Visado pela Comissão de Censura
Alguns artigos destinados ao Notícias de Ourém e ao Ourém e seu Concelho tiveram problemas com a censura. Aqui reproduzimos alguns dos que terão contribuído mais para as dificuldades dos que planeavam esses jornais.
O primeiro deles, A verdade da Ciência, é uma descrição de transformações ocorridas no meio universitário em finais dos anos sessenta início de setenta. Estou ainda a ver o Eduardo Graça a levantar-se no meio de uma sala cheia de estudantes atentos e a interpelar o sábio de momento. Recordo a luta imensa do Félix Ribeiro, do Ferro Rodrigues e de outros cujos nomes o esquecimento já levou para a transformação do ensino em Económicas numa altura em que era frequentemente visitada pelas forças da repressão.
A Faca e o Bolo é o modo como mais gosto de analisar a inflação: uma luta entre dois grupos sociais para se apossarem de uma fatia maior de um produto real que só pode pode aumentar pelo trabalho e não pela expressão monetária. Este artigo foi mesmo cortado pela comissão de censura vindo a ser publicado no Notícias de Ourém pouco depois do 25 de Abril.
Também escrevi algo sobre a situação política internacional, onde o socialismo, a ameaça de guerra nuclear e outros temas ofereciam perspectivas de reflexão.Uma das que me impressionou mais foi o exemplo do Chile. Apesar de não acreditar muito no socialismo em liberdade, tinha a secreta esperança… Tudo se veio a desmoronar com o canalha do Pinochet. Agora estou convencido que não podemos enveredar por este tipo de processos sem que exista um grande enriquecimento cultural entre as massas populares: provou-o o Chile, provou-o Portugal onde felizmente o contragolpe não foi tão violento. E depois de tudo aquilo, como me custou, quando estava na tropa e comentava o acontecido com o mancebo Amorim, algum tempo depois um militante trotskista, ouvir da boca dele: o que se passou no Chile foi uma miserável traição…
Termino com um artigo que nem viu a luz do dia em qualquer dos jornais da terra. Já não me lembro porquê. Também já não recordo os fundamentos do artigo embora reveja nele as paredes de Mafra e o magnífico retorno da semana de campo quando estávamos na EPAM e o 25 de Abril se avizinhava. Eu cantava, o Boisano dava o tom, o Sílvio era o político que sabia de tudo, estava também lá o Reis do futuro PS, o grande amigo Albino…
A verdade da ciência
Os sábios manifestavam-se por cima de um estrado desenhando estranhos arabescos numa pedra escura e ai daqueles que manifestassem qualquer dúvida pois logo encontrariam uma razão para o pôr na rua e tomar de ponta como se dizia na gíria onde o chumbo era o pra-to numero um e o terror dos condenados à situação de ouvintes classificados de bons e maus melhores e piores o que contribuía para os isolar mais uns dos outros guardando só para si as descobertas que as suas mentes opacas conseguiam atingir para no final mostrarem as habilidades esquecidas logo que passassem as grandes provas mas era assim que os sábios queriam desejosos de encontrarem entre a carneirada o sucessor directo da imagem e posição.
Um dia alguém ousou manifestar-se e foi o fim. O sábio logo o quis pôr na rua mas outros lhe seguiam as pisadas afirmando não quererem mais individualismo não acreditarem em verdades eternas a que só ele teria acesso odiarem o marranço quererem participar transformando aquelas sessões numa discussão onde o sábio seria orientador e eles participantes na busca da verdade pois esta não basta ser enunciada tem de ser demonstrada e discutida.
Foi assim que a terra passou a girar em torno de si própria e o sol se transformou numa estrela com movimento aparente.
Mas não se ficou por ai.
Os estudiosos de isolados reuniram-se em grupos transmitiram uns aos outros os conhecimentos granjeados discutiam entre si o que hoje era uma verdade cientes que amanhã ela se transformaria na discussão com outros grupos das conclusões atingidas.
E os sábios.
