sexta-feira, outubro 16, 2020

O fantasma da Feira Nova - 5

 O poder do pensamento


Não se atreveu a contar a todos os colegas, porque podiam gozá-lo. Mas contou ao seu grande amigo, o Barroso.

- Não sabes o que me aconteceu ontem na pista dos carrinhos de choque – e desbobinou a estória toda.

- Não posso acreditar… - e o Barroso batia com a mão na cabeça.

- Ainda gostava de passar por lá esta noite para ver se acontece o mesmo.

- Se quiseres, eu vou contigo. Aquilo até deve fechar mais cedo, porque não é um dos dias principais.

E, efetivamente, por volta das onze e trinta, o silêncio voltou à Feira Nova e iniciaram-se as arrumações.

O Zé Avião foi fazer as suas 20 voltas, enquanto o Barroso o esperava sentado num banco do jardim. Sempre que ele lhe passava à frente, somava um a um contador mental e assim ia controlando o tempo que tinha de esperar.

- Só eu… só eu tenho paciência para aturar este avião.

O treino do Zé Rito lá terminou e ele aproximou-se do Barroso. Parecia fresco como uma alface, não se notando nada do esforço que tinha feito.

- Já está. Vamos até lá para ver.

E dirigiram-se na direção da pista de carrinhos de choque. Nem sonhavam que essa noite o espetáculo ia ser muito mais completo.

Ainda não tinham chegado junto à pista quando as luzes se reacenderam e o Zé Avião viu repetir-se o espetáculo da noite anterior. Os dois miúdos estavam banzados com o movimento do carrinho, aparentemente sem condutor, mas que exibia uma condução que aparentemente deliciaria quem o conduzia.

Desta vez, não houve qualquer esboço de paragem junto ao Zé Avião. O carrinho seguia pela pista, muitas vezes em zig zag, gozando o momento. Passadas algumas voltas, parou e foi arrumar-se no local onde estava inicialmente.

O Zé Rito e o Barroso contemplavam tudo aquilo de boca aberta. Mas ainda não tinham visto tudo. De repente, uma espécie de fumo começou a sair de dentro do carro, parecendo algo de gelatinoso. O fumo parecia dirigir-se para o exterior da pista, parecia estar a formar uma figura conhecida.

E, então, como por encanto, viram que o Mina Guta se materializava junto deles.

- Oh! Também vieram ver a pista – dizia ele. – Esta noite, estive sempre a pensar nos carrinhos. E imaginem que até me imaginei a conduzir um deles e a andar de um lado para o outro sem mais ninguém me incomodar. É engraçado, não é?

Olharam-no aterrorizados. Que estranho poder teria aquele miúdo para conseguir fazer deslocar um carrinho de choque…

- Sim… sim… é engraçado. – e desataram a fugir na direção de casa como se tivessem visto um fantasma.

O Mina Guta contemplou-os admirado. Deitou uma última olhadela à pista e foi dormir com a convicção de que ali voltaria no dia seguinte.

Quanto ao Zé Avião, não fez mais voltas ao jardim enquanto a pista de automóveis ali estava. Ele e o Barroso combinaram não divulgar esta estória para não serem tidos como maluquinhos… mas o Estorietas tem provas de que ela realmente se passou. Talvez um dia as divulgue.



FIM


quinta-feira, outubro 15, 2020

O fantasma da Feira Nova - 4

 Encontros do 3º grau no primeiro dia de Feira


Durante a tarde, a feira fervilhava. Por todo o lado se fazia negócio, se jogava, se utilizavam as diversões. O som dos carrinhos de choque tomava conta de tudo criando uma animação muito especial.

O Zé Rito (Avião) e o Mina Guta encontraram-se na rua da Olaria e foram na direção da feira.

- Vamos dar uma volta nos automóveis – dizia o Zé Rito.

- Não posso. Não tenho dinheiro – e rapidamente o Mina Guta contou a estória passada na padaria.

- É muito injusto – disse o avião. – Mas podes acompanhar-me no meu carro e fazes tu de piloto virtual.

Assim, o Mina Guta, apesar de não conseguir sentir toda a adrenalina dos carrinhos de choque, conseguiu fazer algumas viagens nos mesmos como pendura do Avião.

A noite chegou e a diversão continuou por algumas horas. O Zé Rito e o Mina Guta foram jantar e pouco depois regressavam.

- Agora vou andar no Carrossel – disse o Zé Rito. – Não te posso levar porque ali cada um paga.

- Não faz mal. Vou até ao Poço da Morte. Mesmo que não tenha uma borla, sempre posso ouvir o ruído.

A noite foi passando. O Zé Avião não voltou a encontrar o Mina Guta.

«Se calhar, já se foi deitar…».

Por volta da meia-noite, as pessoas começaram a recolher. Os divertimentos começaram a ser desligados.

«Vou fazer a minha maratona no jardim…»

Era um hábito do Avião. Todas as noites fazia 20 voltas ao jardim, utilizando o seu circuito interior mais largo. Mantinha assim excelente forma física.

Quando terminou, saiu perto da Câmara e tomou a direção de casa. Não se via ninguém. Silêncio. Escuridão.

Passou junto aos carrinhos de choque. Ali estavam eles, na sua pista, bem arrumadinhos a descansar para o próximo dia de feira.

«Era bom que todos os dias do ano fossem assim.»

De repente, sentiu um arrepio. As luzes da pista ligaram-se e, sem se ver qualquer pessoa, um dos carrinhos começou a deslocar-se. Ficou de boca aberta.

«Mas… não é possível.»

O carrinho continuava o seu caminho. O Avião iria jurar que, quando passou junto a si, afrouxou e quase pareceu convidá-lo a entrar. Depois, acelerou, deu mais uma volta e estacionou. As luzes foram desligando e o silêncio e a escuridão voltaram ao local.

«Amanhã, ninguém acreditará em mim no CFL. Há um fantasma na pista dos carrinhos de choque.»


quarta-feira, outubro 14, 2020

O fantasma da Feira Nova - 3

 Aquele olhar


Uma das casas que circundava o Largo era a casa da Júlia Padeira. Como calculam, funcionava ali uma padaria. Tantas vezes o Estorietas assistiu ao modo como o senhor Zé Maria introduzia ou retirava o pão do forno, podendo depois deliciar-se com o seu sabor.

