sexta-feira, outubro 16, 2020

O fantasma da Feira Nova - 5

 O poder do pensamento


Não se atreveu a contar a todos os colegas, porque podiam gozá-lo. Mas contou ao seu grande amigo, o Barroso.

- Não sabes o que me aconteceu ontem na pista dos carrinhos de choque – e desbobinou a estória toda.

- Não posso acreditar… - e o Barroso batia com a mão na cabeça.

- Ainda gostava de passar por lá esta noite para ver se acontece o mesmo.

- Se quiseres, eu vou contigo. Aquilo até deve fechar mais cedo, porque não é um dos dias principais.

E, efetivamente, por volta das onze e trinta, o silêncio voltou à Feira Nova e iniciaram-se as arrumações.

O Zé Avião foi fazer as suas 20 voltas, enquanto o Barroso o esperava sentado num banco do jardim. Sempre que ele lhe passava à frente, somava um a um contador mental e assim ia controlando o tempo que tinha de esperar.

- Só eu… só eu tenho paciência para aturar este avião.

O treino do Zé Rito lá terminou e ele aproximou-se do Barroso. Parecia fresco como uma alface, não se notando nada do esforço que tinha feito.

- Já está. Vamos até lá para ver.

E dirigiram-se na direção da pista de carrinhos de choque. Nem sonhavam que essa noite o espetáculo ia ser muito mais completo.

Ainda não tinham chegado junto à pista quando as luzes se reacenderam e o Zé Avião viu repetir-se o espetáculo da noite anterior. Os dois miúdos estavam banzados com o movimento do carrinho, aparentemente sem condutor, mas que exibia uma condução que aparentemente deliciaria quem o conduzia.

Desta vez, não houve qualquer esboço de paragem junto ao Zé Avião. O carrinho seguia pela pista, muitas vezes em zig zag, gozando o momento. Passadas algumas voltas, parou e foi arrumar-se no local onde estava inicialmente.

O Zé Rito e o Barroso contemplavam tudo aquilo de boca aberta. Mas ainda não tinham visto tudo. De repente, uma espécie de fumo começou a sair de dentro do carro, parecendo algo de gelatinoso. O fumo parecia dirigir-se para o exterior da pista, parecia estar a formar uma figura conhecida.

E, então, como por encanto, viram que o Mina Guta se materializava junto deles.

- Oh! Também vieram ver a pista – dizia ele. – Esta noite, estive sempre a pensar nos carrinhos. E imaginem que até me imaginei a conduzir um deles e a andar de um lado para o outro sem mais ninguém me incomodar. É engraçado, não é?

Olharam-no aterrorizados. Que estranho poder teria aquele miúdo para conseguir fazer deslocar um carrinho de choque…

- Sim… sim… é engraçado. – e desataram a fugir na direção de casa como se tivessem visto um fantasma.

O Mina Guta contemplou-os admirado. Deitou uma última olhadela à pista e foi dormir com a convicção de que ali voltaria no dia seguinte.

Quanto ao Zé Avião, não fez mais voltas ao jardim enquanto a pista de automóveis ali estava. Ele e o Barroso combinaram não divulgar esta estória para não serem tidos como maluquinhos… mas o Estorietas tem provas de que ela realmente se passou. Talvez um dia as divulgue.



FIM


quinta-feira, outubro 15, 2020

O fantasma da Feira Nova - 4

 Encontros do 3º grau no primeiro dia de Feira


Durante a tarde, a feira fervilhava. Por todo o lado se fazia negócio, se jogava, se utilizavam as diversões. O som dos carrinhos de choque tomava conta de tudo criando uma animação muito especial.

O Zé Rito (Avião) e o Mina Guta encontraram-se na rua da Olaria e foram na direção da feira.

- Vamos dar uma volta nos automóveis – dizia o Zé Rito.

- Não posso. Não tenho dinheiro – e rapidamente o Mina Guta contou a estória passada na padaria.

