Vladimir Ilyich, o pai da pátria soviética, mesmo depois da
sua morte que ocorreu quatro anos depois de Inês, tinha de permanecer num
pedestal.
A historiografia soviética e estalinista não podia admitir, e
ainda menos revelar, que viveu um amor fora do casamento e assumir que não fora
o fiel marido de Nadja Krupskaja. Não podia permitir que a imagem de quem tinha
como único pensamento os destinos do proletariado fosse manchada por uma
história de amor.
Falar da relação entre Inês e Vladimir Ilyich significaria
revelar muitos factos e muitas circuns-tâncias, os quais não era nada oportuno
trazer à luz: que Lenine, também Lenine, fora arrastado pelos sentimentos e
sentira a falta da mulher que amava, que sofrera por outra coisa além da
dificul-dade de pôr o socialismo em prática, e qualquer momento vivido sem ela
o fizera sentir-se perdido.
Além disso, a Rússia estalinista não podia aceitar uma
ligação do chefe da Revolução proletária a uma mulher da burguesia, com uma
autonomia cultural, e cuja família de industriais progressistas fora uma das
fontes de financiamento dos bolcheviques.
Quando o conheceu pela primeira vez em Paris, Inês tinha
trinta e cinco anos e uma personalidade formada. Tinha quatro filhos, separara-se
do marido (com o qual aliás manteve ótimas relações) para se unir ao cunhado de
quem tivera um outro filho. Era uma militante bolchevique, uma revolucionária
convicta e audaz, sempre disponível para tudo em prol da Causa.
Também ela, como Lenine, queria a Revolução do proletariado e
um novo futuro para o seu país. Também ela participou na grande ilusão da
construção do país dos Sovietes.
Morreu antes de viver em pleno a desilusão, mas antecipou-a e
entendeu antes de outros aquilo que não funcionava. Era social, cultural e
economicamente autónoma, podia até contribuir para as caixas do partido,
mostrara uma certa autonomia de julgamento e, quando foi necessário, uma
oposição aberta às ideias do líder supremo.
Inês era a favor do amor livre, contra a paz de
Brest-Litovsk, era simpatizante do grupo de Baugy, crítico de Lenine. Em suma,
apresentava uma biografia de militante política e feminista que se distinguia,
por vezes polemicamente, da do seu líder. Se estes são os motivos do
obscurecimento da figura de Inês na historiografia soviética, menos claros são
os motivos da difícil compreensão da figura de Inês por parte da história
ocidental. É certo que dependia, em grande medida, de fontes soviéticas que,
apesar de tudo, a influenciava.
Mas, provavelmente, existe uma outra razão. Inês não é fácil
de enquadrar nos estereótipos femininos que abundam na melhor cultura
ocidental. É dificil para um historiador ou um académico, inevitavelmente
sujeito a esquemas masculinos, retratá-la e orientar-se na história e na
psicologia de uma mulher que reunia em si, e na sua vida, tantas paixões e
inclinações.
Inês era uma revolucionária convicta que conhecia a prisão e
o exílio, mas também era a mãe afetuosíssima e presente de cinco filhos.
Era dedicada a Lenine, mas prezava a sua liberdade. Era uma
«bolchevique», mas consciente dos limites do seu partido sobre a «questão
feminina». Viveu o início da decadência trágica dos projetos revolucionários,
mas aos quais ficou ligada. Era rica, contudo nunca receou a pobreza e morreu
pobre.
Foi uma boa esposa, mas praticou e teorizou o amor livre. A
sua ligação a Vladimir Ilyich, sólida até ao fim, não a impediu de ser amiga de
Nadja Krupskaja. Tinha relações por todo o mundo, mas quando podia refugiava-se
na solidão. Era uma idea-lista e tinha abraçado a utopia do mundo novo, mas
também uma dirigente realista e mediadora.
A sua maneira de ser, complexa, contraditória, sujeita a
todas as fraquezas humanas, aos entusias-mos e à depressão, à abnegação e à
rebelião, a sua capacidade de amar a política, os filhos, o amor e a amizade e
de viver tudo com paixão, faziam dela uma figura excêntrica, não catalogável.