quinta-feira, junho 17, 2004

Concentração capitalista em Fátima
Fátima foi durante muito tempo um fenómeno glocal.
A sua mensagem é o testemunho da sua característica de global. Ela estendeu-se por todo o mundo, ela afectou todo o tipo de pessoas. Eu próprio fui influenciado, pois cercou-me desde tenra idade. E, mesmo hoje, quando entro naquele santuário, sinto como seria bom para a minha consciência ter algo como o que surgiu aos pastorinhos e lhes retirou todas as dúvidas sobre o sentido da sua efémera existência. E como gostaria de ali me encontrar com Cristo que todos afirmam ter sido o primeiro comunista consciente. Ele que recomendava a igualdade e a partilha, o que se celebra na missa a que o praticante assiste regularmente com o objectivo de procurar o reino do céu, esquecendo, por vezes, que ele só faz sentido se primeiro for construído na terra.
Mas se Fátima era global na perspectiva da sua mensagem, era muito específica na sua prática local. As famílias habituaram-se a produzir pequenos serviços de habitação e a disponibilizá-los aos peregrinos. Muitos recebiam o peregrino como se de um familiar se tratasse. Pouco a pouco foram aproximando das suas casas objectos de culto que vendiam ao preço que melhor podiam, conferindo à religião um carácter por um lado amistoso, por outro, um tanto mesquinho.
Tinha-se assim uma pequena produção de serviços que era complementada pela restauração. Com o tempo tudo foi mudando, lá e à sua volta.
De Fátima ainda recordo as oliveiras e azinheiras que enchiam aqueles sítios onde hoje se vêm caixotes sobre caixotes para pessoas receber, numa mescla desordenada que revela bem o caos urbano que ali se instalou. Por todo o lado surgem atropelos ao que pode ser considerado o desfrutar decente de uma povoação, apesar de ainda restarem pequenas pérolas de que é exemplo a Via Sacra para os Valinhos.
E é neste meio que surge há um ou dois anos a notícia: "o número de visitantes está a diminuir". Mas, coisa estranha, uma notícia veiculada pelo Castelo indica-nos que o número de camas aumenta. Estarão os deuses loucos? Em termos economicistas simplistas dir-se-ia: "a procura diminui, mas a oferta aumenta". Que comportamento mais estranho da parte dos agentes económicos!
Simultâneamente, a superestrutura jurídico política, expressa no poder autárquico, adapta-se e eis dois elementos novos curiosos:
- leis que estavam na gaveta e não eram aplicadas há anos a deverem ser respeitadas pelo comércio e pela exploração de quartos
- normas veiculadas pela integração europeia com novas exigências relativas à produção de serviços de habitação, restauração e comércio.
E a consciência que se tem disto é a seguinte: os mais fracos, aqueles que encontram aqui um meio para subsistir e não para investir, não vão aguentar. Vão ser proletarizados. Vai-lhes acontecer o mesmo que ao pequeno comércio quando sofreu o impacto das grandes superfícies. Vai repetir-se o que já aconteceu à pequena produção independente e que foi descrito no capítulo dedicado à acumulação primitiva que pode ser lido em O Capital.
Resumindo, o que se passa hoje em Fátima já foi descrito por Marx há uns cento e cinquenta anos. Trata-se do processo de concentração capitalista que agora surge no contexto mais largo da construção europeia e com todos os seus reflexos ao nível do político e do ideológico que ali estão para o apoiar.

Sem comentários:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...