segunda-feira, agosto 11, 2003

As redacções da Guidinha
Por aquela altura, tornaram-se célebres textos sem pontuação, publicados no Diário de Lisboa e conhecidos como redacções da Guidinha. Já não me lembro o que me deu para reproduzir a ideia no «Notícias de Ourém» e no «Ourém e seu Concelho». O certo é que bombardeei os leitores com alguns textos do mesmo género, que reflectiam algumas das minhas preocupações do momento, mas que, confesso, agora tenho alguma dificuldade em justificar.
Também é de acreditar que o facto de estar a cumprir serviço militar me tivesse criado a necessidade de tudo ser mais obscuro. Aliás, um dos textos, «Os Abutres» é um relato da instrução militar que fazia em Mafra e das paragens para descanso e "matar o bicho" que nos eram concedidas.
Confesso que tive um serviço militar que se pode considerar uma maravilha. Na instrução, com imenso receio, tive a sorte de calhar com um instrutor bem formado detentor de grande respeito por todos os elementos do pelotão. Na especialidade, mais tranquilo, começámos a sentir os cheirinhos que a revolução do 25 de Abril nos enviava: tal ocorreu na semana de campo e em muitos contactos com colegas e militares mais graduados. Depois, foi o magnífico período da revolução onde tive a sorte de participar e de viver praticamente até ao famigerado 25 de Novembro que transformou a revolução popular em revolução democrática, isto é, em algo, que dando alguma voz aos explorados e oprimidos, permitia a sua exploração pela classe detentora dos meios de produção.
Se "Os Abutres" é o caso mais explícito, para os outros textos não consigo mesmo qualquer justificação, sendo que num deles existe uma referência a avisos que lia no Notícias de Ourém quando algum texto era mais forte, «Cuidado com o fogo», e outro é uma recordação dos vendedores da banha da cobra na feira nova que se realizava no largo da feira do mês, junto à casa do Sr. Manuel Raul, pai do Cúrdia, em tempos de meninice…

O charlatão da feira nova
o charlatão chegou à cidade com os mesmos produtos rótulos diferentes tentando impingi-los mais uma vez ao povo que estava farto deles mas sempre que o via subir para cima duma banca se aglomerava em seu torno dando aso a que ele tecesse todo o elogio que a sua mente de crocodilo habilmente preparara ao longo de tantas sessões de treino de que aquela era mais uma elogio que tinha o condão de tocar os pontos vitais integrantes do desejo e você leva mais uma pelo mesmo preço da anterior além do sabonete aqui tem a esferográfica não costuma escrever a namorada (?) agora vejam este magnífico detector de bombas que os árabes mandam em cartas aos judeus tenham cuidado pois podem ter tido um parente judeu e os agressores árabes não perdoam como o prova o dayan ter um olho tapado e o henrique não sei quantos ter sido assassinado por um fanático- vocês levam ainda um magnifico televisor para assistir aos belos filmes que a televisão dá toda impregnada de teatro popular música popular anúncios populares os meus produtos são muito melhores que os que ela anuncia não preciso de um teleganhando para os meter na cabeça de quem me ouve e se alguém houver que queira reclamar pois eu devolvo todo o dinheiro o senhor está aí a fazer barulho tome lá todo o seu dinheiro leve tudo o que lhe dei para casa - e em voz baixa os patos estão a cair - já tenho todos os produtos vendidos mas na próxima feira trago mais muitos mais para este povo maravilhoso que tão bem me soube receber mais uma vez.
L V.

