terça-feira, abril 21, 2020

Uma licença para vender

Manhã cedo, na quinta-feira seguinte, a Mari’mília e a mãe atrelaram uma carroça à burra e começaram a carregar as coisas para o mercado: uma cesta com limões, outra com pintainhos e noutra puseram os coelhos a que, previamente, ataram as patas.
Sentaram-se e iniciaram a deslocação para Ourém num trote bastante suave. Pelo caminho, a miúda revia-se num auto de Gil Vicente:

"Vou-me à feira de Ourém e farei dinheiro grosso. Do que dos pintos e coelhos render comprarei ovos de pata, que é a coisa mais barata que eu de lá posso trazer; e estes ovos chocarão; cada ovo dará um pato, e cada pato um tostão, que passará de um milhão e meio, a vender barato. Casarei rica e honrada por estes ovos de pata, e o dia que for casada sairei ataviada com um brial de escarlata, e diante o desposado, que me estará namorando: virei de dentro bailando assim dest'arte bailado, esta cantiga cantando."

Meia hora depois, chegaram ao mercado junto à esquadra da GNR e cada uma levou os cestos para os locais respetivos de venda.
- Mãezinha, olha pela minha cesta, enquanto vou estacionar o carro.
Naquele tempo, em Ourém, havia muitas pessoas que disponibilizavam os pátios para estacionamento das carroças e para descanso dos animais. A Nicha conduziu a carroça na direção da Rua de Castela e parou no largo junto à casa da Dona Aurora. Falou com a senhora e estacionou o carro no pátio, depois deu algo de comer à burra e saiu.
Nessa altura, o Estorietas saía de casa para ir para as aulas. Ela contou-lhe rapidamente por que estava ali.
- Então, vais para Peras Ruivas quando o mercado fechar… podias dar-me boleia na carroça para ir ver os meus tios.
E combinaram o ponto de encontro. Ela foi na direção do mercado e, daí a pouco estava junto ao cesto a enfrentar os clientes.
- Quanto custam os limões? – perguntou uma senhora.
- Cinco escudos o quilo.
- Arranje-me um quilo.
Os limões foram desaparecendo e a Mari’mília ia guardando o produto da venda. Um pouco afastada, a ti’ Núncia já tinha despachado os pintos e, naquele momento, mostrava um coelho a uma cliente. O pobre bicho, agarrado pelas orelhas, olhava-as com terror e não deixava de dar às pernas traseiras.
Foi então que dois GNR pararam em frente ao ponto de venda da senhora.
- Belos coelhos, não achas, Ernesto?
A senhora olhou para eles e ficou apreensiva. O chamado Ernesto olhou-a com desconfiança e perguntou:
- A senhora tem licença de feirante? Faça favor de me a mostrar…
Ela ficou muito atrapalhada.
- Senhor guarda, não sabia que era necessária…
- Nunca sabem. Vou ter que lhe apreender os coelhos – pegou no cesto e dirigiu-se ao outro guarda. – Dá aqui uma ajudinha. Temos de levar isto para o posto. E a senhora acompanhe-me pois tenho de a autuar.
A Mari’mília praticamente já não tinha limões e começou a ver a mãe a acompanhar os guardas que transportavam a cesta com os coelhos. Pouco depois, estavam no posto da GNR. O comandante recebeu-a enquanto os guardas combinavam entre si:
- Há seis coelhos. Dois para cada um de nós e dois para o comandante. Que achas?
- Está bem. Vamos guardá-los naquela cela que está disponível. Se calhar, o melhor é também apreendermos a cesta.
- Olha, a minha casa é aqui ao lado. Vou já lá pôr os que me cabem…
- Ok. Não demores.
Entretanto, o comandante explicava à ti’Núncia as razões da multa e apreensão.
- Sabe? O que fez é muito grave. A senhora devia ter tirado uma licença de feirante que só custa 15 escudos na Câmara Municipal. Não o fez e veio vender produtos ilegalmente para o mercado, pelo que vai ser autuada e os produtos serão apreendidos. A multa é de 500 escudos. Como vê, teria sido muito mais simples e menos dispendioso tirar a licença.
- Que horror! Eu nem fiz esse dinheiro na feira…
- As pessoas têm de aprender. A Economia tem de ter regras senão a concorrência desenfreada leva à ruína de todos.

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