O comboio rodava entre árvores frondosas e os sinais das patas de um ou outro animal extraviado nos campos que rodeavam Ourém.
Balouçado pelos solavancos da carruagem, alheio às conversas de outros passageiros e ao barulho das portinholas desengonçadas, o senhor Marques dormitava a um canto, deixando que a poeira que entrava pela janela fosse formando nas pregas do seu melhor fato pequenos sulcos amarelos.
No banco em frente da velhíssima carruagem, cujos forros interiores estavam comidos pelo Sol, pelo vento e pela poeira, a Gracelinda pousava os lindos olhos azuis na figura de seu pai.
A posição que cada um ocupava poderia ser tomada como símbolo dos seus estados de espírito: a Gracelinda ia sentado na direção da marcha do veículo, de frente para as terras que pareciam vir ao seu encontro – quer dizer, para o futuro; ia entrar secretamente num convento como forma de escapar a uma perseguição implacável do comandante do posto da GNR de Ourém. Ao seu lado, o seu cãozinho Pepe dormia e jurava que nunca largaria aquela menina que era tão boa para ele.
O senhor Marques contemplava a longínqua linha do horizonte que ia ficando para trás – dir-se-ia que olhava para o passado para as horas maravilhosas que aquela filha lhe proporcionara. De futuro, já não a levaria ao Café Central aos domingos para ela se distrair com a televisão, parecia que uma parte da sua vida tinha acabado naquele momento…
E a reclusão da Gracelinda durou cerca de um ano.
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