quinta-feira, dezembro 12, 2019

A Gala do CFL

No mês de Março de um dos primeiros anos da década de sessenta, foram chamados ao gabinete do diretor do CFL os seguintes alunos com o objetivo de colaborarem na organização da primeira gala do colégio: Lena Borda d’Água, Céu Vieira, Maria Emília, Luís Cúrdia, Amândio Lopes, Rui Leitão e Jó rodrigues.
Depois de lhes apelar aos mais profundos, pedagógicos e patrióticos sentimentos, ficou combinado que as duas primeiras se encarregariam de confecionar os bolos para a gala, a Maria Emília forneceria, abateria e depenaria 50 frangos, o Luís Cúrdia traria 250 litros de vinho da taberna do Manel Raul bem como uma centena de pirolitos e laranjadas, o Amândio traria 50 kilos de batatas cortadas em palitos para fritar, o Rui Leitão encarregar-se-ia de distribuir pastilhas Reny para apoiar a digestão e o Jó Rodrigues assaria os frangos.
A Lena e a Céu deveriam também servir às mesas vestidas de coelhinhas e de patins.
Conseguido o acordo dos colaboradores, o diretor produziu imediatamente intensa ação de propaganda relativamente à gala. Só existiriam vinte mesas para os familiares dos alunos à razão de 300 euros por mesa (1)… Desta maneira, conseguia-se estabelecer um apertado filtro à entrada já que Ourém era habitada por gente tesa, rude, sem princípios, capaz das piores zaragatas…
Algumas dessas mesas ficaram de imediato reservadas para o Presidente da Câmara e sua comitiva, para o diretor do colégio e para o pároco da Igreja.
Ficou ainda clara a proibição de o João Passarinho entrar no espaço reservado à gala devido ao seu comportamento desnaturado.
A gala contaria ainda com um baile abrilhantado por um conjunto da região e previa-se uma curta atuação de quatro elementos que viriam a integrar o quarteto 1111.
***

E o dia da gala chegou.
Os participantes foram estacionando os belos automóveis ao longo da estrada que servia o colégio. As damas da elite de Ourém, muito perfumadas, resplandeciam nos seus vestidos de tecidos comprados para o efeito na loja do sr. Pina e elaborados pelas melhores modistas da terra. O senhor prior também não faltou para abençoar aquelas almas tão gentis. As meninas, oh!, aquelas flores… como vinham bem vestidas para o baile…
A gala iniciou-se com um discurso do Dr. Armando:
- Esta é a primeira gala do nosso Colégio Fernão Lopes e espero que não seja a última. Com ela queremos cimentar a união entre pais, alunos e professores num ambiente de mútuo respeito. O nosso programa para hoje é longo. Um antigo aluno proferirá a oração de sapiência. Alguns dos melhores alunos vão ler alguns poemas que mostram a qualidade das leituras que temos no nosso espaço de ensino. Depois, veremos uma breve atuação de quatro rapazes que virão a formar o quarteto 1111 que, daqui a algum tempo, lançará a Lenda de El-rei D. Sebastião e a Balada para Dona Dinis. O José Cid ainda não tem o nível do nosso Fernão Lopes, mas garanto que chegará longe e que em 2019 lhe será atribuído um prémio musical.
Terminado o discurso do diretor, em nome dos antigos alunos do Colégio, a Florência proferiu uma oração de sapiência na qual enaltecia o papel do grande cronista na divulgação da História do nosso país. Terminou pedindo ao Ministro da Câmara (o Presidente) que nunca deixasse definhar aquele espaço para ali poderem voltar com prazer todos o que o tinham frequentado.
O Presidente da Câmara agradeceu as palavras da antiga aluna, acenou afirmativamente ao pedido, garantindo que a autarquia tudo faria para manter aquele espaço nas melhores condições. Em seguida, propôs um brinde, augurando um excelente futuro aos alunos a servir a Pátria na Guerra Colonial e, aos que escapassem, a trabalhar para engrandecer o país. Todos de pé, de copo na mão bem cheio, seguiram as suas palavras:
- Vai acima, vai abaixo, pela goela abaixo…
Em seguida, três alunos foram ler poemas, originando significativos aplausos. Eram os três Luíses nascidos nas imediações da Rua de Castela ali a trazerem os versos de Pessoa e António Gedeão(2).


Finalmente, o futuro quarteto 1111 interpretou três canções que entusiasmaram novos e velhos:
João Nada
Entretanto, o belo cheirinho do frango assado já entrava pela sala improvisada no ginásio. Lá fora, o Jó Rodrigues rogava pragas àquela gente toda e ao trabalho que lhe tinha calhado e resolveu participar na festa carregando a assadura com piri-piri. E não tardou muito, procedeu-se ao início da refeição. As meninas vinham de patins trazer frangos e batata frita às mesas. Comia-se e bebia-se a valer e, com o tempero do frango, bebia-se ainda mais… Tudo parecia correr às mil maravilhas.
O João não estava nada contente e, quando uma das meninas passou à frente da porta onde se escondia e como já estavam todos com os copos e não davam por ele, rasteirou-a. A pobre caiu em cima da mesa onde estava o diretor do colégio e família e o frango caiu na cabeça do Presidente da Câmara enquanto uma asa acertava em cheio numa bochecha da Aninhas…
A patinadora foi de imediato socorrida. Era a Céu. Coitadinha, estava cheia de nódoas negras, mas foi amparada por vários rapazes gentis e, em breve, recuperou a boa disposição.
Confusão ultrapassada, foi servida a sobremesa. Um belo bolo de ovos feito pela Lena, coberto de chantilly. O problema é que, mal aproximaram o nariz do bolo, as pessoas fizeram um esgar de desconfiança. Levantou-se o dr. Laranjeira:
- É curioso, este bolo está muito bonito, mas cheira mal…
A Lena ficou logo nervosa.
- O quê?
- Cheira a ovos podres…
Mal sabiam que o malvado do João um dia antes tinha trocado os ovos que a Lena tinha comprado, ovos fresquinhos da melhor criadora de Ourém, por ovos podres que já guardava há vários meses em casa.
- Mas não pode ser… Kakakakakakaka – dizia a pobre Lena.
Contudo, teve de render-se à evidência e, em total descontrolo, pegou no bolo e espetou com ele na cabeça do padre.
- A culpa foi sua que me recomendou a Eulália dos ovos…
Foi o sinal que faltava. De festa, a gala transformou-se em guerra com todos a despejarem os bolos na cabeça uns dos outros. Verdadeira batalha campal com as damas a fugirem para não lhes estragarem os fatos elaborados exclusivamente para aquele efeito. E, cá fora, o João e o Jó gozavam todo aquele espetáculo deprimente enquanto se deliciavam com os frangos que tinham escapado à gula dos participantes.
Escusado será dizer que nunca mais houve galas no CFL.


(1) 60 contos na moeda da altura.
(2) O Luís Filipe, o Luís Manuel e o Luís Nuno. Três Luíses que nasceram com uns oito dias de diferença uns dos outros.

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