Uma das técnicas do Dr. Laranjeira para prestarmos aos livros de leitura obrigatória maior atenção, era fazer proceder a uma leitura dividida entre os diferentes alunos, por vezes intervalada por comentários para melhor interpretação ou para introduzir conceitos da gramática.
Foi assim que fizemos quase um teatro a ler o «Frei Luís de Sousa» que culminava naquele: «Quem és tu, romeiro» e na resposta com o dedo a apontar: «Aquele…».
Mas, se a leitura da obra de Garrett decorreu excecionalmente bem, até porque convidava a usar um certo estilo teatral, ao passarmos por Júlio Dinis, as coisas não foram tão fáceis.
Estávamos a tratar a obra «A Morgadinha dos Canaviais». A aula já ia um pouco longa e o professor quis fazer-nos ler algumas passagens.
- Começa a menina Borda d’Água.
E a Lena não se fez rogada. Com voz firme, pausada, bem colocada iniciou a leitura da passagem atribuída.
- «O ti' Zé Pereira era homem dos seus quarenta e tantos anos; tinha no rosto, principalmente no nariz, vestígios evidentes das suas simpatias pela divindade celebrada nos antigos ditirambos. Esposo da Sra. Catarina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perene sabatina com a sua cara-metade, sujeitando lhe todas as suas ações, mas salvando sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no ofício de hortelão, e, aos domingos e dias de festa, à força de rufos e pancadaria na retesada pele do seu companheiro inseparável — o zabumba. Era aos cuidados e vigilância deste par conjugal que o recoveiro Cancela confiava o seu mais precioso tesouro, a pequena Ermelinda, uma mimosa criança, que lhe ficara à sua viuvez, tão cheia de saudades, e a quem ele mais queria do que à menina dos olhos.
«Ermelinda era afilhada da família Zé Pereira, e a mesma a quem ouvimos referir-se Ângelo no fim da carta.»
O Dr. Laranjeira interrompeu a leitura da Lena e disse:
- Estivemos a caraterizar a figura do ti’ Zé Pereira e a submissão conjugal a que ele se sujeitava. Mas há esta passagem em que se fala numa divindade celebrada em antigos ditirambos. Quem sabe o que é isto?
Ouviu-se logo a vozinha da sabichona:
- É uma referência ao Deus do vinho, Baco…
- Mas aqui a referência é a Grécia. Daí ser uma louvação a Dionísio. Prossiga agora o Luís Manuel.
- O Zé Pereira é parvo – dizia o Amândio ao meu lado.
O certo é que eu estava a achar piada à descrição. Parecia que via a figura do homem tisnado pela bebida. E iniciei a leitura.
- «Zé Pereira estava, como dissemos, só na cozinha, quando Augusto ali chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e vazio, falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e rouca da sua escala de barítono, até o mais agudo e desafinado falsete. A língua pegava-se lhe ao céu da boca, dificultando-lhe suspeitosamente a articulação de algumas sílabas; era evidente que se apossara do hortelão o espírito familiar, o qual, neste caso, era um verdadeiro espírito, na aceção química do termo.»
Naquele momento, começou a invadir-me irreprimível vontade de rir. Mas ainda continuei:
- «Zé Pereira era um homem baixo, já grisalho, suficientemente nutrido, de olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o entusiasmo, o rapto artístico se apoderava dele; usava de umas suíças que pareciam tentar sumir-se-lhe pela boca dentro; tinha longos braços, acomodados às dificuldades e evoluções da sua arte, e pernas que, do joelho para baixo, lhe divergiam em ângulo de mais de trinta gra… gra… gra… us.»
Não aguentei mais. Um homem baixo, nutrido, vesgo, com umas suíças até à boca era demais. Ainda tentei, mas as palavras não saiam. Ri, ri, ri que nem um perdido.
Os outros alunos começaram todos a rir também e eu que não parava. O Dr. Laranjeira teve de interromper a aula e fazer uma pausa.
Quando tudo acalmou, virou-se para mim e disse:
- Não sei onde estava a piada…
- Desculpe, professor, não aguentei, comecei a ver a figura do homem à minha frente…
- Espero que não se repita, se não terei de falar com o diretor…
A verdade é que nunca mais esqueci esta aula de Português. E resta dizer que o relacionamento com este professor foi, a partir daí, sempre excelente.