Pois os sábios de início desorientados a breve trecho com-preenderam estarem perante uma verdade desconhecida e sentiram que traçando directi-vas aos menos experimentados os seus esforços eram bem mais compensados pela alegria posta no trabalho e pelos seus resultados bem mais profícuos muito embora imensas vezes tivessem de descer do pedestal para aceitar conclusões melhor formuladas as quais em última análise contribuíam para aprenderem bastante mais.
Não terá sido tão fácil como se conta mas foram anos bem proveitosos para quem os viveu transmissores de um potencial critico que a carneirada nunca alcançaria.
L V
A FAcA e o BOLO
Ei-los prontos à repartição.
São dois homens: um produziu o bolo, o outro encomendou-lho.
As condições-em-que são sociais e pré-estabelecidas.
Mas para a repartição ambos acordaram uma coisa - ela far-se-ia por uma relação entre preço e peso.
o passado ensinou-os: aquele bolo que pesa 1 kg vale 2$00.
Qualquer deles precisa de parte do bolo, um para subsistir, outro para subsistir e mandar fazer outros bolos.
o primeiro pelo seu trabalho recebeu 1$00: por isso teve direito a metade do bolo.
Ei-lo que agora se dirige ao segundo para receber a sua parte.
Mas tem uma surpresa, o bolo já não custa 2$00 mas sim 3$00.
o seu espanto cresce ao mandar pesar o bolo: ele tem apenas l kg.
Resigna-se e leva para casa 1/3 do bolo.
Durante a noite matuta: como é possível que o seu trabalho valha menos que antes se o esforço foi o mesmo.
o cansaço apesar de tudo deixa-o vislumbrar uma saída.
E no próximo dia quando fez novo contrato já não quis um escudo mas sim dois.
E que esse dinheiro representa a divida que a sociedade tem perante ele, perante o seu trabalho; ela deverá ser paga com parte da riqueza que produziu.
A outra parte perante a alternativa de ganhar algo ou não ganhar nada acedeu.
Pagar-lhe-ia dois escudos pelo trabalho que ele incorporaria no bolo.
E este surgiu.
Pesava exactamente o mesmo, tinha o mesmo aspecto, forma e essência.
o dia da repartição.
Com Os seus 2$00, o-que-produziu-o-bolo dirigiu-se ao que lho encomendou.
Espanto!
O bolo já ndo custava 2$00 mas sim 6$00.
Tudo o mais era igual.
Ele desesperou: como era possível que recebesse mais e recebesse menos?
A noite pensaria no assunto.
Mas será que compreenderia que a sua parte não mudaria enquan-to o outro tivesse a faca e o... bolo na mão?
Mistério: porque sobem os preços?
NOTA Este artigo esteve para ser publicado no número 1920 de 12-5-73. Todavia, motivos de Censura impediram que, nessa data, viesse a público.
MURUROA
Apesar de toda a repulsa manifestada pela opinião pública, a França realizou mais uma experiência nuclear no Pacífico.
As suas elites defendem-na jogando com as necessidades de defesa e da construção de uma grande nação. A verdade é que há mais um candidato. ao rol das superpotências imperialistas.
Alguns jornais de direita classificaram os protestos de hipocrisia. O partido revisionista francês deu-lhes o Seu apoio verbal - mas uma vez no poder faria o mesmo.. Pois não segue ele as concepções de Brezner que foi há pouco aos Estados Unidos discutir a partilha das zonas de influência?
A paz nunca se construirá pelo medo, mas pela destruição das causas da guerra. Que são, no fim de contas, a exploração do homem pelo homem e de uma nação por outra.
De quem tem medo a classe dominante francesa? Pois dos países que explora, bem como dos seus operários em quem penetra a chama socialista. É contra eles que se constrói a bomba.
LV
Os dissuasores
Na cena política mundial, a China e a França resolveram assumir um novo papel. Assim enquanto as imperialistas dos Estados Unidos e os social - imperialistas (*) da União Soviética resolveram fazer um acordo para limitar as armas nucleares porque as que têm já lhes dão para se derreterem e derreterem os outros, o realismo daquelas duas potências levou-as a prosseguir a carreira por eles iniciada, argumentando pretenderem com isso dissuadir os grandes em relação à utilização de tão condenáveis instrumentos.