Era magnífico o pão daqueles tempos: as carcaças, os bicos, o pão escuro, a broa… sabores tão diferentes daqueles que desfrutamos agora.

A verdade é que o Mina Guta também se abastecia na padaria da Júlia Padeira. Todos os dias ali ia buscar o seu pão e todos os dias sentia o olhar profundo daquela senhora, avó do Quim e do Julito. Aquele olhar perturbava-o um pouco, mas não falava muito nisso. A verdade é que, em Ourém, dizia-se que aquela senhora tinha certos poderes… poderes especiais… esotéricos…

Quem não punha os pés naquela padaria era a Teresinha, apesar de muito perto dos seus domínios. Sempre que a Dona Estefânia lhe dizia para comprar pão, ela simulava passar por ali e ia à loja do sr. Oliveira onde não tinha de suportar um olhar que lhe metia medo e podia encontrar mais alguns colecionáveis.

Na quinta-feira em que a Feira Nova foi inaugurada, uma avalanche de gente caiu na padaria. No meio deles, estava o Mina Guta que, a custo, conseguiu chegar ao pequeno balcão e entregar a sua saca e o dinheiro para a ração habitual. No regresso com o pão e, depois de aviar mais três clientes, a velha senhora disse para o Mina Guta:

- São dois escudos…

O Mina Guta contemplou-a admirado:

- Mas eu já paguei…

- Não, não, não entregaste dinheiro nenhum. Este senhor à tua esquerda é que pagou…

O homem apressou-se a reforçar a confusão:

- É verdade. Vi muito bem que esse menino só entregou a saca para o pão. O dinheiro que levou era meu.

- Faz favor, pagas, senão não levas o pão…

E que fez o Mina Guta, honesto como sempre? Utilizou o dinheiro que tinha juntado para os carrinhos de choque a pagar o pão que já tinha pago…

O resto do dia foi um desespero para ele. Sentia-se estranho. Não deixava de recordar aquele olhar que parecia tê-lo perpassado. E interrogações constantes tomavam conta dele. Como poderia utilizar os carrinhos de choque? Como poderia ver o Poço da Morte?

«Paciência. Vou ver o que puder… e a minha imaginação fará o resto.»

Abençoado o reino dos humildes…


terça-feira, outubro 13, 2020

O fantasma da Feira Nova - 2

 Assim falava Zezetusta


O Mina Guta era um gajo muito especial. Vizinho do Estorietas, nutria por ele uma daquelas amizades que só aquelas idades são capazes de gerar. Jogavam futebol no Largo, jogavam ao berlinde ou ao pião nas ruelas.

Mas a sua amizade manifestava-se de uma forma especial. Sempre que via o Estorietas, depois do cumprimento inicial, a pergunta sacramental era:

- Então, quando é que vais embora?

Grande amigo, hem?... 

A razão para o seu nome era simples, julgo que quase todos os amigos do Largo se lembram. O Mina Guta tinha um irmão, o Zézé, um puto muito mais novo e que dizia muitas vezes aqueles disparates das idades infantis. E um dos que dizia muitas vezes era:

- Mina Guta é puta…

E o Augusto ficou Mina Guta para todo o sempre.


segunda-feira, outubro 12, 2020

O fantasma da Feira Nova - 1

Nas vésperas do grande acontecimento


Aproximava-se o grande momento. Os carrinhos de choque já se amontoavam nas imediações da Câmara e toda a estrutura de montagem acumulava-se junto ao posto da GNR. Os cavalinhos, girafas e bancos do carrossel esperavam junto ao velho depósito do qual saia um cheiro nauseabundo.

A miudagem andava de um lado de outro antecipando as novidades. Um deles era o nosso querido Zé Avião.

- Dizem que este ano também vem o Poço da Morte.

- É, pá, adoro isso – respondeu o Mina Guta. – E tenho a impressão de também vamos ter aviões. Estão ali alguns objetos que me fazem lembrar as formas deles…

Nesse momento, aproximou-se a Livinha que era colega do Avião na CFL.

- Então, Zé, hoje faltaste às aulas?

- Vim só dar uma corridinha para ver as novidades da feira.

- E apuraste alguma coisa?

- Nada de novo. Parece tudo igual ao ano passado. Bom… ainda vou ter uma aula, tenho de partir.

Ligou a mota virtual…

- Truummm! Truummmm! – tudo ruído real produzido por ele. – Mais logo, volto cá para ver como está a montagem das coisas.

- Não te esqueças de nos informar…

O Avião acelerou e partiu a toda a velocidade na direção do CFL. Pouco depois, assistia a uma aula de História, mas todo o seu pensamento concentrava-se na quinta-feira que se avizinhava e em que poderia desfrutar de muitos dos divertimentos que se anunciavam.

Por seu turno, o Mina Guta coçou a cabeça e resolveu ir até casa, uma casinha branca colada à casa vermelha do início da Rua de Castela. A sua mente também fervilhava com as novidades que se avizinhavam. Mas ele não era dos que podia gozar muito aqueles divertimentos. Pouco abonado, deixava a sua imaginação fluir e imaginava-se a utilizar aquelas máquinas maravilhosas substituindo os pilotos que as conduziam. Por vezes, até jurava que elas se mexiam de verdade…


sábado, setembro 19, 2020

El Cisco e el Panchito: a ruptura

O regresso para a habitual feira

El Cisco e Juanico, el Panchito chegaram a Ourém com o objetivo de participar na famosa feira anual. El Cisco pensava em Lucy e Flor Vermelha. Cada vez mais sentia a necessidade da sua presença e da sua companhia. Já Juanico só pensava em comidinha, no magnífico borrego do Bengala e nos cozinhados de Dona Estefânia. El Cisco trazia um ar de sonhador, Juanico parecia esfomeado…

sexta-feira, setembro 18, 2020

El Cisco, a figura de ficção que desejavas ser

 

