domingo, junho 20, 2004

Leitaria Guerra

Ourém, anos 50, praça de automóveis.
Estou no meio daquele jardim que já é uma saudade. Ali existiam toda a espécie de árvores, arbustos e flores, respirava-se vegetação. Ao centro, os banquinhos de madeira permitiam que as pessoas descansassem por um bocado.
Em torno da praça estavam os automóveis de aluguer. O Cabeça Aguda, o Chucha, o Alicate, o Flores, o Zé Vieira.
Eu e o meu irmão encontrámo-nos ali com o meu pai e decidimos ir até aquela minúscula leitaria que, para mim, com quatro ou cinco anos era um mundo.
Sentámo-nos e eles mandaram vir leitão e palhete. Perceberam? Leitão e palhete no centro de Ourém.
Olharam para mim.
- Que é que tu queres?
Como aquelas comidas e bebidas me faziam alguma confusão, achei que o ideal era tomar qualquer coisa que estivesse de acordo com o meu estatuto.
- Um garoto.
E lá veio aquela maravilha num daqueles copinhos da época.
Entretanto, eles encarregavam-se do magnífico leitão do Guerra. O meu irmão rapa da navalhita que o acompanha sempre e passa a parti-lo em pequenos pedaços que depois ia picando descansadamente e levando à boca. O meu pai era mais directo, pegava em conjuntos daquelas peles bem tostadas e carne e deleitava-se. Depois a tacinha compunha o petisco. Como tudo aquilo parecia delicioso, o leitão, o tempero, o pão, o palhete…
Falaram de desporto.
- Sabe, pai, este ano o Sporting vai ganhar o campeonato.
- Espero bem que sim, ninguém se pode comparar a eles.
Mas vendo que havia alguém estranho a ouvi-los, viram-se para mim:
- És Sporting ou Benfica?
Nunca fui uma pessoa agradável e, depois de os estar a ver deleitar-se com o Leitão, deixando-me com uma simples bebida embora deliciosa, achei que devia marcar a minha posição:
- Benfica!
E fiquei benfiquista para toda a vida. Aquela cor vermelha sempre exerceu um enorme fascínio sobre a minha pessoa pelo que julguei ter sido a opção certa. Aliás, uma coisa que nunca percebi muito bem terá sido a grande quantidade de adeptos sportinguistas que havia em Ourém na altura. Parecia que já, na época, não gostavam de vermelho.
- Não tens vergonha? Devias ser do Sporting como todos somos.
- O Benfica ainda há-de ganhar a Europa.
- Ganhar a Europa? Há-de ir tanto à Europa como o outro há-de cair da cadeira, não é, pai?
- O Sporting vai ser campeão para a eternidade. É tão certo ser eterno campeão como aquele jardim que está ali fora. E, se isso não acontecer, será por causa do sistema.
- Cuidado, pai, algo me diz que já nasceram os que se perfilam como ameaças alaranjadas a esse jardim.
- Que é que tu dizes? Deve ser do palhete que já não me está a deixar ouvir bem. Fica sabendo duma coisa. Esse jardim que nós ajudámos a construir, só será destruído se os gajos da tua geração não tiverem vergonha e deixarem a terra abandonada aos que aí à volta se preparam para tomar conta dela.
E, como sempre, o meu pai tinha razão. O pessoal da minha geração, do qual não me excluo, não teve vergonha.

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