a pescar?
- Não.
- Não estás a pescar!!!??...
- Não.
- Mas isso é uma cana...
- É.
- E isso é uma linha...
- É.
- E isto é um anzol...
- É.
- Então, se tu tens uma cana, uma linha e um anzol, estás a pescar...
- Não.
- Então o que estás a fazer?
- Estou a dar banho à minhoca...

quarta-feira, dezembro 18, 2019

De sapato na mão

Tantas vezes... subi e desci esta rua que lhe perdi o conto.


Mas recordo perfeitamente uma delas em que utilizava uma daquelas bicicletas da década de cinquenta para me ajudar na deslocação. Parti da Rua de Santa Teresinha pela estrada interior até à zona das bombas de gasolina, aí entrei na avenida e fiz o percurso até à tasca do Frazão de onde virei para esta rua.


Desatei a pedalar que nem um doido sentindo-me possuído pelas qualidades do Alves Barbosa, do Ribeiro da Silva, autênticos campeões da nossa geração e não sei se não havia em mim já qualquer gene de Armstrong que me fizesse desejar a sua Crow.


Pedalava por ali abaixo. A rua parecia deslocar-se sob os meus olhos e sob a roda da frente da bicicleta. Lá ao fundo uma velhota, toda de negro, de lenço na cabeça, avançava vagarosamente.


O esforço devia ser de tal ordem que ela teve a tentação de virar-se. Tinha um sapato na mão. Não tive tempo para nada, levei-lhe o sapato com uma monumental limpeza.


De vez em quando, esta recordação arrepia-me de pensar no que teria acontecido se em vez de um sapato fosse uma faca. Mas que maluqueira era esta de, naquele tempo, as pessoas andarem de sapato na mão?

terça-feira, dezembro 17, 2019

Os luzecus




Junto à casinha Posted by Hello

À noite, juntávamo-nos perto desta casinha e junto a uma rede metálica existente na rampa que nos separava da rua que tantas vezes subi e desci.
Falávamos, corríamos, brincávamos, gritávamos.
Quando havia mais calor, apareciam os pirilampos e tudo fazíamos para os apanhar. O processo não era nada simpático para o pobre bicho. Atrevia-se a acender a luz e a mão rápida caía-lhe em cima e atirava-o ao chão.
Depois, o seu destino era ir para debaixo de um copo e esperar pacientemente que se metamorfoseasse numa moeda. O desgraçado nunca mais voltava a brilhar.
Imaginem a desilusão quando soubémos que era um familiar quem, pacientemente, lá ia tirar o bicharoco e substituí-lo pela moeda desejada....