1. A jovem dos cabelos de ouro

Houve um momento em que o Estorietas se julgava essa figura lendária do Oeste que foi el Cisco Kid. Ele imaginava-se a atravessar os locais visitáveis de Ourém no seu corcel Diabo, acompanhado dessa figurinha balofa e hilariante que era Juanico, el Panchito. Enquanto el Cisco pensava nas lindas garotas que poderia encontrar nos subúrbios, el Panchito sonhava com a boa comidinha que encontraria nas casas de pasto.
Um dia, foram passear para os lados do Castelo e os pensamentos deles cumpriam o costumeiro ritual. De repente, el Cisco olhou do alto do seu corcel na direção de um jardim e chamou a atenção do amigo.
- Olha, Panchito, é ouro, verdadeiro ouro… - e apontou na direção do jardim.

sexta-feira, junho 19, 2020

Um encontro casual

No sábado seguinte, na cabana na Urqueira, a Deolinda procurou o João.
- O meu irmão quer que o acompanhes às compras para os ajudar a trazer as coisas. Vai tomar banho para não chamares demasiado a atenção e tem cuidado durante a deslocação, pois, se fizeres algum movimento em falso, eles não são meigos.
- Não me obrigues a ir. Não me apetece sair daqui.
A rapariga ficou irritada.
- Faz o que te digo. Olha que te arrependes.
Nesse momento, apareceu o pai da rapariga.
- Então, isso está demorado?
- Ele diz que não quer ir convosco.
- O quê? – avançou rapidamente para o João e enfiou-lhe um murro no olho esquerdo.
O rapaz caiu no chão e, quando esboçou o gesto de se levantar, viu que o indivíduo se preparava para o pontapear. No entanto, a rapariga interpôs-se.
- Pai, não precisas ser tão violento. Eu tenho a certeza que ele vai convosco.
- Então que se despache.
Daí a pouco, um estranho trio circulava pela Urqueira a adquirir alguns bens essenciais para a sua subsistência. Quando entraram na loja do ti’Alberto, o Amândio ia a sair e reparou neles. Ele não conhecia o João, mas a sua cara fez-lhe lembrar alguma coisa.
«É estranho. Aquele rapaz nada tem a ver com aqueles indivíduos. Acho que já o vi em qualquer sítio.»
Esperou que eles saíssem da loja e reparou então que tratavam o João como um criado sem direitos dirigindo-se para uma azinhaga e pouco depois desaparecendo da sua vista.
«Já sei, é a ciganada que construiu a cabana de madeira lá atrás. Mas o rapaz parece contrariado.»
E, de repente, fez-se luz.
«Já sei, é o miúdo pelo qual oferecem uma recompensa em Ourém Tenho de avisar o Estorietas.»
Foi buscar a bicicleta e pôs-se a caminho de Ourém, pedalando a toda a velocidade. Demorou cerca de meia-hora a chegar à casa rosa da Rua de Castela onde pôs o seu amigo ao corrente do que se passava.
- Vamos falar com o Dr. Preto para ele decidir.
Pouco depois, o Dr. Preto e a GNR estavam ao corrente da localização do João e seus sequestradores e uma força policial pôs-se a caminho da Urqueira tendo procedido à libertação do João e efetuado a prisão da Deolinda e seus familiares.
O Estorietas e o Amândio recusaram a recompensa, mas aceitaram um lauto banquete no restaurante do café Avenida na companhia do Dr. Preto. Ainda estavam a meio da refeição quando viram o João entrar e saudaram-no.
O Estorietas levantou o seu copo e afirmou:
- Bebo à tua saúde, amigo João. Não te esqueças de fazer outro disparate para termos recompensas como estas…
- Não haverá mais disparates – garantiu o Dr. Preto. – Vou cortar-lhe a mesada e as saídas. E, para o acalmar, vou receitar-lhe uma coisa que ele próprio sugeriu há uns dias: um clister diário com sedativo. De certeza, não terá vontade de fazer mais disparates.




FIM

quinta-feira, junho 18, 2020

Recompensa por um pirata

Três dias depois, sem qualquer notícia do João apesar das diligências da GNR, o Dr. Preto dirigiu-se ao posto com o objetivo de falar com o comandante que o recebeu imediatamente.
- É verdade, doutor. Apesar dos nossos esforços, não consigo transmitir-lhe qualquer boa notícia. Até parece que se evaporaram.
- Mas não seria possível fazer uma busca sistemática pelo concelho utilizando em simultâneo um grande número de agentes?
- Doutor, deixe-nos proceder às investigações. Em breve, teremos notícias, tenho quase a certeza. Eu respeito a sua ansiedade, mas deixe-nos trabalhar. Pelo menos até agora, não teve nenhuma má notícia e estas chegam sempre depressa.
- Grande consolação… mas informo-o que decidi fazer uma coisa.
- O quê, posso saber? Tenha cuidado, olhe que este caso só o é devido a todos os disparates feitos.
- Sou suficientemente maduro para determinar o que posso ou não fazer – respondeu secamente o Dr. Preto. -  Vou oferecer uma recompensa de 100 mil escudos a quem der informações fidedignas e que nos conduzam a encontrá-lo.
- Cuidado, doutor, há muitos aldrabões que podem tentar aproveitar-se da oferta. É uma quantia bastante elevada…
- Deixe lá, ele pagará em duplicado, porque o deixarei sem mesada até me sentir compensado.
Nessa mesma tarde, o Dr. Preto foi ter com o Melo à tipografia e, ao fim da tarde, estavam feitos cartazes oferecendo uma recompensa a quem desse informações sobre o João que levassem ao seu retorno são e salvo.
Mais uma vez, o grupo de amigos do João, agora incluindo o Estorietas, participaram na distribuição do cartaz, colando-o em pontos chave da vila desde o CFL até ao Regato e à Melroeira.
E foi exatamente no CFL que o Amândio teve conhecimento de que o João era procurado, depois de uma fuga com uma rapariga muito bonita e dois indivíduos mal encarados com um aspecto que fazia lembrar ciganos, sendo oferecida uma recompensa de 100 mil escudos a quem desse informação que ajudasse a encontrá-lo.

