A alma dos Beatles
Ele vem aí para o Rock in Rio. Mas acreditem que não estarei lá para o ver e o ouvir, àquele que ontem cantava uma espécie de deixa lá.
Distintos oureenses recordam com certeza a minha fixação nas canções dos Beatles, em tudo semelhante à daquela senhora no défice, assim estranharão uma entrada como a anterior.
Tenho as minhas razões.
Reparem na podução de cada um dos elementos do grupo após a separação.
McCartney elaborou dezenas de canções mas, com excepção de Mull of Kyntire ou Let me roll it, nenhuma terá atingido o estatuto do que acontecia com as do grupo. Mesmo na companhia dos Wings, o que aqueles concertos parecem é uma sessão de gritos, vozes esganiçadas, saltos, olhos a abrir e a fechar, caretas e cabeça a dar para a esquerda e para a direita.
Lennon não foi tão produtivo, mas deixou-nos o imortal Imagine e o fabuloso Jealous Guy a que acabámos por dar mais atenção a partir de uma homenagem proporcionada pelos Roxy Music.
Ringo, com o seu ar displicente, rodeou-se de bons músicos, procurou duas ou três canções de sucesso e para aí anda a recordar velhos tempos.
Põe-se então a questão: por que eram eles criadores tão dotados em grupo e isoladamente pouco fizeram que se possa comparar com aquele fabuloso ano de 1964 e alguns dos que se seguiram até à separação?
Harrison deu uma resposta: com esta (a separação), a alma dos Beatles ter-se-ia transferido para os Monty Python.
Não sei como é que ele se convenceu deste disparate, a verdade é que não estou de maneira nenhuma de acordo.
Voltemos às canções dos Beatles. Recordemos Something. Não terá algo de arrepiante? Haverá solos mais bonitos do que os de While my Guitar...?
Por que é que as canções tinham um ritmo, uma força que não é comum às dos elementos isolados?
Atentem na autoria das duas canções mencionadas. Não é de Lennon-McCartney como era vulgar surgir, mas de Harrison.
Então atrevo-me a concluir, eles permitiam-lhe que trabalhasse nos arranjos, eles serviam-se da sua capacidade instrumental, eles aproveitavam a sua tendência para a inovação a nível de sonoridade, mas, em termos de criação, abafavam-no e sujeitaram-no ao seu despotismo esclarecido, suportado pela feitura dos primeiros êxitos. Por alguma razão, é já numa fase de decadência, que ele consegue contribuir com mais de uma boa canção para um excelente álbum: Abbey Road.
Efectivamente, o génio de Harrison só veio a revelar-se posteriormente à separação. Isso aconteceu em múltiplas novas canções que em tudo recordam o som anterior do conjunto, ele é sem dúvida o que mais se aproxima do que o grupo transmitia. Aconteceu, também, com novas versões daquelas com que tinha contribuído para o êxito do grupo nas quais foi acompanhado por um grupo de amigos que cada vez mais me fazem lembrar aqueles com quem anualmente nos reunimos no Poço. Aconteceu, finalmente, no álbum gravado com o filho e editado a título póstumo.
Ouvir os solos fabulosos de Clapton no concerto no Japão insertos naquelas duas canções dá-me um extraordinário prazer. Ouvir a contribuição do George para aquelas outras canções feitas posteriormente pelo grupo de novo reunido com a voz do defunto John a surgir como que das profundezas é sem dúvida excelente. Deliciar-me com uma versão country do While my guitar inserta na Antologia mostra-me que uma grande canção poderá assumir múltiplas formas.
Mas o que mais me comoveu, aquilo que eu andei dias seguidos a ver e ouvir sempre com imenso gosto, sujeitando a família à produção de protestos por tamanha esquizofrenia, foi aquela monumental homenagem a Harrison, documentada no DVD Concert for George, onde o testemunho da amizade a alguém que já partiu foi feita com uma competência extrema e com uma emoção que a todo o momento se transmite ao espectador, demonstrou que pode ser suportado por momentos de alegria que em nada ofendem a memória dos que já partiram e me levou a conhecer mais uma contribuição do património de Harrison que desconhecia e que me surgiu pela voz de Clapton: Beware of darkness.
Então, voltemos aos nossos amigos já desaparecidos. O que se diz deles, o que se conta sobre as suas acções, as pequenas brincadeiras recordadas são a demonstração que eles estão junto de nós, pelo menos dos que os recordam sempre: ao Zé Manel, ao Jó Rodrigues, ao Vitor Guerra, ao Luís Nuno, ao Félix.Ao mesmo tempo constatamos que estão, cada vez mais, em melhor companhia: Lennon, Adriano, Zeca, Harrison...
É óbvio que nos é impossível fazer uma homenagem como a prestada a Harrison aos nossos amigos de Ourém que já partiram, mas ver e ouvir tal documento é com certeza a fonte de um bom conjunto de recordações acerca deles e, por isso, naturalmente, recomendável.
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