sábado, maio 29, 2004

A mão enorme


Desloco-me do Largo de Castela na direcção da Câmara no meu carrinho de madeira novinho em folha. Trata-se de um pau tipo cabo de vassoura atravessado ao meio por um pequeno bocado de madeira e terminado numa extremidade por uma roda com uns vinte centímetros de diâmetro que funciona em torno de um eixo que atravessa o pau. Frente à prisão da GNR saúdo o simpático prisioneiro que teve a amabilidade de me oferecer aquilo que era produto da sua tentativa de passar o tempo o mais depressa possível. Como é possível pessoa tão boa estar ali dentro, atrás daquelas grades?
Chego junto à Câmara e sigo por trás, mais à frente viro à esquerda e continuo. Começo a ouvir o som que vem da escola do Roque daqueles que decoram tabuada:

um vezes um, um
um vezes dois, dois
um vezes três, três…

Fujo dali. Ena! Que coisa difícil.
Frente à porta principal da Câmara, viro na direcção da escada para o jardim que desço. Faço duas voltas em torno dele a uma velocidade razoável experimentando a suspensão e os travões. Tudo era magnífico, não fosse um carrinho novo em folha. Saio do jardim pelo lado direito de quem sobe e continuo a subir.
Perto da tesouraria algo chama a minha atenção no chão. Beatas de cigarro, centenas delas. Das mais diversas. Com filtro e sem filtro, grandes e pequenas. Naturalmente, isso dá-me uma excelente ideia. E, no dia seguinte, ali volto já sem o carrinho e com uma caixa de papelão na qual guardo cuidadosamente os melhores exemplares que transporto para casa.
Já em casa, na cozinha, desfaço cada um dos elementos recolhidos, liberto-me do papel e dos filtros e guardo os restos de tabaco. Tinha um móvel com várias prateleiras numa das quais uma abertura maior permitia que dois cântaros de barro guardassem e purificassem a água que bebíamos. Outra estava coberta com um bocadinho de pano e foi essa que escolhi para proteger o resultado do meu trabalho de olhares indiscretos. Esta operação foi repetida durante vários dias.

***

Estávamos todos a jantar na casa do largo de Castela. No final do delicioso repasto, o meu pai puxa de um Português Suave e goza aquele momento de repouso. Eu senti que podia mostrar-me ao seu nível. Fui buscar uma folha de papel, fui buscar bocadinhos de tabaco. Ele contemplava não sei se incrédulo, não sei se a observar até onde ia o meu descaramento.
Acendo o cigarro entretanto feito, tiro a primeira fumaça e envio-a para o ar sem engolir. Fico a contemplar aquela magnífica espiral enquanto aprecio o odor. De repente, no tecto aparece como que uma mão que desce na minha direcção. Não, meus amigos, não era a mão invisível do Adam Smith que aparecia ali para regular o mercado. Aquela era bem torneada, definida, enorme no sentido do comprimento e, se pretendia regular alguma coisa, era o meu comportamento. Tal mão parecia calejada de trabalho no campo, de anos de condução e se calhar de mecânica de automóveis. Era esquelética, mas enorme e a sua velocidade incrível. Sentado na cadeira, tento recuar, aterrorizado, mas a cadeira não deixava, fixava-se-me nas costas. Até que aquilo cai sobre mim com monumental estardalhaço.
Durante mais de uma dezena de anos não pequei num cigarro, até que distinto oureense, em Leiria, numa esplanada da praça Rodrigues Lobo me exorcizou de tão funesto receio.

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