quinta-feira, abril 27, 2006

O código Picasso

Na lateral direita superior (visão do observador) destaca-se a figura de um homem com os braços levantados, boca aberta e pescoço muito comprido. Essa figura pode simbolizar duas coisas: o homem, que está apavorado, devido aos seus traços torcidos, tenta deter as bombas que são lançadas sobre a cidade. Uma outra hipótese é que essa figura faz analogia a figura principal da obra "Os fuzilamentos" do 03 de maio de 1808 de Goya.


O fato de o quadro de Goya também ser motivado por um ato de brutalidade contra pessoas inocentes reforça essa teoria.

Na lateral direita inferior, pode-se ver a figura de uma mulher que parece sair da escuridão para dentro do cone de luz.

Sua expressão de completo esgotamento, como se carregasse um grande fardo, e seu rosto erguido na direção da luz pode ter uma certa semelhança com as imagens de Jesus Cristo carregando a cruz.

Essa imagem talvez seja uma tentativa de exprimir o sofrimento humano, mas sem simbolizar explicitamente o cristianismo.

No lado direito superior e ao centro, logo ao lado da figura de um homem com os braços levantados, vemos uma figura que parece surgir, suavemente, por debaixo das telhas. Essa figura, com o rosto dominador, e que vem do infinito, olha horrorizada para o cavalo ferido. Repare que ela está boquiaberta, como se não acreditasse no que estivesse vendo.

No centro superior da tela, próximo à cabeça do cavalo, existe um braço, que se parece como uma nuvem. A sua mão disforme segura uma lamparina a óleo, muito comum nas casas de camponeses.
Essa lamparina emana uma luz suave, que talvez represente a luz da consciência

Ao lado da lamparina, sobre a cabeça do cavalo, está uma espécie de lâmpada elétrica. Devido ao seu formato de sol, essa figura pode sugerir o "olho de Deus", que vê tudo vê. Repare ainda que até mesmo essa luz parece "gritar de horror".

Na parte central do quadro, vemos um cavalo em agonia. Repare que ele está caído de joelhos, como se estivesse sentindo as terríveis dores causadas pela lança fincada em seu corpo e por uma enorme ferida ainda aberta.
A cabeça do cavalo está voltada para o touro. Da boca do cavalo parece sair um rugido feroz, um misto de ira e dor. Repare que esse "urro" parece estar direcionado para a figura do touro, ao lado.
O cavalo pode representar a angústia do povo espanhol. No entanto, essa figura é ambígua, pois segundo alguns críticos de arte, o cavalo, devido aos traços rígidos, que beiram o patético, representam o general Franco.
No lado esquerdo da tela encontra-se o touro. Essa é também é uma figura ambígua, pois nele pode estar representada a resistência do povo espanhol. No entanto, o touro, que representa brutalidade, pode simbolizar o general Franco.

Repare que o touro está parado, abanando a cauda, como se, "após um ataque bem-sucedido", recuasse para ver os "estragos feitos no adversário" e se preparasse para o próximo ataque. A presença do touro deve-se também ao fascínio que Picasso sempre teve por touradas, esporte nacional, que aparece freqüentemente em suas obras.
Uma vez questionado sobre a ambigüidade existente entre as figuras do touro e do cavalo Picasso disse: "Este touro é um touro, este cavalo um cavalo (...). É preciso que o público, os espectadores, vejam no cavalo, no touro, símbolos que eles devem interpretar como os compreendem". (extraído da obra Mundo; Homem; Arte em Crise de Mário Pedrosa)
Dentre tantas figuras complexas existentes em "Guernica", a mãe, que carrega uma criança morta nos braços, talvez seja a de mais fácil interpretação.

Nessa imagem percebe-se claramente a dor que sente uma mãe quando perde um filho. Não só essa mãe, ou só as mães da cidade de Guernica, mas sim todas as mães do mundo, ou seja, essa dor é a mesma dor que tiveram as mães americanas e vietnamitas quando perderam seus filhos na guerra do Vietnã.
Janeiro, ao verem seus filhos brutalmente assassinados. É também a dor das mães que viram seus filhos serem covardemente assassinados no atentado do World Trade Center em Nova York.

Voltando a Guernica, o grito da mãe é representado por sua língua pontiaguda, que nos faz lembrar um estilhaço de vidro ou, até mesmo, um punhal. Vale lembrar que "cacos" semelhantes aparecem em outras partes do quadro.
A figura da mãe ainda ajuda a aumentar um pouco a discussão sobre o que pode simbolizar o touro e o cavalo.
Repare que a mãe está quase que envolvida pelo touro e seu grito parece ir praticamente em sua direção. Sob a ótica de que o touro simbolize o povo, a figura da mãe procura a proteção do povo e "grita" para compartilhar a sua dor com ele.

No entanto, sob ótica de que o touro o General Franco, pode-se dizer que a mãe procura fugir, já com seu filho morto, do meio de toda aquela brutalidade, pois ela parece caminhar em direção à porta. No entanto, o touro a impede de concluir seu intento. Essa teoria é reforçada pelo próprio momento histórico: quando os sobreviventes do ataque aéreo tentaram fugir para os arredores da cidade, eles foram alvos das rajadas de metralhadora disparadas pelos caças nazistas. Além disso, a semelhança entre a língua pontiaguda da mãe com a língua, também pontiaguda, do cavalo permite concluir que tanto o cavalo como a mãe "gritam" de forma semelhante, ou seja, ambos são vítimas da brutalidade.


Toda a lateral inferior esquerda do quadro é ocupada por uma figura totalmente mutilada, que pode ser assemelhada uma espécie de guerreiro. Repare que, apesar de ter a cabeça e os braços cortados, o guerreiro está agarrado a uma espada quebrada, simbolizando assim a resistência do povo espanhol. Próxima a sua mão, ainda contraída em torno da espada quebrada, encontra-se uma flor, símbolo da esperança de uma nova era.
A flor, símbolo da esperança, quase que unida à espada, símbolo da resistência, juntas, podem transmitir uma mensagem do tipo: "enquanto houver resistência haverá esperança".


in: Mundo Cultural

2 comentários:

Sérgio Ribeiro disse...

Excelente, estimulante leitura.
Obrigado, Luís. Sempre... como o 25 de Abril.

Anónimo disse...

Que boa interpretação deste célebre quadro, Luís.
Dá gosto aceder ao Ourém.
É um grande contributo para o nosso enriquecimento cultural.
De maneira simples e agradável, quase sem darmos por isso.
écse

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