Bolinhas de naftalina (4)
O vendaval
À noite, Ourém era silenciosa, escura, triste. Mas, por vezes, as noites eram quentes e isso convidava distintos oureenses a abandonarem o jogo de cartas ou bilhar. Então caminhavam pelas ruas, por vezes sem muito assunto para conversar.
Façamos uma dessas caminhadas.
Por exemplo, subamos a rua de Castela, antes uma calçada, daquelas que magoava quando se caia e o joelho ia ao chão. De um lado e doutro, pequenas casinhas davam-nos um pouco da vida, pobre, dos oureenses. Mas as vozes, dentro de casa, revelavam alguma alegria, enquanto as luzes, das velas ou das lâmpadas, indiciavam que também era difícil dormir por ali.
À falta de televisão, a melhor companhia era a rádio, com aqueles folhetins intermináveis em que o Rui de Carvalho, a Carmen Dolores e a Eunice transportavam os portugueses para outros mundos e outros tempos.
Ultrapassada a rua de Castela, entrava-se na estrada que liga a Avenida ao magnífico Colégio. Aí, o ambiente mudava radicalmente. O Julito, muito mais pequenito que nós, então com doze ou treze anos, dormia, pachorrentamente, naquela casinha do lado esquerdo. Do mesmo lado, o magnífico pinhal que nos acompanhou na juventude enquanto educação. Do lado direito, se não me engano, uma vinha.
Mas aquela vida era mesmo defícil de passar. Desejávamos como que um vendaval que mudasse tudo aquilo.
- Não há ninguém que saiba cantar?
E, nesse momento, uma voz elevou-se no meio daquele grupo e revelou algumas horas de treino e audição na clandestinidade.
O vendaval passou nada mais resta
a nau do meu amor tem novo rumo
igual a tudo aquilo que não presta
o amor que me prendeu desfez-se em fumo
Navego agora em mar de calmaria
ao sabor da maré em verdes águas
ao leme o esquecimento e a alegria
vai deixando, para trás, as minhas mágoas
Para onde vou não sei
o que farei sei lá
só sei que me encontrei
e que eu sou eu enfim
e sei que ninguém mais rirá de mim
Longe no cais ficou a tua imagem
mal a distingo já esmanhecida (??)
comigo a alegrar-me a viagem
vão andorinhas de paz de nova vida
Sigo o tranquilo rumo da esperança
buscando aquela paz apetecida
para ti eu fui um lago de bonança
ai e tu um vendaval na minha vida
Para onde vou não sei
o que farei sei lá
só sei que me encontrei
e que eu sou eu enfim
e sei que ninguém mais rirá de mim
Foi a estupefacção total. Depois, veio o aplauso. Ali estava um distinto oureense que conseguia imitar o magnífico cantor latino, o romântico que nunca teve a honra de ser considerado fadista apesar de algumas das suas canções valerem mais que mil fados.
A sessão repetiu-se várias vezes, mas tudo acabou por acabar inclusivamente aquela voz que nunca conheceu qualquer sinal de consagração. E testemunhas quase que não há, pois dois dos poucos que lá estavam, infelizmente, já partiram.
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