quinta-feira, dezembro 11, 2025
A barca da salvação
Na outra margem, um bando de pequenos jacarés inquietava-se,
filhos da aventura antes do tempo.
Queriam atravessar. Queriam o mundo.
E foi então que a raposa vermelha apareceu, silenciosa,
como quem sabe o ofício de viver.
Olharam-na com ousadia.
Pediram-lhe passagem, sem cerimónias nem temor.
A raposa, que conhecia as sombras da mata e o coração das mães,
percebeu logo que não havia ali malícia,
apenas o ímpeto natural de crescer.
Sem alarde, ofereceu o lombo.
Fez-se barca.
Deixou que seis destinos miúdos se ajeitassem nas suas costas.
E lançou-se ao rio, remando com as patas
como quem abre caminho no próprio fado.
A corrente levou-os, mansa,
e nenhum perigo se levantou contra aquela estranha confraria.
Na outra margem, a raposa inclinou-se,
e os pequenos saltaram para a terra firme
com a gratidão muda dos bichos que entendem a dádiva.
Missão cumprida.
A raposa seguiu adiante,
sem pedir louvores,
porque, na natureza,
ser justo basta.
terça-feira, dezembro 09, 2025
A Lenda do Guardião dos Moinhos de Ourém
Dizem os mais antigos que, muito antes de as pedras do
castelo se tornarem ruínas e de os moinhos pararem de rodar ao vento, a Colina
de Ourém era vigiada por um homem solitário e por um companheiro que não
era menos do que a alma selvagem da própria serra: o Lobo Velho.
Nessa altura, os moinhos cantavam noite e dia, movidos por
ventos caprichosos que vinham do vale. O barulho das pás misturava-se com o som
dos pinhais, criando um hino estranho, como se a colina respirasse vida
própria.
Conta-se que Jonas Rocha — ninguém sabia donde viera — subiu
a colina num inverno em que a neve caía mais branca do que pão de missa. Trouxe
consigo pouca coisa: uma espingarda, um casaco gasto e um olhar de homem que já
vira demasiado. Mas trouxe também algo que ninguém viu logo: o peso de uma
promessa feita a um lobo ferido.
O Lobo Velho, diziam, não era apenas animal. Era espírito
guardião. Quem se perdia na noite encontrava-o às vezes, a caminhar entre as
sombras, olhos a brilhar como carvões acesos. E quem o via saía ileso, desde
que trouxesse o coração limpo.
E assim se mantiveram, homem e lobo, guardando os moinhos,
afastando ladrões que tentavam roubar o trigo, ajudando viajantes perdidos, e
enfrentando tempestades que faziam as pás dos moinhos rodarem como gigantes
enlouquecidos.
Mas um dia chegaram homens maus à colina. Gente que não
respeitava nada nem ninguém. Reza a lenda que foi nessa noite que o Lobo Velho
caiu, defendendo o seu companheiro como se defendesse a própria terra.
Depois disso, o homem ficou sozinho. Cuidou do túmulo do seu
amigo junto ao moinho mais antigo, aquele que hoje só tem a base em pedra. E
quando terminou a sua vigília, desceu a colina e nunca mais foi visto.
Mas a lenda não acaba aí.
Dizem que, em certas noites de vento forte, quando as
nuvens cobrem a lua, ainda se ouve o rodar das pás dos moinhos antigos, mesmo
que já nada haja para rodar.
Alguns afirmam ter visto uma sombra grande passar entre as
árvores. Outros dizem ter ouvido um uivo profundo, que não é de cão nem de lobo
moderno. Um uivo antigo, cheio de saudade.
Os habitantes de Ourém chamam-lhe hoje:
A Lenda do Guardião dos Moinhos.
E todos sabem que a colina, embora silenciosa, nunca está
verdadeiramente sozinha.
segunda-feira, dezembro 08, 2025
A Criança e o Grilo
Perto da sua pequena toca de terra,
um grilo cantava baixinho, escondido entre as folhas.
Era o seu costume, cantar para sentir que o mundo existia com ele.
Uma criança vinha a passar.
Trazia uma pedra na mão, não por maldade,
mas porque as crianças às vezes carregam coisas
sem pensar muito porquê.
De repente, ouviu o canto.
Chegou-se mais perto, pé ante pé,
até descobrir o grilo, frágil e brilhante como um pedacinho de música.
O grilo olhou para ela.
E naquele olhar minúsculo havia uma doçura antiga,
uma confiança de quem não sabe que o mundo pode ser cruel.
Era um olhar que parecia dizer:
“Eu só sou. Nada mais.”
A criança levantou a mão com a pedra…
Mas ficou parada.
Algo no peito apertou como um nó,
uma coisa estranha entre o querer e o entender.
Ela percebeu, de repente,
que podia destruir uma coisa pequena e bela
sem razão nenhuma.
E essa ideia ficou tão pesada
que os seus dedos desceram devagar.
Largou a pedra.
Não por pena, mas porque aprendeu alguma coisa nova
bem ali, naquele instante silencioso.
Com cuidado, afastou-se para não assustar o grilo,
como quem não quer rasgar um segredo.
O canto voltou, suave,
e por um breve momento
pareceu que o mundo sorria para ela,
orgulhoso da escolha que fizera.
Sermão aos Ungidos do Estado
Ó excelentíssimos ressuscitados por milagre elétrico,
vós que saís do hospital a chiar gratidão
como papagaios em discurso oficial,
claro que agradeceis!
Quem não agradeceria ao privilégio
de ter a fila acordada de madrugada
só para vos abrir caminho?
Enquanto isso eu, reles cidadão sem pedigree,
conto as horas como quem conta migalhas:
a minha vez vem sempre depois
do fim do mundo.
Que prodígio é esse, senhores,
que faz da saúde um cabaré de convidados
onde só entra quem tem cartão dourado?
O meu corpo não vos serve de metáfora?
Pois aqui estou: carne e osso,
mas sem direito ao vosso milagre de primeira classe.
Que se rasgue o pano deste teatro farsante!
Ao povo deixam o aplauso e a dor,
aos políticos, o camarim climatizado.



