terça-feira, março 24, 2020

Um papel estranho

Os dias foram passando até que, numa manhã soalheira, uma carta chegou, uma carta dirigida à Cietezinha com o logo da APR.
«A Crónica Feminina agradece a sua disponibilidade para a participação nas suas fotonovelas e solicita que se apresente no salão da banda em Vila Nova de Ourém na tarde da próxima quarta-feira pelas 14 horas».
O coração da Ciete ficou em alta aceleração e engendrou logo um plano para faltar às aulas e comparecer à entrevista.
Chegada à banda, estranhou ver uma fila enorme de rapazes e raparigas de Ourém todos aparentemente com a mesma finalidade. E aquilo que lhe parecera uma tarde de gozo converteu-se numa monumental seca. Havia uns dez à sua frente e notou que cada um demorava pelo menos uns vinte minutos na entrevista. Alguns saiam com um papel nas mãos e entretinham-se a lê-lo enquanto se afastavam.
A certa altura viu passar o seu colega Estorietas também com uns papéis na mão e resolveu perguntar-lhe o que estava ali a fazer.
- Olha, vim a um casting para uma fotonovela de aventuras. O anúncio apareceu no Mundo de Aventuras. Agora, levo aqui um argumento para ler e tentar deixar-me fotografar de acordo com ele. Volto cá amanhã. É giro que também entra aqui uma menina para contracenar comigo…
Contracenar com o Estorietas…
A ideia até não lhe desagradava de todo, mas sempre podiam escolher um galã mais jeitoso. Aquele era muito sisudo, tristonho e olhava-a de um modo estranho.
Daí a pouco viu sair a Mari’mília e ficou intrigada.
- Então também vieste a este casting?
- É verdade, respondi a um anúncio da Crónica. Sempre podia ganhar uns dinheiritos.
- E qual vai ser o teu papel?
Ela sorriu tristemente e deixou que uma lágrima furtiva lhe aparecesse nos olhos.
- Nenhum. Fui excluída. Queria ser a noiva do galã, interagir com o Estorietas ou outro dos rapazes, mas não gostaram de mim…
E foi-se. Cada vez mais curiosa, esperou a sua vez e, algum tempo depois, estava em frente de três jurados que lhe entregaram um papel para as mãos.
- Pegue nesse balde e nessa esfregona e caminhe até àquela janela…
Ela obedeceu.
- Agora, olhe para o exterior e ponha um ar sonhador, um ar romântico.
A Cietezinha pôs o melhor ar que podia pôr de acordo com as instruções e as pessoas pareceram ficar satisfeitas. Pediram-lhe os elementos de identificação e que regressasse na tarde do dia seguinte pelas 15 horas.
- Agradecemos que leia este argumento. É o caso de uma menina que é serviçal na casa de um casal brasonado e o tratamento a que é sujeita não é o melhor. Eles têm um filho simpático, e ela vive na eterna nostalgia de conseguir chegar ao maravilhoso mundo dos ricos. Começa a olhar para o rapaz como uma possibilidade de abandonar o seu mundo de trabalho, mas ele mete-se numa aventura terrível e tem de refugiar-se numa gruta para escapar à perseguição de uma rapariga meio selvagem. Os pais usam essa menina, a serviçal, para lhe fazer chegar mantimentos e os breves contactos de um momento para o outro transformam-se numa grande paixão.
- Mas… mas… o que é que eu tenho de fazer?
- Ainda não sabemos, estamos a avaliar o perfil das candidatas. Segundo nos disse, vive num palácio na vila medieval, por isso, tem experiência destes ambientes mais sofisticados…
Ela não estava muito convencida. Que papel tão estranho o que lhe poderia caber… rapariga semi-selvagem, serviçal e qualquer delas a perseguir a personagem masculina. E se esta fosse o Estorietas? Que horror… tirar fotografias ao lado daquele gato esfolado que parecia estar sempre com fome.
E a verdade é que, nessa noite, permaneceu acordada pelo menos até às duas da manhã.

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