quarta-feira, junho 17, 2020

Caminho para a escravidão

O carro em que seguiam o João, a Deolinda e os familiares desta saiu de Ourém a toda a velocidade e com os seus ocupantes muito nervosos.
- Eu logo vi que este gajo nos ia arranjar algum problema – dizia o irmão da rapariga, olhando significativamente para o João.
- Cala-te – respondeu ela. – Vocês é que são uns atrapalhados, pois não perceberam que os cartazes eram uma armadilha para nos atrair a Ourém. Caíram que nem uns patinhos…
- Agora, não podes ficar naquela casa. Se te apanham acabas por nos denunciar.
Chegaram à cabana e começaram a levar todo o recheio para dentro do carro. O João olhava tudo aquilo como se fosse um sonho, não acreditando no sarilho em que se tinha metido.
- Esperem. Eu posso voltar a Ourém e assumir o que fiz…
- Para nos denunciares? Não! Vais connosco e não voltarás a ver os teus amiguinhos. Vamos, salta para o carro, pois ainda temos de voltar para levar mais coisas.
Arrancaram na direção de Caxarias. Passaram a povoação e, pouco depois, chegaram à Urqueira. Aí, meteram-se por um caminho não alcatroado e, pouco depois, chegavam a nova casa construída em madeira. Era bem maior que a da rapariga, mas notava-se que estava pouco cuidada.
- Esta é a tua nova casa. Só sairás daqui na companhia de um de nós. Para já, não irás a Ourém, nem temos necessidade, pois há uma ou duas lojas aqui na Urqueira onde nos podemos abastecer da maior parte das coisas.
- Mas porque não me deixam regressar? Eu juro que não digo nada…
- Para já, vais trabalhar um pouco para nós. A Deolinda mostra-te o local onde vais dormir e ficas encarregado de tratar das galinhas e dos porcos. Ai de ti se deixas os bichos com fome.
- Eu a tratar de gado? Não sei, nunca fiz uma coisa dessas.
- A Deolinda ensina-te. Vá, rapariga, não querias escolher o teu noivo? Ensina-o a trabalhar. Já… - e deu um tal piparote na filha que ela movimentou-se imediatamente.
- Anda, João. Vem comigo.
Saíram os dois e ela conduziu-o aos currais e capoeiras ao lado dos quais havia uma pequena casota.
- Aqui encontras tudo para tratar da bicharada. Tens água naquela torneira e todas as manhãs limpas o curral dos porcos. Tens ali palha seca para substituir a que retiraste. Em relação às galinhas tens que lhe dar milho duas vezes por dia, deixa-as andar pelo campo e, depois, recolhe-as…
- Eu… eu… eu…
- Anda, agora vou mostrar-te onde vais dormir.
E conduziu-o a um casebre onde existia uma cama andrajosa.
- Podes dormir ali. Depois de jantar, vens para o teu quarto e o meu irmão virá trancar-te a porta. De manhã, tirará a tranca e podes cumprir o teu trabalho.
- Mas… mas… então não vou ficar contigo?
- Tudo passa, João, tudo passa… Apoiaste-me contra o Estorietas, mas algo estragou tudo. Desculpa, mas já não tenho qualquer interesse em ti.
- Mas tu juraste…
- Nunca acredites nas promessas de uma mulher. Têm sempre validade limitada.
O João sentiu-se desesperado. De um momento para o outro ficará sem os amigos, sem a rapariga e podia considerar-se numa situação de quase escravatura.

terça-feira, junho 16, 2020

A libertação do Estorietas

Após entregar o busto a mestre Bernardino, o primeiro acto do comandante foi voltar ao posto e abrir a porta da cela onde estava o Estorietas. Foi acompanhado por grande grupo de miúdos que, mal ele saiu, o saudou com uma salva de palmas.
- Caro Estorietas, – disse o comandante. – lamento o tempo que aqui passou o que foi motivado por uma prova forjada contra si pelo João e pela Deolinda.
- Já tinha pensado nisso, mas confesso que fiquei muito desiludido com o João. Que lhe vai acontecer?
- Ainda não sabemos. No fundo o delito que cometeu nem é muito grave. Foram piores as consequências da prova forjada que o fizeram passar este mau bocado. Tenho de falar mais uma vez com o Dr. Preto. Possivelmente, será enviado para uma casa de correcção.
- Não, não façam isso ao meu querido irmão – suplicou a Luzinha. – Eu ajudarei a fazê-lo voltar ao bom caminho.
- Todos nós ajudaremos, comandante – garantiu a Teresinha. – No fundo, a culpa disto foi toda minha ao atirar-lhe um saco de farinha à cabeça.
- Não se culpe, menina, nem culpe o saco. A culpa foi toda dele e da rapariga com quem se relacionou. Mas ainda não o apanhámos, vamos ter de o procurar e, antes de qualquer decisão, terei de falar, mais uma vez, com o Dr. Preto.
Os miúdos foram embora, agora acompanhados pelo Estorietas, e o comandante preparou-se para mais uma missão:
- Guarde Ernesto, prepare o jeep e mobilize o Elias. Vamos fazer uma investigação à zona do Olival.
Pouco depois, partiam na direção da cabana da Deolinda. Encontraram-na completamente abandonada como se ninguém a habitasse.
- Fugiram – dizia o comandante, afagando queixo. – Vou ter de falar ao Dr. Preto para lhe contar a situação do neto. É uma pessoa tão boa que não merecia um pirata destes lá em casa.
Pouco depois, o prestigiado médico era posto ao corrente da situação e ficou bastante incomodado.
- Faremos tudo para o encontrar, doutor.
- Conto convosco. Se não o encontrarem no prazo de três dias, eu próprio tomarei a iniciativa de fazer algo.
- Espero que não seja necessário. Envidaremos todos os esforços.