segunda-feira, dezembro 16, 2019

O golpe

No dia seguinte, pela manhã, a Céu procurou a sua gestora de conta na CGD a quem pôs a necessidade de realizar em dinheiro a quantia de 50000. Examinada a situação patrimonial da cliente, a solução foi a seguinte:
- venda de 50% da participação da Céu na Editorial Âncora que realizaria 25000 euros;
- venda de 75000 ações do BCP a 20 cêntimos por ação, ações que tinha adquirido ao comendador Berardo a 12 cêntimos por ação, sendo alertada que iria ter alguma penalização pela mais-valia;
- resgate de um plano poupança reforma no valor de 10000.
A gestora de conta ofereceu-se para lhe levar o dinheiro a casa com segurança, mas a Céu recusou. Colocou o dinheiro numa mala negra, entrou no carro e rapidamente voltou a casa.
Uma hora antes da hora marcada pelos chantagistas, o João chegou e combinou com ela:
- Tu entregas-lhes o dinheiro e pedes logo para libertarem a tua irmã. Eu vou esconder-me naquele quarto e, quando tudo estiver tratado, apareço, prendo o assaltante, exijo-lhe que nos diga onde está a tua irmã e vou lá buscá-la.
- Está bem, João. Não sei como te agradecer o que estás a fazer por mim…
- Não te preocupes. O importante é que o nosso plano resulte.
O João escondeu-se no quarto e a Céu sentou-se cheia de nervos à espera dos chantagistas. Como ela gostava daquela irmãzinha! Não podia imaginar que alguém lhe quisesse fazer mal. As suas mãos retorciam-se enquanto esperava. E rezou, rezou fervorosamente...
De súbito, ouviu uns passos na rua. Pouco depois, alguém bateu à porta…
O assaltante apareceu.
- Sou eu. Tem o dinheiro?
- Sim. Mas exijo que telefone a mandar libertar a minha irmã.
- Primeiro, mostra-me o dinheiro…
A Céu abriu a mala e mostrou-lhe o conteúdo desta. O assaltante não teve dúvidas que estavam ali 50000 euros. Então, sacou de uma faca e ameaçou-a:
- Chega-te àquela coluna da tua casa.
Amarrou-a à coluna e, em seguida telefonou aos capangas:
- Já tenho o dinheiro, podem libertar a outra, vou sair agora daqui.
Só que não pôde sair. Nesse momento, o João apareceu e apontou-lhe um revólver.
- Para, bandido. Foste apanhado.
O assaltante olhou para ele e riu-se.
- Não julgues que me metes medo com essa arma. Tenho a certeza que não és capaz de disparar.
O João tentou apertar o gatilho, mas tudo estava perro. A arma não era limpa há anos, as munições estavam humedecidas.
O assaltante aproveitou e deu um murro no João que caiu desmaiado no chão. Em seguida, pegou na mala do dinheiro e fugiu.
Algum tempo depois, a Ciete chegou a casa da irmã e ficou espavorida.
- Minha querida irmã! Estou aterrorizada. Mas que faz aqui o João?
- Tentou ajudar-me e o bandido deu-lhe um murro muito forte. Quase que ia passando por cima do cadáver dele… Vamos, liberta-me. Temos de o ajudar…
A Ciete desatou as cordas que prendiam a Céu que correu de imediato para o João.
- Joãozinho, ias morrendo por minha causa.
O João fingiu que acordava naquela altura e levou a mão à cabeça.
- O malvado deu-me a valer.
- Vou tratar de ti. Ficas aqui connosco a passar uma temporada  no Castelo.
- Não posso. Os meus negócios chamam-me a Madrid. Temos de apresentar queixa contra os bandidos e amanhã tenho de partir…
No dia seguinte, pela manhã, comodamente sentado no seu carro, com o Baloo ao lado, o João olhava uma mala preta…
Afagou o pescoço do Baloo e sorriu:
- Belo golpe. 25000 para mim e o restante para os três angolanos, uma sociedade que parece estar a dar resultados. E a Ceuzinha é um doce. Breve voltarei a encontrá-la.

- AU AU!!!… - respondeu o Baloo, abanando a cauda de contente.




FIM

domingo, dezembro 15, 2019

Pedido de resgate

No dia seguinte, pela tarde, o João voltou à casa da Céu no Castelo. Levava com ele o Baloo que se fartou de dar beijinhos à Céu.
- Então, já sabes alguma coisa?
- Nada de nada. Não há notícias, continua sem atender o telefone e a Polícia continua a teimar que ela pode ter desaparecido por vontade própria.
- Já mandaste cancelar as contas dela?
- Não sei os números, estou completamente descontrolada.
Nesse momento, alguém bateu à porta. A Céu foi abrir e quando voltou trazia um envelope na mão.
- Era um africano que me trouxe esta carta.
- Um africano? – repetiu o João – Se calhar era um dos que levou a tua irmã…
E correu rapidamente para a porta que abriu. Mas já não viu ninguém e voltou.
- Já não o vi. Que diz a carta?
A Céu abriu o envelope e leu a missiva:
“Se queres voltar a ver a tua irmã, amanhã, pelas três da tarde, tem em teu poder 50000 euros que entregarás ao mensageiro que te procurar. Não fales à polícia, senão a tua irmã será executada.”
A Céu desatou a chorar e o João aproveitou para lhe passar o braço pelos ombros.
- Ceuzinha, sabes que podes contar sempre comigo…
Ela limpou as lágrimas, fungou e respondeu:
- Não sei o que hei de fazer. Dizem que a executam se eu contar à Polícia
- Eu ajudo-te. O melhor é pagarmos o resgate e, depois, denunciamo-los. Amanhã levantas o dinheiro e esperamos por eles no local que eles pretendem aqui em casa. Eles não saberão que eu estou cá e eu apanho-os com a ajuda do Baloo e um revólver que trago sempre comigo… Depois, obrigamo-los a falar e a dizer onde está a Ciete.
- Oh, João! E pensar que duvidei de ti…
- Ceuzinha, não há pessoa mais credível do que eu.

- Ajuda-me, João. Não me imagino a passar o Natal sem ela...


(Conclui amanhã)
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