segunda-feira, janeiro 27, 2020

Uma amazona em perigo


Naquela manhã, a Teresinha estava encantadora com o ar desportivo e juvenil que lhe dava o traje de amazona. Os olhos pareciam mais rasgados e claros que nunca e o cabelo, recentemente penteado, caia como uma cascata sobre os ombros, em redondos anéis. Suspenso do pulso levava um pequeno chicote e foi assim que entrou no Avenida fazendo suspender a respiração a toda a gente.
- Teresa, pareces uma verdadeira cavaleira – disse o Jó Rodrigues.
Ela riu-se e respondeu:
- O João conseguiu que as meninas do circo me emprestassem um cavalinho dócil para dar uma volta pela vila.
O João, sempre o João… a conseguir coisas que pareciam inacessíveis aos outros.
Nesse momento, viram o João e uma miúda do circo que desciam a rua que vinha de casa do César na direção do Avenida.
A miúda segurava com uma das mãos as rédeas de um formoso corcel, negro de azeviche, uma bela estampa que, à simples vista, denotava ser animal de puro sangue. Um excelente exemplar.
- Aqui tens, Teresinha. Cumpro sempre o prometido.
A rapariga montou com agilidade e dirigiu-se ao longo da Avenida no sentido do jardim da vila. Aí, voltou à direita, num trote muito suave e subiu na direção da Câmara. Observava tudo com interesse e reparou que, lá à frente, havia uma parada da GNR. Cerca de 20 soldados estavam perfilados, obedecendo às ordens de um superior. Dirigiu para lá o corcel.
Mais acima, pôde ouvir as vozes de comando:
- Apontar!
Um movimento bem sincronizado fez com que os soldados virassem as espingardas para o ar.
- Fogo!
Uma fortíssima salva atroou os ares de Ourém. O animal, espantado, saltou, encabritou-se, levantou as patas dianteiras e esteve quase a derrubar a amazona.
Entretanto, alguns rapazes subiram a rua do César e puderam ouvir todo aquele ruído. Ao mesmo tempo, viram a mole negra de um cavalo desenfreado prestes a desabar-lhes em cima. E vinha na direção do Estorietas…
Forte e vigoroso, o aspeto do animal era horrível. O peito dilatado pela corrida louca, a boca meio aberta e cheia de espuma, os dentes à mostra, parecendo resolvidos a morderem-lhe, formavam um conjunto aterrador.
Os soldados da GNR contemplavam espantados aquela corrida louca. O graduado olhou aquele espetáculo e começou a tomar notas:
- Só nesta terra… - murmurou.
O primeiro impulso do Estorietas foi atirar-se de cabeça fugindo rapidamente do caminho trilhado pelo animal, mas deteve-o no último instante a visão fugaz de uma carinha desfigurada pelo pavor e o débil vulto da amazona que, com a força do desespero, se aferrava às crinas do corcel, tão desnorteada e sem domínio dos nervos que tinha largado as rédeas; já nem sequer tentava pará-lo e o galope cego arrastava-os rapidamente para a praça Mouzinho de Albuquerque onde se esmagariam de encontro às paredes que de maneira nenhuma poderiam evitar, isto se não chocassem com algum carro na Avenida. Foi a certeza deste facto que impediu o seu primeiro e instintivo movimento.
Nesses poucos segundos, apenas o tempo de lançar uma vista de olhos para avaliar a situação, o animal, ganhando terreno com fantástica velocidade, atirava-se irresistivelmente para cima dele. Um grito de horror saiu da garganta dos espetadores daquela tremenda cena, tanto mais que a ninguém era possível intervir.
Imobilizado pela expressão de medo que se lia nos olhos da amazona, convenceu-se de que tinha de fazer qualquer coisa, fosse o que fosse, para a salvar, mas a extraordinária rapidez do desenfreado animal impediu de pensar na melhor maneira de o deter.  Só por instinto, afastou levemente o corpo na altura própria, deixando passar a cabeça do cavalo e, com vigoroso impulso, saltou-lhe para o pescoço, de onde, pela violência do choque, se viu repelido. Concentrando toda a sua força nos braços para manter a posição, conseguiu afinal agarrar-se com firmeza e, então, sustendo o peso do corpo com o braço esquerdo, avançou a mão direita para agarrar as rédeas pendentes.
Chegou a julgar que ia cair pois o suor que empapava o corpo do animal fazia resvalar o braço em que se apoiava; ao dar por isso, apertou com novas energias as crinas do cavalo e, já com as rédeas bem presas, obrigou-o, violentamente, a baixar a cabeça. Agarrando-se como podia, às rédeas e ao pescoço, foi estendendo as pernas que mantivera encolhidas, inclinou-se para a frente e deixou cair os pés, a tocarem o solo, fincando os saltos dos sapatos para se firmar no terreno, e largou-se puxando as rédeas com ambas as mãos.
Fizera tudo aquilo com a maior rapidez, mas, apesar disso, já estavam a poucos metros do Avenida e a parede parecia aproximar-se vertiginosamente, sombria, ameaçadora…
Os músculos em completa tensão afiguravam-se incapazes de resistir ao esforço, o alcatrão feria-lhe os pés, deixando visível um sulco escuro, mas, quando a catástrofe parecia iminente, o animal rendeu-se, ofegante e trémulo. Um suspiro de alívio saiu do seu peito angustiado ao perceber que os seus esforços tinam sido coroados do êxito mais rotundo. O cavalo ainda tentou encabritar-se mas a forte pressão que sobre ele exercia o Estorietas dominou-o por completo.
A Teresinha chorava e teve de ser retirada de cima do cavalo pelos rapazes. O João só dizia:
- Oh! Que estupidez eu fiz.
Entretanto aproximava-se o graduado da GNR que, com voz dura, perguntou:
- Quem conduzia aquele cavalo?
- Era eu, senhor comandante – respondeu a Teresinha ainda a tremer e quase a chorar.
O homem não teve dó nem piedade:
- A menina tem de pagar uma multa de 50 contos por ter circulado na vila com excesso de velocidade.
- Mas eu não tenho dinheiro…
- Então vai ficar na prisão durante uns dias…
E, nessa noite, a Teresinha foi dormir no calaboiço da GNR sem ninguém saber quando sairia.


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