- É muito injusto – disse o avião. – Mas podes acompanhar-me no meu carro e fazes tu de piloto virtual.

Assim, o Mina Guta, apesar de não conseguir sentir toda a adrenalina dos carrinhos de choque, conseguiu fazer algumas viagens nos mesmos como pendura do Avião.

A noite chegou e a diversão continuou por algumas horas. O Zé Rito e o Mina Guta foram jantar e pouco depois regressavam.

- Agora vou andar no Carrossel – disse o Zé Rito. – Não te posso levar porque ali cada um paga.

- Não faz mal. Vou até ao Poço da Morte. Mesmo que não tenha uma borla, sempre posso ouvir o ruído.

A noite foi passando. O Zé Avião não voltou a encontrar o Mina Guta.

«Se calhar, já se foi deitar…».

Por volta da meia-noite, as pessoas começaram a recolher. Os divertimentos começaram a ser desligados.

«Vou fazer a minha maratona no jardim…»

Era um hábito do Avião. Todas as noites fazia 20 voltas ao jardim, utilizando o seu circuito interior mais largo. Mantinha assim excelente forma física.

Quando terminou, saiu perto da Câmara e tomou a direção de casa. Não se via ninguém. Silêncio. Escuridão.

Passou junto aos carrinhos de choque. Ali estavam eles, na sua pista, bem arrumadinhos a descansar para o próximo dia de feira.

«Era bom que todos os dias do ano fossem assim.»

De repente, sentiu um arrepio. As luzes da pista ligaram-se e, sem se ver qualquer pessoa, um dos carrinhos começou a deslocar-se. Ficou de boca aberta.

«Mas… não é possível.»

O carrinho continuava o seu caminho. O Avião iria jurar que, quando passou junto a si, afrouxou e quase pareceu convidá-lo a entrar. Depois, acelerou, deu mais uma volta e estacionou. As luzes foram desligando e o silêncio e a escuridão voltaram ao local.

«Amanhã, ninguém acreditará em mim no CFL. Há um fantasma na pista dos carrinhos de choque.»


quarta-feira, outubro 14, 2020

O fantasma da Feira Nova - 3

 Aquele olhar


Uma das casas que circundava o Largo era a casa da Júlia Padeira. Como calculam, funcionava ali uma padaria. Tantas vezes o Estorietas assistiu ao modo como o senhor Zé Maria introduzia ou retirava o pão do forno, podendo depois deliciar-se com o seu sabor.

Era magnífico o pão daqueles tempos: as carcaças, os bicos, o pão escuro, a broa… sabores tão diferentes daqueles que desfrutamos agora.

A verdade é que o Mina Guta também se abastecia na padaria da Júlia Padeira. Todos os dias ali ia buscar o seu pão e todos os dias sentia o olhar profundo daquela senhora, avó do Quim e do Julito. Aquele olhar perturbava-o um pouco, mas não falava muito nisso. A verdade é que, em Ourém, dizia-se que aquela senhora tinha certos poderes… poderes especiais… esotéricos…

Quem não punha os pés naquela padaria era a Teresinha, apesar de muito perto dos seus domínios. Sempre que a Dona Estefânia lhe dizia para comprar pão, ela simulava passar por ali e ia à loja do sr. Oliveira onde não tinha de suportar um olhar que lhe metia medo e podia encontrar mais alguns colecionáveis.

Na quinta-feira em que a Feira Nova foi inaugurada, uma avalanche de gente caiu na padaria. No meio deles, estava o Mina Guta que, a custo, conseguiu chegar ao pequeno balcão e entregar a sua saca e o dinheiro para a ração habitual. No regresso com o pão e, depois de aviar mais três clientes, a velha senhora disse para o Mina Guta:

- São dois escudos…

O Mina Guta contemplou-a admirado:

- Mas eu já paguei…

- Não, não, não entregaste dinheiro nenhum. Este senhor à tua esquerda é que pagou…

O homem apressou-se a reforçar a confusão:

- É verdade. Vi muito bem que esse menino só entregou a saca para o pão. O dinheiro que levou era meu.