segunda-feira, junho 15, 2020

O busto volta a casa do legítimo dono

Depois de sair do Avenida, triste por não encontrar os amigos, o João voltou à cabana da Deolinda.
- Então o meu gatinho já voltou? Não encontrou os seus amigos?
- Penso que eles suspeitam que eu fiz uma partida ao Estorietas e estão a pôr-me de lado.
- Olha, há sempre um momento em que temos de optar. Se te puserem de lado, é porque não te merecem…
- Mas o Estorietas era meu amigo, a sério. Sempre o considerei um indivíduo ponderado, amistoso…
- Meu querido, estás no mesmo barco que eu. Aquilo que já lhe fizeste com certeza não tem perdão. Mas vem, vem aos meus braços, eu consolo-te…
O João deixou-se envolver no quente abraço da rapariga. Mas não lhe correspondia o que começou a irritá-la.
De repente, ouviu-se uma travagem no exterior e, pouco depois, uns passos aproximavam-se da cabana.
- Deolinda, Deolinda…
- Eles, outra vez… - murmurou o João.
Efetivamente, eram os familiares da rapariga que chegavam com um significativo ar de aflição. A rapariga ficou apreensiva.
- Que se passa?
- Deolinda, temos de devolver imediatamente o busto. Parece que contém um dispositivo que, se rebentar, pode libertar um gás tóxico e destruir a cabana…
- Não acredito, isso é uma brincadeira…
- E como ter a certeza? Vamos é libertar-nos dessa porcaria. Diz ao teu namoradinho para pegar nele e o trazer. Nós levamo-lo a Ourém e vai ser ele quem deixará o diabo do busto à porta do Bernardino.
O João apressou-se a obedecer. Ocupou lugar na parte de trás do carro ao lado da rapariga e partiram todos para Ourém, chegando pouco depois junto do ringue de patinagem da Juventude onde estacionaram.
Só o João saiu do carro para deixar o busto. Entrou pela pequena vereda que conduzia ao portão de entrada no campo, ali mesmo ao lado da farmácia Verdasca, e, pouco depois, deixou o busto voltando a correr para o carro, sem notar que era seguido por muitos olhos.
Ainda vinha a correr quando alguém gritou:
- Pare! Pare imediatamente!
Mas não obedeceu. Atirou-se para dentro do carro que arrancou logo de seguida. Ninguém os apanhou, mas, a partir daquele momento, o João era um «homem mau».

sexta-feira, junho 12, 2020

Um cartaz atrai a atenção de dois sujeitos suspeitos

Ainda não tinham passado cinco minutos sobre o momento em que o João saíra do Avenida, quando um grupo de miúdos chegou ao café e colou um pequeno cartaz. Que seria aquilo? Uma pequena aproximação ao mesmo, permitiria ler:


«Há uns dias, desapareceu do atelier de mestre Bernardino um busto que era a sua representação em madeira. Informa-se quem o retirou do local que deve proceder à sua devolução imediata sob pena de correr perigo de morte. Efetivamente, o busto contem um sistema de auto-destruição propulsor de um gás tóxico que carece de ser desativado em ordem a não provocar as consequências funestas inerentes ao gás e ao próprio processo de deflagração. Por favor, façam circular esta informação.»


E quem havia de ler tal informação?
Dois indivíduos, com aspeto de ciganos e que já conhecemos de casa da Deolinda, rondavam as instalações da Caixa Geral de Depósitos.
- Então, o que é que achas?
- Podemos entrar, mas estes táxis aqui à volta da praça vão ser um problema para estacionar o nosso.
- Também penso que não é um local muito bom.
Continuaram a olhar e, de repente, um deles viu o cartaz.
- Olha, o que é aquilo?
Foram ler e ficaram apreensivos.
- É o busto que está em casa da Deolinda. Vai explodir e pode-lhe acontecer alguma coisa. Temos de a avisar.
- Eu logo vi que a ligação com aquele papa-açorda só ia trazer chatices. Vamos…
- Esse Bernardino é um sacana sempre com invenções.
Foram a correr na direção de um automóvel e entraram no mesmo, ligando-o imediatamente. Nem notaram que os seus movimentos estavam a ser seguidos por uma miúda que contatou imediatamente os amigos.
- Uns indivíduos com ar de ciganos viram o cartaz e ficaram apreensivos. Partiram na direção do Olival.
- Era o que eu pensava – disse a Teresinha. – Devem ser familiares da Deolinda. Vou já avisar a GNR e preparar-lhes uma surpresa.
Pouco depois, muito disfarçadamente, um dispositivo policial ocupava posições perto do atelier de mestre Bernardino.

quinta-feira, junho 11, 2020

Uma noite de pesadelos

Nessa noite, o encontro do João com os amigos no Avenida foi um pouco problemático. Ficou surpreendido quando viu a Teresinha, a sua Teresinha… que foi a primeira a atacá-lo.
- João, tu fizeste alguma coisa para incriminar o Estorietas?
- Ouve lá, menina, antes de te pores com ar de investigadora, explica-me porque me atiraste com vinte quilos de farinha para cima. Puseste-me em risco de vida.
A miúda não se atrapalhou com a questão.
- E parece-me que não se perderia nada de bom. Acredita que estou arrependida de te ter agredido com o saco, mas era o que estavas a pedir tão inconveniente estavas a ser.
- Era o meu coração a falar. Jjejjjjjejjjjjejeje.
- Não gozes e responde-nos. Fizeste alguma coisa para incriminar o Estorietas?
- Claro que não…
- João, o nosso amigo possivelmente está a ser torturado, a fazer «estátua» toda a noite. Se o culpado és tu, acredita que nunca mais te queremos no nosso grupo.
O rapaz ficou sentido. Retirou-se um pouco mais cedo para casa, deitou-se, mas teve uma noite horrorosa, cheia de pesadelos. Imaginava-se a ser perseguido por aquelas miúdas: A Leninha dava-lhe com um chicote, a Livinha levava um açaime e uma trela para o dominar, as castelinhas abriam as masmorras do castelo para o enfiar no local mais escuro e a Teresina fazia sacos ainda mais pesados para lhe atirar para cima. E lá longe, no convento, a Gracelinda preparava ferros em brasa para lhe chagar o corpo. Para cúmulo, o ar de censura que notava na sua própria irmã causava-lhe arrepios.
«Não posso, não posso viver assim…»
Pela manhã, com muitas olheiras, foi até ao Avenida, mas curiosamente nenhum dos amigos apareceu.
«Onde estarão todos? Já não me dizem por onde andam. Sinto-me cada vez mais isolado.»
Efetivamente, se soubesse onde as miúdas estavam, não ficaria nada tranquilo. É que um plano começava a desenhar-se para seguir os seus passos e desencadear uma provocação que obrigasse os culpados a denunciar-se.

