Aquele olhar
Uma das casas que circundava o Largo era a casa da Júlia Padeira. Como calculam, funcionava ali uma padaria. Tantas vezes o Estorietas assistiu ao modo como o senhor Zé Maria introduzia ou retirava o pão do forno, podendo depois deliciar-se com o seu sabor.
Era magnífico o pão daqueles tempos: as carcaças, os bicos, o pão escuro, a broa… sabores tão diferentes daqueles que desfrutamos agora.
A verdade é que o Mina Guta também se abastecia na padaria da Júlia Padeira. Todos os dias ali ia buscar o seu pão e todos os dias sentia o olhar profundo daquela senhora, avó do Quim e do Julito. Aquele olhar perturbava-o um pouco, mas não falava muito nisso. A verdade é que, em Ourém, dizia-se que aquela senhora tinha certos poderes… poderes especiais… esotéricos…
Quem não punha os pés naquela padaria era a Teresinha, apesar de muito perto dos seus domínios. Sempre que a Dona Estefânia lhe dizia para comprar pão, ela simulava passar por ali e ia à loja do sr. Oliveira onde não tinha de suportar um olhar que lhe metia medo e podia encontrar mais alguns colecionáveis.
Na quinta-feira em que a Feira Nova foi inaugurada, uma avalanche de gente caiu na padaria. No meio deles, estava o Mina Guta que, a custo, conseguiu chegar ao pequeno balcão e entregar a sua saca e o dinheiro para a ração habitual. No regresso com o pão e, depois de aviar mais três clientes, a velha senhora disse para o Mina Guta:
- São dois escudos…
O Mina Guta contemplou-a admirado:
- Mas eu já paguei…
- Não, não, não entregaste dinheiro nenhum. Este senhor à tua esquerda é que pagou…
O homem apressou-se a reforçar a confusão:
- É verdade. Vi muito bem que esse menino só entregou a saca para o pão. O dinheiro que levou era meu.
- Faz favor, pagas, senão não levas o pão…
E que fez o Mina Guta, honesto como sempre? Utilizou o dinheiro que tinha juntado para os carrinhos de choque a pagar o pão que já tinha pago…
O resto do dia foi um desespero para ele. Sentia-se estranho. Não deixava de recordar aquele olhar que parecia tê-lo perpassado. E interrogações constantes tomavam conta dele. Como poderia utilizar os carrinhos de choque? Como poderia ver o Poço da Morte?
«Paciência. Vou ver o que puder… e a minha imaginação fará o resto.»
Abençoado o reino dos humildes…
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