É como quem diz: se há fogo na floresta, deitem-lhe mais mato, porque arde mais depressa.
Aqui fica a questão: será que tal política vem impedir ou acelerar uma guerra nuclear?
(*): Social-imperialismo= socialismo nas palavras, imperialismo nos actos
LV
Olhos postos no Chile
O Chile é, por agora, um caso único na construção da sociedade
socialista, porque assenta na legalidade constituída. Uma coligação de forças socialistas conseguiu pacificamente atingir o poder e dar os pri-meiros passos para a sociedade nova. Os obstáculos são múltiplos desde o imperialismo norte-americano às forças reaccionárias nacionais
que, naturalmente, sentindo-se lesadas, impõem os maiores entraves, aproveitando toda a possível margem de manobra.
Algumas medidas de nacionalização e racionamento foram largamente contestadas. Os Estados Unidos que durante décadas sugaram os rendimentos do povo chileno, tentaram por todos os meios impedir a eleição do presidente Allende e posteriormente moveram um boicote formidável ao desenvolvimento da economia. As classes antes privilegiadas vieram bramar contra o racionamento tentando confundir o povo chileno, senhor de novas condições de vida, em relação aos seus verdadeiros interesses. Não querem deixar compreender que a escassez determina tal facto quando se pretende a igualdade.
Apesar do seu carácter, pequeno burguês e como tentativa de transição pacífica, para o povo chileno vai o nosso calor. Parece que uma revolta militar estalou, que o futuro não será tão brilhante como
o prometido, mas se não houvesse problemas resolver ninguém o tentaria. O que interessa é pelo menos o gérmen estar lá e lá permanecer, desenvolvendo-se.
A morte de Salvador Allende
O Chile caiu sob o jugo do fascismo. As forças reaccionárias que, sob a tutela dos Estados Unidos, tomaram ilegal e violentamente o poder, causando mais de um milhar de mor-tos, não tardaram muito a afirmar que o povo chileno estava farto da liberdade política. Por isso, vai de lhe oferecer a ditadura dos monopólios que o presidente sempre combatera e acabaria por o derrubar.
Sobre esse homem notável alguém disse: foi um político honesto, um marxista convicto e um homem integralmente bondoso.
Que o seu exemplo e os seus erros sirvam a todos os que se batem pela felicidade e libertação dos povos.
LV
A vi(o)la da loucura
Praguejante a viola ouvir-se-ia em toda a vila contando da tensão das vidas dos que nela se empenhavam (e não eram poucos admitindo estarem neles também os que a escutavam) não fossem as conventuais paredes brancas abertas ao meio por quebras que as separavam de outras iguais (vidas) numa simetria rígida que só as consciências de tão desiguais podiam quebrar apesar do empenhamento entendido como meio de chacota, libertação, frustração…
Viola, ó vila, ouvi-la.
Os corpos, sequestrados e doridos, lançavam para o ar o que no passado aprenderam por no presente o interesse ser reduzido, testemunho da sua aversão às novidades oferecidas as quais contudo os dominavam numa inutilidade só aparente para alguns e bem real para todos os outros que eram os que lá estavam por conta desses, violando na vila sem ouvi-la, lá onde as paredes eram mais grossas e vigiadas por gendarmes cuja missão era não deixar entrar ou sair sem todos os preceitos bem dedilhados agora em cordas que não se partiriam a não ser por revoltosos e vitoriosos.
Não há machado que corte
a raiz ao pensamento
porque é livre como o vento
porque é livre…
Libertas, as vozes conduziam sonâmbulos para mundos bem diferentes cujos povos eram a antítese daquilo que eles eram, povos que paz-avam, onde a rádio quase diariamente diria "Rebentou a paz" e as crianças brincariam não com pistolas e tanques mas trocando frases de amor que, num Natal que só não se comemorava a 25 do 12, os pais lhes ofereceriam.
Tristes viram então: só rebenta a paz onde haja a guerra.
E a minha voz bem real trouxe-os ao momento que todos queríamos abandonar: "está na hora".
Fomos em direcção ao presente.
LV