quarta-feira, junho 10, 2020

A família da beldade

Na cabana, o João e a Deolinda consumavam o amor que os unia e faziam juras de fidelidade eterna.
Faziam…
… a rapariga era tão sufocante que o João já parecia um bocadinho farto.
- Pronto, pequena, para um bocadinho.
- Oh! O meu gatinho não pode estar farto da sua gatinha…
A certa altura, ouviram um carro parar junto à cabana.
- Que é isto? – perguntou o João. – Ouvi um carro parar.
- Deve ser a minha família.
Efetivamente, pouco depois, alguém batia à porta e chamava.
- Deolinda… Deolinda…
Ela foi abrir e o João viu entrar em casa dois indivíduos vestidos de negro com ar de ciganos.
- Quem é este? – perguntou o mais novo com maus modos.
- É o meu namorado. João, apresento-te o meu irmão e o meu pai.
O João sentiu-se aterrorizado com o olhar deles. Examinaram-no de cima a baixo sem qualquer respeito.
- É um lingrinhas. – disse o mais velho – Não serve para ti…
«Ai se o Ventura me visse agora – pensava o João». Tentou armar-se em valente.
- Sou magro, mas não tenho medo de nada e ninguém. Que o diga a sua filha.
- Pfffff! Os meninos Yé-Yé de Ourém são uns queques que não prestam para nada – ladrou o mais novo e cuspiu para o chão.
- Não cuspas para a minha casa, labrego – gritou a rapariga para o irmão.
- Olha, menina, nós é que te reconstruímos a cabana. Em certa medida é nossa. E trata de te deixares de engatar miúdos de Ourém que não servem para nada. Já temos noivo para ti e oportunamente terás o teu casamento cigano.
- Cala-te. Eu é que escolho com quem caso… E o João é um valente. Já fizemos um assalto.
- O quê? Já o levaste para o bom caminho? E que conseguiram com esse assalto?
- O busto do Bernardino…
- Bah! Isso não serve para nada. Ainda vais pôr todos a perseguir-nos por causa do diabo do busto.
- Mas servirá para me vingar daquele crápula. Ele tem de pagar pela humilhação que me fez…
- Cospe, menina, cospe para cima dele. Nós podíamos tratar-lhe da saúde.
O João ouvia tudo aquilo e começou a sentir-se mal. Pouco depois, regressou a Ourém, mas a imagem daquela família horrorosa não lhe saía da cabeça. E comoveu-se ao lembrar-se do seu amigo Estorietas na prisão.

terça-feira, junho 09, 2020

A inspetora Teresinha

Um dia, pela manhã, a Teresinha fez uma paragem nos estudos e foi até ao Avenida falar com os amigos. Ficou abismada com as novidades.
- Mas… mas eu fiz isso ao João?
- Sim – respondeu a Leninha. – Ele ficou muito maltratado e só foi salvo por essa rapariga…
- … e agora passa o tempo com ela.
- Mas o mais admirável é que o Estorietas foi preso acusado de roubar o busto do atelier do Bernardino.
- Ah! Não posso crer? Aparece a Deolinda, cativa o João e o Estorietas vai preso?... Parecem-me coincidências a mais.
Admirável Teresinha! A única que não se deixava levar pelas aparências. Se o Estorietas a ouvisse, até pensava:
«Sob a aparência das coisas, esconde-se a sua essência.»
- Sabem? – insistiu a Teresinha. – Não acredito em nada disso. Esta tarde, vou ao posto da GNR e vejo se consigo apurar alguma coisa…
A Ceuzinha também não se deixava convencer.
- Essa prova não faz sentido. Qualquer pessoa de normal inteligência vê que é uma coisa forjada. Esse comandante da GNR não tem massa cinzenta...
À tarde, a Teresinha dirigiu-se ao posto da GNR e pediu ao comandante para falar com o Estorietas.
- Eu não devia consentir, mas, como é a menina…
Pouco depois, ela estava perante o rapaz…
- Teresinha – eu não fiz nada daquilo. Alguém deixou lá aquele pedaço de tela para me inculpar…
- Mas quem…?
- Não faço ideia. De qualquer forma suspeito muito da amizade do João com a Deolinda… ela é uma impostora, possivelmente, conseguiu levá-lo a ajudar no roubo.
- Não me admiro. Esse João é mesmo parvo. Diz que é muito cuidadoso, mas fica todo babado quando vê um rabo de saias.
A Teresinha saiu dali convencida da inocência do Estorietas. À saída, o comandante perguntou-lhe:
- Conseguiu apurar alguma coisa? Nós não lhe arrancámos nada.
- Pois não, comandante, não arrancaram, porque ele está inocente, mas, se os senhores não descobrirem os culpados, eu e os meus amigos entraremos em ação.
- A menina não se meta em mais nenhum sarilho, deixe a investigação seguir o seu rumo…
- Investigação? Não os vejo fazer nada…
- Não diga isso. E não se convença da inocência dele. Vai ver que depois de umas horas em «estátua» e de uns torcegões nos dedos, ele acaba por confessar.
Ela não respondeu, abismada e, num instante, chegou ao Avenida.
- Meninos e meninas, passa-se uma coisa muito grave. Eles estão a preparar-se para torturar o Estorietas…

segunda-feira, junho 08, 2020

A tela delatora

Quando o Bernardino deu pela falta do busto, chamou de imediato o comandante da GNR e um elemento da polícia local. As investigações começaram imediatamente e em breve chegaram a uma conclusão:
- Apenas estavam interessados no busto, pois não levaram mais nada. Com certeza obra de alguém ligado à arte.
- Mas reparem neste pedaço de tela… - disse o elemento policial.
Desdobraram o papel e conseguiram ler.
- Esquisito… isto é de uma tela do Estorietas.
- O safado – urrou o comandante. – Quis o busto para fazer alguma coisa com ele. Também tem a mania que é um grande artista, mas não irá longe.
- Não compreendo – dizia o Bernardino. – Se mo tivesse pedido, eu tinha-lho emprestado o tempo que fosse preciso.
- Ele é um malandro – bradou o comandante. – Sempre o foi. Há tempos denunciou uns amigos a dizer que estavam a realizar uma manifestação para libertar uma perigosa comunista.
- Não posso crer. Eu a pensar que tinha alma de artista…
- Artista da aldrabice… Bom, temos aqui uma prova, eu vou tratar de o mandar prender e fazê-lo confessar o que fez com o busto. Mantê-lo-ei informado, senhor Bernardino.
- Agradeço-lhe, comandante. Mas veja bem, ainda me custa a crer que esse rapaz tão calmo, tão compenetrado, tão bom estudante tenha feito isso.
E, no mesmo dia, para vergonha de toda a Rua de Castela, o Estorietas era preso, algemado e conduzido sob escolta à prisão da GNR. Mais abaixo, o João e a Deolinda gozavam o prato…

