sexta-feira, janeiro 03, 2020

O valor de uma notícia

Passados dois dias, o jornal “South China Morning Post” trazia uma notícia, «Desmantelada célula de conspiração contra a Revolução», sobre o que se tinha passado em Hong-Kong acompanhado da foto de duas ocidentais.
Em Macau, um individuo que parecia passear com a esposa, viu a capa do jornal e adquiriu-o imediatamente.
«Mas o que é isto? Não está de acordo com o combinado. Tenho de ir a Hong Kong».

***

No terceiro dia da sua prisão em Hong Kong, as duas irmãs estavam completamente desesperadas.
- O que vai ser de nós? Ninguém sabe que aqui estamos presas…
E continuaram a chorar toda a manhã olhadas pelas outras mulheres com um certo desdém. Entretanto, a prisão estava cada vez mais cheia de pessoas que parecia conhecerem-se umas às outras. Dir-se-ia que a prisão delas tinha levado à prisão de muitas outras pessoas.
- É estranho. Parece que a nossa chegada desencadeou tudo isto.
Nunca mais tinham falado com o indivíduo que as tinha esperado no cais, mas um dia viram-no passar bastante maltratado depois de ter estado a ser interrogado.
- São horríveis estes regimes – dizia a Ciete.
- Lembra-te que ele nos disse que havia uma conspiração contra o sistema. É uma luta de morte e estes indivíduos não são nada meigos.
- Nada justifica que as pessoas tratem assim o seu semelhante. E para quê? No fundo, o povo vive miseravelmente, o que há é igualdade na miséria. É tudo muito semelhante ao que um dia designaram por «Modo de produção asiático»: tudo escravo, tudo na miséria e uma casta cheia de direitos e riqueza a mexer os cordelinhos.
- Ena. Leste muito sobre isto…
A porta da cela abriu-se e um guarda fez-lhes sinal para o seguirem. Entretanto, na rua, parecia ouvir-se gritos de pessoas a clamarem…
Foram de novo levadas à presença do responsável pelo local de detenção que as recebeu com um sorriso amarelo. A seu lado estava o intérprete que fez a tradução das suas primeiras palavras:
- As nossas desculpas pelo mal-entendido em que estiveram metidas. Só agora percebemos que foram uma peça importante para deter elementos que conspiravam contra o sistema.
- Como? – perguntou a Céu sem perceber nada.
- Mais uma vez, aceitem as desculpas em nome do Governo da República Popular da China. Devíamos libertá-las imediatamente, mas não podemos: há uma manifestação contra os rebeldes e, se saírem agora em liberdade, podem confundi-las com eles uma vez que a imprensa publicou as vossas fotos. Têm de esperar que a situação acalme. Mas vamos mudá-las de instalações e dar-vos outro tratamento até poderem sair.
- Isso é que é falar – disse a Ciete – Mas a quem se deve esta mudança?
- Àquele… - disse o intérprete apontando para a porta que se abria.
Nesse momento apareceu perante elas, sorridente, a imagem do cavalheiro que as tinha conduzido àquela situação em Macau.
- Ohhhh!!!!! – exclamou a Ciete, caindo no chão sem consciência.

quinta-feira, janeiro 02, 2020

Visitas inesperadas na véspera de Natal

Os pais da Gracelinda ficaram tão felizes com o abandono da vida religiosa por parte dela que acabaram por concordar em não abater os dois cabritinhos e em mantê-los como animal de companhia. Ela chegava a passeá-los de trela como se de cachorros se tratassem e todos se deliciavam a vê-los aos saltinhos.
A véspera de Natal chegou e a família Marques começou a preparar os doces para a consoada. A Gracelinda estava toda entusiasmada na preparação da massa para os sonhos e preparava-se para a pôr a levedar quando, de repente, sentiram uma travagem brusca à porta de casa…
E alguém bateu à porta…
Gracelinda e mãe olharam uma para a outra com um certo receio.
- Deve ser alguém a trazer-nos filhoses…
A mãe foi abrir e ficou paralisada, estupefacta. A pequena viu-a assim e foi espreitar. Ficou gelada…
Na sua frente, estava a madre superiora, mais uma freira, acompanhadas por dois agentes da Guarda Republicana de Ourém.
- É ela! – vociferou a madre superiora – Prendam-na! Fugiu do convento e roubou-nos dois cabritos…
Os guardas avançaram, mas a mãe deteve-os.
- Parem. Ela é uma menor, não podem fazer-lhe nada…
- Minha senhora, há uma queixa contra a menina.
- O meu marido tratará de tudo…
Rapidamente, telefonou para o marido a quem expôs a situação. Mas a madre não se conformava:
- Ela esteve a comer da nossa alimentação durante quase um mês e não pagou um tostão.
- Mentira! – gritou a Gracelinda – Eu é que preparava as refeições para todas as irmãs. Nunca me pagaram um tostão. Exploravam o meu trabalho, não rezava, não conseguia ler nada. A vossa formação é uma fraude.
- Gracelinda, Deus manda que…
- Não, não. Vocês são umas cínicas, não as quero ver mais.
Pouco depois, o sr. Marques chegava a casa carregado de embrulhos e uma tábua com um leitão acabado de assar a cheirar maravilhosamente.
- Irmã Clotilde, lamento muito tudo o que se passou com a minha filha e apresento as maiores desculpas. A Gracelinda não irá mais para o convento. Para a compensar de qualquer prejuízo que ela tenha causado aqui tem um belo leitão assado pelo Guerra, dois cabritos já devidamente preparados para cozinhar e um perú da melhor criadora de Ourém. Se acha que temos de pagar alguma coisa pela estadia da Gracelinda no convento, por favor, diga…
A madre superiora ficou bastante admirada. Não esperava uma reação daquelas e a oferta era extremamente interessante.
- Além disso, tem aqui mais dois bolos rei dos melhores que se fabricam em Ourém.
- Bom – disse a religiosa – É claro que eu não queria prender a menina. Mas ela tem de ser mais educada, é tão rebelde…
E partiu, levando as ofertas, acompanhada pela outra freira e os guardas da GNR. A Gracelinda ficou toda feliz a passar o Natal com os pais e os cabritinhos. Nunca se lembrou que, para salvar aqueles dois, tinham sido abatidos quatro outros bicharocos. Mas creio que, anos mais tarde, veio a pôr em causa a sua forma de alimentação.

