segunda-feira, abril 27, 2020

A arte nasce dalguma paixão

No seu “atelier” de pintura na casa rosa da Rua de Castela, o Estorietas contemplava extasiado a sua última obra.
«Que beleza! Que definição! Mais luz que num Van Gogh…».
Mas não se sentia completamente satisfeito.
«Preciso de mais. Preciso de algo que humanize a minha arte. Estou a arder por algo indefinido… E se eu lesse um pouco de Pessoa?».
Um texto que tinha à mão tinha a designação de «Heróstato». Pegou nele e leu ao acaso:

«Para que a arte possa ser arte, não se lhe exige uma sinceridade absoluta, mas algum tipo de sinceridade. Um homem pode escrever um bom soneto de amor sob duas condições - porque está consumido pelo amor, ou porque está consumido pela arte. Tem de ser sincero no amor ou na arte; não pode ser ilustre em nenhum deles, ou seja no que for, de outro modo. Pode arder por dentro, sem pensar no soneto que está a escrever; pode arder por fora, sem pensar no amor que está a imaginar. Mas tem de estar a arder algures. De contrário, não conseguirá transcender a sua inferioridade humana.»

«E eu ardo, porque não lhe pedi perdão… - pensava o Estorietas.»
Surgiu-lhe uma ideia, mas hesitou antes de avançar com ela.
«Se calhar, ainda está zangada comigo, mas era a pessoa indicada para me servir como modelo…».
Sentou-se numa cadeira e com um ar desesperado passou a mão pela cabeça. Estava visivelmente nervoso. Tal e qual um artista no momento em que a ideia explode.
«Tenho de falar com ela? Mas como? Virar-me-á as costas, não me ouvirá… Já sei, vou escrever-lhe um bilhete e ponho no meio dos livros dela…».
No dia seguinte, no CFL, a primeira aula era de Ciências Naturais. Quando a DRa. Lurdes Moreira mandou sair os alunos e abandonou a sala, o Estorietas deixou-se ficar para trás. O lugar dela era na primeira fila, o mais à direita, mesmo junto à porta. Um alvo fácil…
Ia nervoso, bastante nervoso. Se fosse apanhado a fazer aquilo, ainda diziam que lhe estava a espiar os apontamentos. Mas teve sorte. Abriu um livro e deixou lá o bilhete.

«Cietezinha
Espero que já me tenhas perdoado pelo meu comportamento no salão da banda. Tenho um pedido para te fazer, mas para isso preciso de me encontrar a sós contigo. Acredita, sou um rapaz honesto, as minhas intenções são as melhores. Por favor, diz-me um sítio onde nos possamos encontrar.
Sempre amigo
Estorietas»

Ao sair, ainda olhou para todos os lados. Não vinha ninguém. Respirou aliviado e foi para o recreio onde já era estranhada a sua ausência.
- Anda aqui marosca – resmungava o Amândio

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