sexta-feira, junho 05, 2020

Uma equipa que ganha / um busto que desaparece

O jogo contra o Tomar, «os da ponta do rabo branco», mais uma vez foi épico. O Atlético alinhou com o Mário que alternou na baliza com o Fonseca, o Abel, o Rui Costa, o Piriquito e o Rui Prego. A famosa «Equipa Maravilha» que se dava ao luxo de ter um Pintassilgo a suplente. Ao princípio estavam nervosos e os outros muito rápidos, tanto que, em determinada altura, o Carreira atirou o Abel contra a cercadura do campo que se partiu e caíram os dois cá para fora.
A multidão puxava pela sua equipa.
- A-tlé-ti-cu! A-tlé-ti-cu!! A-tlé-ti-cu!!!
Sentados na bancada lateral, o João e a Deolinda, de mão dada, quase não davam pelo jogo, tão concentrados estavam um no outro. O Estorietas estava mais para a esquerda, perto dos balneários com outro grupo de amigos.
 Certa altura, a Deolinda apontou o atelier do Bernardino.
- Estás a ver, João?
- A ver o quê?
- Do outro lado. O busto…
Efectivamente do outro lado do campo, na varanda do atelier, o busto do Bernardino, uma representação perfeita do autor, quase parecia assistir ao jogo.
- João, aquele homem é que é o verdadeiro artista. Quero aquele busto para mim, para a minha cabana…
- O quê? Estás louca?
- Nem por sombras. Nunca estive tão lúcida. E já sei quem vai ser responsabilizado pelo desaparecimento do busto. João, tu vais ajudar-me.
Estava tão chegadinha a ele, tão entrelaçada, tão doce que ele não pôde recusar.
- Está bem. O que queres que faça?
Foram interrompidos por formidável manifestação de júbilo. O Abel, o grande defesa do Atlético, acabava de marcar um golo que virava o resultado. Pela primeira vez na partida, o Atlético estava a ganhar.
O João levantou-se a gritar a apoiar a equipa. Nessa altura jurou que, toda a vida, apoiaria qualquer equipa cuja designação fosse Atlético. Mas a rapariga não o deixou embriagar-se na comemoração. Puxou-o para ela e segredou-lhe:
- Quando isto acabar, deixamos sair todos, tu saltas lá acima, tiras o busto e levamo-lo no carro para a cabana. E eu deixo algo a incriminar o Estorietas…
- JJjjjejjejjjjejjjj. O busto pesa muito.
- Não sejas maricas. Eu ajudo a transportá-lo.
Pouco depois, o jogo acabava com uma gloriosa vitória do Atlético. A multidão saiu satisfeita. Encolhidos, a um canto do campo, o João e a Deolinda esperaram que o campo ficasse vazio, que saíssem os jogadores e dirigentes, que alguém fechasse a luz. Depois ele saltou ao atelier do Bernardino, retirou o busto que pesava a valer, pois era de madeira maciça, saltou com a rapariga o muro que os separava do exterior e enfiou-se com ela dentro de um carro que, pouco depois, os conduziu para fora de Ourém. No local do busto, ficava uma coisa estranha, parecia um pedacito de madeira com papel, mas neste podia ler-se claramente um nome: «Estorietas».

quinta-feira, junho 04, 2020

Planos para uma noite em Ourém

A cabana reconstruída estava uma maravilha. Situada no meio da natureza, transformava qualquer momento em algo muito especial.
Enquanto se dirigia para lá, o João, recordando a imagem da linda rapariga, cantarolava:


Tenho fome tenho sede, não é de pão nem é de vinho, tenho fome de um abraço, tenho sede de um beijinho.


O João adorou a cabana, adorou o almoço e adorou a companhia.
Depois de comerem, sentaram-se no exterior em cadeiras que baloiçavam e o rapaz sentiu a tentação de lhe pegar na mão, mas conteve-se.
- Estás a gostar deste dia, João?
- Sem dúvida, nunca pensei desfrutar de um momento tão bom e numa companhia tão doce.
Foi ela quem lhe tocou na mão e, pouco depois, estavam de mão dada.
- Achas que sou uma companhia doce?
- Doce, bela, um encanto…
- E como interpretas que alguém me recuse?
- Mas… eu não recuso a tua companhia.
- Tu não, mas aquele teu amigo…
- É um parvalhão. Não sabe o que perde, Jejjjejjjjjejje
- Mas fez com que me sinta muito magoada.
- Ele magoou-te?
- Tanto! Tanto! Tanto!
E levantou-se de um salto que até assustou o rapaz.
- Anda comigo. Vou mostrar-te…
Levou-o para o interior da cabana e mostrou-lhe duas ou três telas. Todas com animais horríveis com dentes ameaçadores.
- Olha o que ele me fez. Pedi-lhe várias vezes para me desenhar e fez estes animais horríveis. Não achas que tenho razão para o odiar?
- Que horror! Como é que alguém pode fazer uma desfeita como essa a uma miúda linda como tu?
Ela encostou-se-lhe ao peito e aproximou a cara da dele.
- Não me farias isso, pois não, João?
O rapaz sentiu-se fraquejar, sentiu que começava a ser dominado por aquele encanto soberbo.
- Deolinda, eu não sei desenhar – foi o que conseguiu articular.
- Mas felizmente não me rejeitas…
E o João sentiu a força do amor daquela linda miúda. Estava encantado.
- Deolinda, temos de encontrar-nos muitas vezes.
- Sempre que quiseres, meu amor. Mas temos de ter cuidado com o Estorietas…
- É um cretino. Não conseguirá fazer nada – garantiu o João.
- Se calhar, devíamos preparar-lhe uma partida…
- Ouve, não vais fazer mal ao meu amigo…
- Só uma pequena partida…
- Mas o quê?
- Ainda não sei. Depois pensaremos. Agora, diz-me uma coisa: gostas de ver hóquei em patins?
- Gosto, porquê?
- Eu aprecio muito e vai começar o campeonato. O Atlético agora joga no antigo campo do Juventude donde se avista o atelier do Bernardino. Hoje é contra os de Tomar. Queres ir ver o jogo comigo?
- Claro…
- Então, encontramo-nos em Ourém logo à noite antes do jogo.