terça-feira, dezembro 31, 2019

Prisioneiras da Guarda da Revolução


A primeira noite numa prisão chinesa foi horrível para as duas manas. Cercadas por mais de quinze presos do género feminino numa cela sem as menores condições tinham um catre estreitíssimo para se deitar e um misero cobertor para se cobrir. Passaram a noite a chorar sempre olhadas com estranheza por uma série de mulheres de raça amarela. A língua era um problema enorme e fazia com não se conseguissem entender com mais nenhum preso. Na cela ao lado, ainda em piores condições, estavam os homens e passaram a noite a ouvir aquelas cuspidelas horrorosas que as enojavam.
Pela manhã, foram chamadas ao comandante da Guarda da Revolução o qual se rodeou de um intérprete que falava inglês e foi nesta língua que o diálogo se desenvolveu:
- Quem é o vosso chefe?
A Céu, mais resoluta, tentou contar a história do casino e o estranho contacto com um cavalheiro que lhes pediu para trazer os barcos com uma encomenda cujo conteúdo desconheciam.
Ao ter conhecimento da resposta da jovem, o oficial chinês ficou bastante irritado.
- Ele diz que vocês estão a mentir, a gozar com o povo chinês – disse o intérprete. – Se não falarem ficam na prisão toda a vida.
As duas irmãs desataram a chorar e, mais uma vez, garantiram que estavam a dizer toda a verdade. Foram forçadas a regressar à cela e, pouco depois, foram conduzidas ao refeitório da prisão para almoçar.
Era um recinto enorme que já estava cheio de pessoas andrajosas e terrivelmente tristes. Um guarda indicou-lhes dois lugares junto a outras reclusas. Repararam que tinham uma pulseira com um número igual ao que estava no lugar que iam ocupar.
Um conjunto de homens, na sua maioria chineses, foi trazendo a comida para as mesas. Um deles que parecia ocidental trouxe uma travessa com arroz, legumes cozinhados e uns fritos esquisitos. A Céu perguntou em inglês:
- O que é isto?
O indivíduo com aspeto ocidental respondeu na mesma língua:
- Orelhas de macaco fritas.
- Que horror! – gritou a Ciete, levando as mãos à cara. – Não consigo comer isso.
- Prove, porque não é mau – respondeu o serviçal. – Ao jantar, são gafanhotos grelhados…
A Céu, mais decidida, perguntou ao guarda serviçal:
- Como podemos avisar as nossas famílias que estamos aqui presas?
- Enquanto não apurarem a verdade, não têm hipótese de contatar ninguém.
No fundo, as orelhas de macaco nem foram o pior da estória. As duas irmãs comeram conforme puderam e recolheram à cela onde se deitaram no catre a chorar convulsivamente.
- E agora? Que vai ser de nós aqui fechadas? – dizia a Céu.
- A culpa é toda tua com a mania dos ganhos em casinos.
- Nunca mais entro num local desses. Mas o importante era avisar alguém do nosso país. Talvez o professor Marcelo pudesse fazer alguma coisa…
- Achas? O mais provável era ir dar um abraço de consolação ao nosso paizinho e pregava-lhe um susto enorme…




Como veem, meus amigos, a eterna juventude da Céu e da Ciete acabou por as colocar numa situação delicada. Que fazer? Como conseguiria chegar às autoridades portuguesas o relato da sua situação?

