quarta-feira, abril 29, 2020

A revelação do grande artista

Os dias foram passando e nada acontecia. O Estorietas olhava para a pequena, mas o ar dela fazia crer que não tinha recebido o seu bilhete. O grande artista já desesperava. Se ela não lhe respondesse quem lhe poderia servir de modelo? A Deolinda? A Mari’mília? Ambas esculturais, mas nenhuma tinha aquele ar de inocência, amargura e dureza que a Cietezinha tantas vezes ostentava.
Mas um dia tudo mudou…
Iniciava-se a aula de Matemática e o Estorietas notou que os seus livros tinham sido remexidos. Procurou avidamente e, entre eles, lá estava um bilhete.
«A resposta dela» - pensou.
Abriu rapidamente e leu:
«Estorietas
Fiquei surpreendida com a tua mensagem. Nunca pensei que pudesses pedir desculpa alguma vez pelos teus irrefletidos actos. Para além disso, convidares-me para um encontro excede tudo o que poderia esperar de ti. Mas resolvi dar-te o benefício da dúvida e proponho-te que o nosso encontro seja ao cimo da Rua de Castela, em local onde já não passam os nossos colegas do CFL, amanhã, após a aula de História e antes de irmos almoçar.
Ciete»
Nessa noite, o Estorietas não dormiu.
«E se isto corre mal? Que lhe vou dizer?».
Mas, no dia seguinte estava mais calmo. E mais seguro ficou quando a viu chegar ao cimo da Rua de Castela com os seus livros e a lancheira com o almocito.
- Bom, espero que tenhas uma boa razão para me fazeres passar por isto – começou ela.
- Tinha muita urgência em falar contigo. Sabes? Sinto que tenho uma alma de artista… e tenho-me dedicado à pintura. Fiz um atelier em minha casa e passo grande parte do meu tempo a pintar.
- Um ofício tão legítimo como qualquer outro. E que tenho eu a ver com isso?
- Até agora só tenho desenhado flores, natureza morta. Preciso de alguém que transmita calor, paixão aos meus quadros.
- Não me venhas com essa. Olhas sempre para mim com ar estranho quando as minhas notas são melhores que as tuas…
- Esse ar estranho que tenho é porque sinto que há algo em ti que poderá fazer com que me transcenda a mim próprio. Cietezinha, eu vejo em ti uma Adjani…
- O quê? Que é isso?
- Uma futura atriz do cinema francês muito bela. Vai ter vários óscars. Eu penso poder levar-te aos píncaros da fama.
- Não percebo.
- Cietezinha, queres ser a modelo para as minhas pinturas?
- O quê? Estás louco, Estorietas?
- Nunca estive tão lúcido como neste momento. Anda, acompanha-me ao meu estúdio. Podemos almoçar lá os dois e falar, depois voltaremos às aulas.
Pouco depois estavam no “atelier” do Estorietas. Ela notou como tudo estava bem delineado e ele mostrou-lhe alguns quadros que já tinha feito.
- São bonitas as tuas pinturas…
- Finalmente, um elogio.
Mais para a direita naquela sala com muita luz, estava um cavalete com uma tela em branco.
- E qual vai ser o teu próximo desenho?
- Queria desenhar o teu rosto. Tens um ar tão profundo… Mas, agora, é melhor almoçarmos. Traz a tua comidinha. Eu também tenho o meu almoço já arranjado.
Efetivamente, em cima de uma mesa, já estavam talheres e pratos para dois pelo que puderam tratar da barriguinha.
Pouco depois de terem comido, ele disse:
- Agora, senta-te naquela cadeira, põe o teu ar de menina de sangue azul residente no Castelo e deixa-me desenhar o teu rosto.
Ela obedeceu e ele esboçando durante cerca de trinta minutos o rosto dela.
- Pronto, já está. Podes vir ver.
Ela veio e ficou encantada.
- Eu… eu sou assim?
- Não tenhas qualquer dúvida. A tua beleza é insuperável.
- Estorietas, como estou bonita! Como conseguiste dar-me esta expressão?
- É arte, menina, arte e paixão. Podemos ficar famosos, Cietezinha. Eu, um grande pintor, um verdadeiro Rafael e tu a sua modelo.
- Olha, não divagues. Já estamos atrasados para as aulas.
- E amanhã posso contar contigo?
Ela hesitou um pouco, mas, por fim, disse:
- Sim, amanhã voltaremos ao teu estúdio…

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