segunda-feira, setembro 02, 2019

O atentado

«Chamem Inês, digam-lhe para vir imediatamente.» A voz de Lenine é fraca, mas o tom é firme. Está no seu quarto no Kremlin, as duas balas que o atingiram causaram danos na garganta e nos pulmões; os médicos acabam de lhe dizer que se trata de uma ferida feia, poucos milímetros salvaram-lhe a vida. Agora vai precisar de muitos cuidados e de um longo período de convalescença. Para lhe permitir um pouco de repouso, e por precaução, ninguém pode aproximar-se.

Lenine está cansado, assustado, algumas horas antes a morte passou por ele, vê-se obrigado a obedecer aos médicos e a permanecer naquele quarto longe de tudo e de todos, ao menos por algumas semanas. Fá-lo-á, mas quer que Inês esteja perto dele.

O atentado aconteceu no final de uma assembleia de trabalhadores da Mickelson Plant. Marija, a irmã que vivia com ele no apartamento do Kremlin atribuído à família Ulyanov, desaconselhara-o a participar naquele encontro. O chefe da Ceka de São Petersburgo tinha sido morto e Marija não achava prudente que o irmão se deslocasse a um lugar público sem escolta. Lenine não lhe deu ouvidos. Desde que regressara a Moscovo, depois de assinar a paz com os alemães, queria encontrar-se o mais frequentemente possível com os trabalhadores militantes para limpar, através daquelas relações diretas, uma imagem negativa e a desconfiança que ainda sentia viva em parte do povo, já que o chefe dos bolcheviques regressara num comboio do inimigo, assinara a paz com este e, depois da Revolução, para fugir ao processo escapara para a Finlândia.

O pressentimento de Marija revelou-se acertado: quando, depois de falar com os trabalhadores, se dirigia ao automóvel, foi atingido por duas balas disparados por uma jovem de nome Fanny Kaplan. Caiu, com as mãos na garganta, a camisa suja de sangue. Quem, até ali, o ouviu, aplaudiu, e seguiu com o olhar os seus passos, temeu pela sua vida. Mas Vladimir Ilyich ergueu-se imediatamente e, mantendo as mãos na ferida, entrou no carro e ainda conseguiu fazer sinal para arrancar. Foi o motorista, Stepan Gil, quem decidiu a direção: diretamente para o Kremlin. O hospital não era um lugar seguro, eram muitos — pensou o fiel Stepan — os que desejavam a morte de Lenine, qualquer um poderia aproveitar facilmente. Chegados ao edifício vermelho, Lenine conseguiu subir as escadas, chegar ao quarto e ao seu leito. Aí Marija e Nadja fizeram o que puderam; foram elas a prestar-lhe os primeiros socorros porque não confiavam em ninguém. Os cirurgiões chegaram apenas na manhã seguinte.

Inês chega rapidamente. Já sabia do atentado, mas conseguiu conter o impulso para ir logo ao seu encontro. Conhecia bem as regras que disciplinavam a vida do chefe do Estado soviético e sabia que era difícil, num momento daqueles, aproximar-se da sua cabeceira, até mesmo ela que ainda mantinha uma relação de intimidade com ele. Agora, apressa o passo, as poucas centenas de metros que deve percorrer são mais rápidas do que o habitual. Acompanhada pela filha Varvara, chega ao apartamento de Lenine e entra no seu quarto. Presentemente, aquela divisão com o resto do apartamento foi transferida, na íntegra, do edifício do senado do Kremlin para uma pequena dacia a trinta quilómetros de Moscovo, nos arredores da localidade de Gorki Leninskie. Não é grande e está modestamente mobilada. O mesmo apartamento inclui os quartos de Nadja e de Munja, depois há uma salinha com um piano e uma cozinha sem adornos com chávenas lascadas, panelas remendadas e o mínimo necessário. O quarto de Vladimir Ilyich é quase todo ocupado pela cama de ferro forjado, com o cobertor aos quadrados, uma cómoda e uma poltrona. Três pessoas naquela divisão serão demais, pensa. Talvez por isso Marija e os médicos saem rapidamente deixando espaço para Nadja, Inês e Varvara.

Nos primeiros minutos do encontro, Vladimir Ilyich e Inês estão nervosos e acanhados, não conseguem falar muito: a emoção, o medo e o perigo da morte libertaram os seus sentimentos mais profundos, mas as palavras — as únicas possíveis perante a presença de Nadja e de Varvara — só podem ser de cortesia afetuosa. Nadja percebe o embaraço, sabe o que desejaria Vladimir Ilyich e está habituada a secundar os seus desejos, mesmo quando a magoam, dizendo a Varvara que quer mostrar-lhe algumas fotografias de família, convidando-a a sair do quarto.

Vladimir Ilyich e Inês ficam a sós, as mãos que se apertaram num cumprimento afetuoso procuram-se de novo para um contacto mais intenso. Os sentimentos, até ali postos de parte em nome de «questões mais importantes», no silêncio daquele pequeno e austero quarto do Kremlin voltam a encontrar os seus valores. A partir daquele momento, renasce uma intimidade que estava suspensa e inicia-se um novo capítulo da sua história.

Apenas a algumas centenas de metros daquele apartamento, Fanny Kaplan, a atacante, a jovem que disparou dois tiros de pistola, é interrogada pela Ceka. A polícia secreta sabe que é uma anarca e que durante o regime dos czares passou alguns anos nos campos de trabalho. Agora é uma socialista revolucionária, mas — como afirma — agiu na ignorância dos seus companheiros, isolada e por vontade própria. Fanny Kaplan considera Lenine um traidor. «Quanto mais tempo viver», diz, «mais se afasta a ideia do socialismo».

Enquanto Inês e Lenine reatam a sua relação, o comandante do Kremlin, Pavel Malkov, continua a interrogá-la. Depois, sem investigações ulteriores, interrogatórios ou processos, aniquila--a. Para não dar azo a rumores entre os habitantes do edifício, na garagem, onde decorre o interrogatório, ligou o motor de um automóvel, e depois fez desaparecer o corpo. Não se saberá mais nada dela: quem era na realidade, para além das suas afirmações, a jovem que queria assassinar Lenine? Será que não haveria verdadeiramente instigadores? Teria agido sozinha? Ou seria uma emissária dos socialistas-revolucionários? O atentado terá sido organizado por homens insuspeitos e organizações próximas do chefe do Kremlin?

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