segunda-feira, dezembro 30, 2019

O lado oculto dum convento

Quando atingiu os quinze anos, a Gracelinda começou a atravessar uma crise existencial: farta da materialidade da vida que levava em Ourém, ela pensava em encetar uma vida religiosa. À noite, os seus pensamentos centravam-se numa única visão: ela a viver em clausura com um terço nas mãos, rezando, rezando durante grande parte do dia e, no restante, lendo as principais obras da cultura cristã.
Um dia, comunicou aos pais o seu desejo. Estes ficaram tristes, preocupados:
- Andamos nós a criar uma filha para ela ir para freira… - dizia o pai. – Tinhas um futuro tão promissor lá no talho…
- Ó filha, e achas que nunca mais te vemos? – choramingava a mãe.
- Meus queridos pais, – respondia ela – vocês estarão sempre no meu coração. Claro que, de quando em quando, nos poderemos ver. A religião é uma forma de unir as pessoas e as famílias e não de as separar.
A verdade é que os pais não a conseguiram demover e, um dia, a Gracelinda entrou num convento em Coimbra. A sua primeira entrevista com a madre superiora foi marcante:
- Minha menina, – dizia a madre com um ar muito sério – tu vais ter de esquecer tudo o que é mundano, mas, ao mesmo tempo, a experiência que tens acumulada pode ser útil às nossas irmãs…
- Sim, madre Clotilde, pode contar inteiramente comigo.
- Sabemos qual é a atividade dos teus pais. Tens com certeza muita experiência do trabalho com carnes. Assim, fora dos teus deveres religiosos, vais ficar encarregue dos trabalhos de preparação das nossas refeições.
E a pobre pequena que queria rezar e ler viu-se a passar mais de seis horas diárias a preparar as refeições para as outras irmãs como se isso lhe desse a formação religiosa por que ansiava. Mais parecia a gata borralheira à ordem das cruéis irmãs do que uma noviça cinderela.
Um dia, na aproximação do Natal, a madre deu-lhe mais uma ordem:
- Ofereceram-nos dois cabritinhos para esta quadra e é importante começar a prepará-los. Como és a noviça mais recente, ficas encarregue de os abater e esfolar tal como os teus pais te ensinaram. Anda comigo e vou mostrar-te onde eles estão…
E lá foram direitas ao pátio onde num pequeno curral estavam os dois animaizinhos. A Gracelinda quase teve um ataque quando os viu.
«Que animais mais bonitos! Como vou conseguir matá-los?» - pensou a noviça.
Passou a noite a chorar.
«O que eu fiz! Este mundo é mais horroroso que o lá de fora! Só gente hipócrita…».
No dia seguinte, quando se levantou, depois de rezar mais de duas horas, dirigiu-se ao refeitório para tomar o pequeno almoço, mas a noite horrorosa que tinha passado tirou-lhe todo o apetite. Não conseguiu comer nada e deixou-se ficar sentada, olhando… simplesmente olhando…
A certa altura sentiu uma mão poisar-lhe nas costas. Era a madre superiora.
- Gracelinda, está na hora de matares e esfolares os cabritos.
E estendeu-lhe uma faca enorme. Não sei se a candidata a freira teve algum mau pensamento que a levasse a livrar-se da superiora, a verdade é que se levantou com um ar decidido, pegou na faca enorme e dirigiu-se ao quintal onde os cabritos brincavam.
Mais uma vez contemplou aqueles seres tão engraçados aos saltinhos e uma ideia formou-se imediatamente:
«Não! Não posso fazer isto… nem deixar que o façam…».
Levava a faca consigo, mas ela não foi utilizada naquilo que as irmãs queriam. Em vez disso, pegou nos dois cabritos, enfiou-os num saco de sarja e saiu do convento por uma porta lateral sem que as irmãs se apercebessem.
Num instante, chegou à estação de comboios e entrou numa carruagem com destino a Caxarias onde pediu a um táxi que a levasse até casa dos pais com a certeza de que estes não se recusariam a pagá-lo.
Quando a viram, os pais ficaram admiradíssimos.
- Gracelinda, que fazes aqui?
- Pai, o convento é horrível. Resolvi abandonar aquela vida. Acho que estava equivocada…
Só nessa altura, o pai reparou no saco que ela trazia que parecia mexer-se…
- Mas… o que é isso?
- São dois cabritos que trouxe do convento para…
- Maravilhoso, minha filha! Saíste do convento, abandonaste aquela vida horrorosa e trazes dois cabritinhos para o nosso almoço de Natal. Como estou feliz…



E agora? O pai da Gracelinda pensa que os cabritos são para a família, mas a intenção dela era libertá-los. Como é que vamos fazer avançar a estória?… E como vai reagir a madre superiora? Tenho a impressão de que a Gracelinda está metida num grande sarilho…
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...