O João, pateta como sempre, vai cair no jogo da beldade? Trairá a sua amizade com o Estorietas? 

quarta-feira, junho 03, 2020

A integração no grupo

Viu que a rapariga lhe sorria.
«Parece um anjo. Quem diria que me espetou a forquilha no traseiro?»
- Ansiava por poder desculpar-me daquele dia na minha cabana…
- Mas está viva? Como escapou?
- Naquele dia, apenas desmaiei. Quando voltei a mim, fui ter com os meus familiares que me socorreram. Somos um grupo muito unido. Tanto que já reconstruímos a cabana…
- Mas a polícia não voltou a procurá-la?
- Não houve queixa contra mim. No fundo que mal fiz eu? Era apenas um momento de paixão louca a que o Estorietas não conseguia corresponder.
- Vejo que ele não a merecia.
Ela colocou a mão no braço dele.
- Esqueçamos isso. Felizmente você está bem e já esqueceu a agressão a que o sujeitei…
- Tudo esquecido – disse o João sorridente. – Estou encantado por a conhecer. Aliás, acabou de me salvar a vida. Quer vir até ao café?
- Hoje não posso. Tenho de regressar a casa…
- E amanhã? Por que não aparece amanhã no Avenida? Apresentava-a a todos os meus amigos…
Combinaram encontrar-se no dia seguinte na esplanada do Avenida. E, pelas onze horas, um pequeno grupo falava animadamente quando ela ali chegou. O João levantou-se, pegou-lhe delicadamente na mão e anunciou:
- Meninos e meninas, esta é a Deolinda uma amiga que ontem me salvou e vida…
E contou rapidamente o que lhe acontecera na noite anterior. Todos ficaram muito admirados com a agressão da Teresinha.
- Não consigo acreditar – dizia a Livinha. – A Teresinha não é pessoa para maltratar ninguém…
- Possivelmente excedeste-te. Ela anda atrapalhada a estudar para exames – informou a Leninha. – Também me custa a crer nessa agressão por parte dela…
- A verdade é que o encontrei num estado lastimoso – afirmou a Deolinda. – Mas ela já não estava à janela. Acredito que não se tenha apercebido das consequências…
- Olha, Deolinda, não interessa. Oportunamente ela esclarecerá tudo. Agora, és nossa amiga. Queres vir ao nosso bailarico desta noite no sótão do Luís Filipe?
Ela ficou encantada com o convite.
- Ainda agora os conheci. Não sei se deva aceitar…
- Tens de vir – acrescentou o João. – Vais ver que todos te tratam bem.
Ela sorriu, mas de repente ficou tensa a olhar na direção dos Correios. Pelo passeio, vinha uma figura conhecida.
O Estorietas começou a atravessar a rua. Ainda não a tinha visto, mas, mal olhou para a esplanada, virou a cara, fez um esgar de desprezo e mudou de direção como se fosse para o Central.
«Será que perderam um amigo? – pensou a Deolinda».
À noite, a rapariga foi uma espécie de rainha do baile. Todas as atenções dos rapazes eram para ela e o João foi a pessoa que mais tempo passou a dançar com ela. Estranhamente, O Estorietas não apareceu no bailarico, mas pouco pensaram nisso.
Já eram onze da noite quando a rapariga disse para o João.
- Devo ir-me embora. Amanhã não queres visitar a minha cabana? Podemos almoçar por lá…
- Lá estarei – respondeu o João ansioso por avançar.


E agora? Estará o João em perigo? Terá a Deolinda alguma ideia em mente?

terça-feira, junho 02, 2020

Aparição

Mal o Zé Manel sentiu que a Teresinha estava incomodada, deixou de tocar e foi direito ao Avenida, deixando o João sozinho. Este continuou a cantar mesmo sem acompanhamento e, de repente, sentiu que um corpo pesado, mas não muito duro, lhe caía em cima.
O problema é que algo se rasgou e começou a sentir-se envolvido por uma massa branca totalmente pulverizada.
- Pffffff! Que porcaria é esta?
Tentou afastar aquilo de cima, mas não foi capaz. O nariz começou a ficar tapado e a não conseguir respirar, a boca ficou cheia de uma massa branca pulverulenta, os olhos estavam incapazes de ser abertos já que cobertos daquele pó horroroso.
Começou a sentir-se atrapalhado e batia com toda a força com a mão na cara para sacudir a massa horrorosa que parecia sufocá-lo. No entanto, a impotência começou a dominá-lo.
O João desesperava.
«Parece que não escapo desta. O que aquela malvada me fez… a minha doce Teresinha».
A pobre rapariga, alheia a tudo aquilo, continuava a preparar-se para os exames.
E foi quando o João já pensava que ia morrer calçado que uma voz muito doce soou ao seu lado:
- Precisa de ajuda?
Arfou, fez todo o possível para mostrar que estava o pior possível. A dona da voz doce puxou um lenço e começou a limpar-lhe o rosto. Mas os progressos eram lentos e o rapaz sentia-se cada vez mais com falta de ar.
Ela sugeriu:
- Vamos ao chafariz e eu retiro-lhe a farinha com água.
Farinha… então a malvada da Teresinha tinha-lhe atirado com um saco de farinha acima…
A providencial ajuda serviu-lhe de apoio para irem até ao largo do chafariz frente à casa do Administrador onde ainda funcionava a alfaiataria do Sabino e a Anita pôde assistir ao estranho espetáculo de uma rapariga muito bonita a lavar a cara do João e a retirar-lhe a farinha que tinha enfiado por todos os buracos da cara.
«Se calhar meteu-se nos copos – pensou e não ligou mais ao assunto.»
Entretanto, o João começou a respirar com mais facilidade e a sentir-se melhor. E houve um momento que pôde ver a sua salvadora… e teve um arrepio.
«É ela… é ela.»
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