quarta-feira, fevereiro 01, 2006

O dilema do prisioneiro

Havia inúmeros arames espalhados pelo Largo de Castela. Teriam talvez uns 20cm, eram relativamente novos. Eu e o Mina Guta vimos aquilo e tivemos de imediato uma luminosa ideia.
- Vamos simular boomerangs...
Agarrámos alguns arames e demos-lhes um ligeiro torcegão ao meio. Depois, era só pegar numa ponta e enviar o mais alto possível. De acordo com a nossa destreza, o arame cairia ou não praticamente no mesmo ponto de onde tinha sido enviado.
A verdade é que eles subiam com uma tal força, rodando sobre si mesmo que o espectáculo tinha alguma graça. Eu tinha o braço mais longo, o Mina Guta tinha mais fibra de maneira que as alturas a que chegávamos conseguiam equilibrar-se.
Mas eis que algo corre mal...
Na tentativa de enviar o mais alto possível, um arame não subiu perpendicularmente, mas com uma certa inclinação. O Largo de Castela era atravessado por fios de electricidade entre a casa da Aurorita e a do Souto. O arame foi por ali fora e encontrou a toda a velocidade os fios. Enrolou-se com eles, fê-los bater uns nos outros, provocou curto-circuitos. O espectáculo tornou-se deslumbrante com os fios em estranho bailado e faíscas a jorrarem por todo o lado. Depois, tudo cessou, os fios quebraram-se e as pontas caíram no chão ficando suspensos a partir dos pontos de apoio.
- Estamos tramados...
- O melhor é irmos para casa...
Algum tempo depois a brigada de avarias veio e resolveu tudo, mas eu, nessa noite, não estava muito tranquilo e tive dificuldade em adormecer.
...
Alguém bateu à porta.
A minha mãe foi abrir. Era o polícia Cunha.
- O Luís está?
- Está sim...
- Era para fazer o favor de me acompanhar à esquadra...
Comecei a não ficar muito tranquilo. Vesti-me e saí de casa para o acompanhar. Na rua, já estava o Mina Guta com outro polícia. A caminhada até à esquadra foi marcante. As pessoas a verem aqueles dois gabirus e a comentar o que teriam feito...
Passámos frente ao Avenida, depois frente aos correios e, pouco depois, estávamos na esquadra. Fizeram-nos sentar à frente de uma secretária e um deles afirmou:
- Vocês ontem andaram a brincar com arames lá no Largo. Os fios estoiraram. Alguém vos viu e nos disse que podem ter sido os responsáveis. É verdade?.
- Não, senhor guarda – respondi.
O Mina Guta confirmou...
Ali estivémos um bom bocado até o polícia ver que nada conseguia tirar de nós, que não tinha ninguém a quem imputar o crime e a quem fazer pagar as despesas.
Eles retiraram-se e estiveram em conferência um bocado. Eu e o Mina Guta já estávamos combinados: negar até ao fim.
Mas eles separaram-nos e não permitiram a continuação da nossa comunicação. Fui com o polícia Cunha para um gabinete e o Mina Guta foi com o outro. Mandou-me sentar e começou a andar à minha frente dando pequenos toques na perna com o cacetete...
- Luís, és muito bom rapaz, mas temos de tirar isto a limpo. Foram vocês ou não?
- Não, senhor Cunha...
- Tenho uma proposta para te fazer. Se tu confessares e o teu amigo não o fizer, vais em liberdade e ele passa três semanas no calabouço para aprender a não fazer diabruras e a assumi-las. Mas se tu não confessares e ele o fizer, é ele quem vai em liberdade e tu quem cá passa as três semanas... Confessas?
- Não, senhor polícia, não fomos nós e tenho a certeza que o Augusto vai dizer o mesmo...
- Mas olha que com os testemunhos que temos, se nenhum confessar, arriscam-se a cá passar os dois duas semanas...
- E se confessarmos ambos?...
- Só passarão uma semana que é o castigo por serem tão descuidados... e terão sempre que pagar as despesas...
Estava entalado. Que havia de fazer? Colaborar? Negar até ao fim?... a vida traz-nos cada dilema. E qual seria a atitude do Mina Guta? Se eu confessasse e ele não, ficava lá três semanas...
Pensei, pensei, pensei...
Comecei a sentir suores frios...
...
Acordei. Estava encharcado em suor.
Mas estava na casa do Largo de Castela. Na rádio, ouvia estranha notícia: “Von Neumman acaba de anunciar uma nova teoria: a teoria dos jogos...”.
Assomei à janela. O Dodge do meu pai ainda estava à porta. Os fios já estavam reparados, parecia que tudo corria bem, não havia sinal de polícia.
O maquitan repousava frente à casa da Aurorita. Do outro lado, o senhor Zé Maria, com uma pá, introduzia uma massa branca dentro do forno. O Guerra passava com pedaços de leitão bem embalados. Lá em baixo, a camioneta do Isidro era cheia com jaulas para levar as galinhas ao mercado.
Pela rua de Castela, vinham a Lelita e a Rosalina em alegre cavaqueira. E lá no largo, o Boas Falas levava a mão ao chapéu e cumprimentava:
- Boas falas...
O Largo de Castela estava cheio de vida. Como era bom acordar naquele ambiente. Hoje já não consigo acordar assim, perdi esse dom, converti-me numa espécie de prisioneiro do tempo...

2 comentários:

Sérgio Ribeiro disse...

Boa, Luís!
Que bem contada história!
Temos de fazer alguma coisa (de belo e louco como a banda a tocar a marcha Almadanim...) que guarde de forma mais peréne as histórias-estórias da gente da nossa terra.
Tenho cá uns projectos...

Lobo Sentado disse...

Então, pensa bem e projecta melhor, meu caro Sérgio, que os meus projécteis (estórias) vão-se esgotando.
Que giro, este post mereceu comentários de dois ilustres Sérgios...
Muito obrigado!

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