- Faz favor, pagas, senão não levas o pão…

E que fez o Mina Guta, honesto como sempre? Utilizou o dinheiro que tinha juntado para os carrinhos de choque a pagar o pão que já tinha pago…

O resto do dia foi um desespero para ele. Sentia-se estranho. Não deixava de recordar aquele olhar que parecia tê-lo perpassado. E interrogações constantes tomavam conta dele. Como poderia utilizar os carrinhos de choque? Como poderia ver o Poço da Morte?

«Paciência. Vou ver o que puder… e a minha imaginação fará o resto.»

Abençoado o reino dos humildes…


terça-feira, outubro 13, 2020

O fantasma da Feira Nova - 2

 Assim falava Zezetusta


O Mina Guta era um gajo muito especial. Vizinho do Estorietas, nutria por ele uma daquelas amizades que só aquelas idades são capazes de gerar. Jogavam futebol no Largo, jogavam ao berlinde ou ao pião nas ruelas.

Mas a sua amizade manifestava-se de uma forma especial. Sempre que via o Estorietas, depois do cumprimento inicial, a pergunta sacramental era:

- Então, quando é que vais embora?

Grande amigo, hem?... 

A razão para o seu nome era simples, julgo que quase todos os amigos do Largo se lembram. O Mina Guta tinha um irmão, o Zézé, um puto muito mais novo e que dizia muitas vezes aqueles disparates das idades infantis. E um dos que dizia muitas vezes era:

- Mina Guta é puta…

E o Augusto ficou Mina Guta para todo o sempre.


segunda-feira, outubro 12, 2020

O fantasma da Feira Nova - 1

Nas vésperas do grande acontecimento


Aproximava-se o grande momento. Os carrinhos de choque já se amontoavam nas imediações da Câmara e toda a estrutura de montagem acumulava-se junto ao posto da GNR. Os cavalinhos, girafas e bancos do carrossel esperavam junto ao velho depósito do qual saia um cheiro nauseabundo.

A miudagem andava de um lado de outro antecipando as novidades. Um deles era o nosso querido Zé Avião.

- Dizem que este ano também vem o Poço da Morte.

- É, pá, adoro isso – respondeu o Mina Guta. – E tenho a impressão de também vamos ter aviões. Estão ali alguns objetos que me fazem lembrar as formas deles…

Nesse momento, aproximou-se a Livinha que era colega do Avião na CFL.

- Então, Zé, hoje faltaste às aulas?

- Vim só dar uma corridinha para ver as novidades da feira.

- E apuraste alguma coisa?

- Nada de novo. Parece tudo igual ao ano passado. Bom… ainda vou ter uma aula, tenho de partir.

Ligou a mota virtual…

- Truummm! Truummmm! – tudo ruído real produzido por ele. – Mais logo, volto cá para ver como está a montagem das coisas.

- Não te esqueças de nos informar…

O Avião acelerou e partiu a toda a velocidade na direção do CFL. Pouco depois, assistia a uma aula de História, mas todo o seu pensamento concentrava-se na quinta-feira que se avizinhava e em que poderia desfrutar de muitos dos divertimentos que se anunciavam.

Por seu turno, o Mina Guta coçou a cabeça e resolveu ir até casa, uma casinha branca colada à casa vermelha do início da Rua de Castela. A sua mente também fervilhava com as novidades que se avizinhavam. Mas ele não era dos que podia gozar muito aqueles divertimentos. Pouco abonado, deixava a sua imaginação fluir e imaginava-se a utilizar aquelas máquinas maravilhosas substituindo os pilotos que as conduziam. Por vezes, até jurava que elas se mexiam de verdade…


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