O Encontro
na cidade reuniram-se industriais bairristas cidadãs aenepistas oposicionistas camponeses campistas a erretêpê charlatões latifundiários poetas reaccionários reformistas revolucionários capas para dar às suas vidas um bocado de interesse que andava muito por baixo dados os maus programas que a televisão transmitia para povo ver o qual faltou ao encontro mas mandou alguns representantes os que tinham mais interesse em representar o povo feito de trabalhadores embebidos em emplastre de álcool e inconsciência que fez do encontro um falhanço espectacular pois cada um foi para o café que já conhecia trancou-o com cilindros de ferro e não deixou entrar mais ninguém a não ser no final tal e qual no género dos banquetes que se fazem e cujas recei-tas são destinadas aos pobres os quais no entanto não ficam com a pança cheia que isto de ser poeta com a pança va-zia não dá nada e a cabeça ficava fraquinha sem poder pensar em novas lucubrações e em novos banquetes que a televisão transmitiria para abrir o apetite aos que em casa só tinham côdeas mas na etiópia nem isso tinham pois só numa semana morreram 10.000 ficando durante dias às moscas algum tempo depois de os estados unidos e união soviética terem vendido mais uns quilos de armas a árabes e judeus que se fartaram de matar-se mutuamente enquanto os outros se riam como uns perdidos consolidando as suas posições junto aos poços de petróleo os desinteressados os tais da paz mundial e da redução das armas nucleares.
L V.

QUEDA NO ABISMO
A folha de papel totalmente em branco, num branco que Se destruía enquanto a preenchia, recordava-me as palavras de Zaratustra que ontem li e me disseram «o homem é um abismo entre o macaco e o super-homem».
Também ela era um abismo dada a incapacidade para exprimir qualquer coisa, um abismo no qual se afundam ideias muitas vezes condenadas ao es-quecimento por parte daqueles a quem se dirigem se bem que em determina-do momento se possam considerar agressivas e avisem «cuidado com o fogo» pois a avó é uma instituição que quase desapareceu do seio da família.
Na sexta-feira estive com uma avó e com o ente que lhe dava sentido, brinquei, ouvi-os «que estás a fazer?», «um cão», «não há cães encarnados», «mas os índios são encarnados, «os índios não são cães», «mas há cães índios'.
Não fosse a prevenção da avó e o mas bem explícito da criança e eu julgar-me-ia regressado da colonização americana, onde os direitos dos povos Índios foram sempre espezinhados numa eficácia de tal ordem que hoje se podem considerar como desaparecidos na totalidade à parte os que se disfarçam para turista ver ou para a erretêpê transmitir sem o mínimo respeito pela verdade da sua história.
Para todos nós o super-homem ain-da está demasiado longe.
L V.

Os ABUTRES
estavam por trás do muro oferecendo o que tinham para vender numa ânsia que lhes arregalava os olhos não os deixando pensar em porque estariam ali onde seres esfomeados e necessitados de humanidade procuravam pão e algo como o leite materno para se alimentarem e continuarem numa senda repetitiva que faria voltar os abutres já que o negocio era fabuloso e eles teriam assim forma de encontrar na cidade os géneros que necessitavam para a sua auto-subsistência muito embora maldissessem os impostos que pagavam percebendo que eram para obras colectivas e não das prontas só para eles seres cujos filhos também iam a escola talvez de mà vontade ansiando pela liberdade de se tornarem úteis e servirem um povo sofredor e amante do traba1lho produtivo para assim poderem estar participando na repartição do bolo.
eram dez minutos e o seu decorrer cheio de palavrões e boca cheia saltitando de vala em vala do muro para ali dali para o muro onde estavam os pães as bebidas e tudo o mais que o esfomeado consumiria pensando estar a fazer algo pelo seu corpo para desenvolver uma formidável musculatura enquanto os olhos arregalados e as vozes li-vres os procuravam numa con-fluência. de fins que se materia-lizava no exposto.
o dinheiro brilhou e à falta de trocos uma carteira de fósforos serve para aumentar o negócio.
o abutre tinha na realidade algo de estranho.
L. V.

1 comentário:

Anónimo disse...

A Guidinha era uma menina da classe popular com os seus sete/oito anos de idade que comentava tudo o que via ou ouvia, nas suas redacções.
Estas eram críticas ao sistema, fáceis de ler e de entender.

A falta de pontuação, desculpável nesta personagem, tinha uma função de comicidade que, aligeirando o tom, permitia passar sob a censura, sem grandes cortes.

O autor das Redacções da Guidinha foi o escritor Luís de Sttau Monteiro.

Manuela RS

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