Foi assim que fizemos quase um teatro a ler o «Frei Luís de Sousa» que culminava naquele: «Quem és tu, romeiro» e na resposta com o dedo a apontar: «Aquele…».
Mas, se a leitura da obra de Garrett decorreu excecionalmente bem, até porque convidava a usar um certo estilo teatral, ao passarmos por Júlio Dinis, as coisas não foram tão fáceis.
Estávamos a tratar a obra «A Morgadinha dos Canaviais». A aula já ia um pouco longa e o professor quis fazer-nos ler algumas passagens.
- Começa a menina Borda d’Água.
E a Lena não se fez rogada. Com voz firme, pausada, bem colocada iniciou a leitura da passagem atribuída.
- «O ti' Zé Pereira era homem dos seus quarenta e tantos anos; tinha no rosto, principalmente no nariz, vestígios evidentes das suas simpatias pela divindade celebrada nos antigos ditirambos. Esposo da Sra. Catarina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perene sabatina com a sua cara-metade, sujeitando lhe todas as suas ações, mas salvando sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no ofício de hortelão, e, aos domingos e dias de festa, à força de rufos e pancadaria na retesada pele do seu companheiro inseparável — o zabumba. Era aos cuidados e vigilância deste par conjugal que o recoveiro Cancela confiava o seu mais precioso tesouro, a pequena Ermelinda, uma mimosa criança, que lhe ficara à sua viuvez, tão cheia de saudades, e a quem ele mais queria do que à menina dos olhos.
«Ermelinda era afilhada da família Zé Pereira, e a mesma a quem ouvimos referir-se Ângelo no fim da carta.»
O Dr. Laranjeira interrompeu a leitura da Lena e disse:
- Estivemos a caraterizar a figura do ti’ Zé Pereira e a submissão conjugal a que ele se sujeitava. Mas há esta passagem em que se fala numa divindade celebrada em antigos ditirambos. Quem sabe o que é isto?
Ouviu-se logo a vozinha da sabichona:
- É uma referência ao Deus do vinho, Baco…
- Mas aqui a referência é a Grécia. Daí ser uma louvação a Dionísio. Prossiga agora o Luís Manuel.
- O Zé Pereira é parvo – dizia o Amândio ao meu lado.
O certo é que eu estava a achar piada à descrição. Parecia que via a figura do homem tisnado pela bebida. E iniciei a leitura.
- «Zé Pereira estava, como dissemos, só na cozinha, quando Augusto ali chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e vazio, falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e rouca da sua escala de barítono, até o mais agudo e desafinado falsete. A língua pegava-se lhe ao céu da boca, dificultando-lhe suspeitosamente a articulação de algumas sílabas; era evidente que se apossara do hortelão o espírito familiar, o qual, neste caso, era um verdadeiro espírito, na aceção química do termo.»
Naquele momento, começou a invadir-me irreprimível vontade de rir. Mas ainda continuei:
- «Zé Pereira era um homem baixo, já grisalho, suficientemente nutrido, de olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o entusiasmo, o rapto artístico se apoderava dele; usava de umas suíças que pareciam tentar sumir-se-lhe pela boca dentro; tinha longos braços, acomodados às dificuldades e evoluções da sua arte, e pernas que, do joelho para baixo, lhe divergiam em ângulo de mais de trinta gra… gra… gra… us.»
Não aguentei mais. Um homem baixo, nutrido, vesgo, com umas suíças até à boca era demais. Ainda tentei, mas as palavras não saiam. Ri, ri, ri que nem um perdido.
Os outros alunos começaram todos a rir também e eu que não parava. O Dr. Laranjeira teve de interromper a aula e fazer uma pausa.
Quando tudo acalmou, virou-se para mim e disse:
- Não sei onde estava a piada…
- Desculpe, professor, não aguentei, comecei a ver a figura do homem à minha frente…
- Espero que não se repita, se não terei de falar com o diretor…
A verdade é que nunca mais esqueci esta aula de Português. E resta dizer que o relacionamento com este professor foi, a partir daí, sempre excelente.
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