Oureana, Moura amada
Por Rosalina Melro
Corria o ano de 1136. Num dos seus ousados e bem sucedidos fossados, D. Afonso Henriques arrebatava a fortaleza de Abdegas, atalaia mourisca alcandorada em elevado morro, num lugar de difícil acesso que travava o avanço dos Cristãos para a linha do Tejo.
Entre os intrépidos guerreiros das hostes do Conquistador encontrava-se o lendário Traga-Mouros, filho de Hermígio Gonçalves, companheiro de Afonso Henriques desde a meninice nas terras galegas do Condado Portucalense. É dos amores desse temível guerreiro que hoje iremos falar. Mais uma lenda apenas. Uma das muitas versões que correm na vila velha de Ourém. Lenda que imortaliza a mais amada de todas as mouras, a doce Fátima, baptizada Oureana pelos cristãos, a bela filha de Abu Déniz, capitão da fortaleza de Alcácer do Sal, nas terras de mar e sol que se alongam para o Sul, a Ocidente do antigo Garbe.
Crelo não errar se disser que de todas as lendas reunidas por Almeida Garrett, a mais poética e, também, a mais dramática é esta Lenda de Ourém, onde se conta a história de um amor que se prolonga para além da morte, pois reúne, na mesma campa aberta em terra sagrada do adro da igreja do Castelo de Ourém, os corpos de Oureana e de Gonçalo Hermigues, o Traga-Mouros. Mas comecemos a Lenda tal como a ouvimos nas terras que foram de D. Teresa, infanta de Portugal.
O galã da "Lenda de Oureana" é dotado de superiores talentos, posto que é o primeiro de todos os belos Trovadores que iniciam as cantigas em Lingua Galega com o novo modo de trobar trazido pelos Cruzados que, dos longínquos castelos da doce Bretanha, tinham vindo auxiliar nas lutas contra os Mouros nos tempos da reconquista. A sua voz melodiosa, a sua arte sublime de poeta, a sua sensibilidade ao dedilhar o alaúde, eram um poder mágico que abria ao guerreiro-trovador as portas de todos os castelos cristãos da Galiza até Coimbra.
Os Mouros tinham esfacelado o seu valente pai, apelidado de Lutador, durante aquela sangrenta Batalha de Ourique, num golpe de traição. Chorou-o como D. Afonso Henriques que, logo em seguida, auxiliado por poderes divinais, degolou cinco reis mouros e desbaratou o poderoso exército da moirama. Gonçalo Hermigues substitui, então, no lugar de valido do rei, o seu nobre pai. Recebe a honra de governar o Castelo de Abdegas acompanhado de um valente punhado de nobre guerreiros, todos jovens e bem treinados nas duras lutas contra o infiel.
Numa noite de S. Joáo, os moços cavaleiros entretinham-se em jogos de lanças, quando um dos mais ousados propôs um treino mais proveitoso nessa noite de amores e de folgança para cristão e para mouros. Em breve, cavalgavam nos areais, batidos por mansas ondas. Embarcam no batel dos cruzados, ancorado junto à praia. Rompia a madrugada, de um S. João exaltante, quando o batel chegou à foz do Mira. Atracaram, em silêncio, frente aos campos floridos de Alcácer. Subitamente, vindo do lado do Alcazar, o vozear pipilante de um bando de formosas e jovens mulheres. Destancando-se de todas as outras, a mais garbosa era Fátima, a filha dilecta do governador do castelo. Sobre ela tombaram os olhos de Gonçalo Hermigues. Por ela ficou enfeitiçado o Traga-Mouros. Logo, esquecidos os perigos, ele improvisa uma trova sublime. Desse momento se acham vestígios nos Cancioneiros Medievais.
Sem temor, a doce Fátima corria para os braços do Trovador. Tomados de êxtase, cada um dos cavaleiros arrebata uma moirinha. No ar perfumado de giesta e rosmaninho, ouviam-se as trovas, que haveriam de dar o nome a Oureana:
Oureana!Oureana! Oh! Tem por certo
Que esta vida, de viver,
Toda a vida se olvidou naquele aperto.
E o que em troco eu vim a haver
Não há mais para se ver.
Ora vos tenho, ora não
E um a um eles que chegaram
Já me apanhaste e já não...
D'aqui largam e d'ali pegam,
que anda tudo ao repelão
Por mil golvos retoiçando
Ai,ai, que vos avistei!...
Já sei por que ando lidando,
Que em tais terras bem pensei
Melhor fruto não verei.
Entretanto, aproximava-se uma chusma de mouros, bem armados de alfanges e adagas reluzentes. Corriam a salvar as suas irmãs e noivas. Então, o corajoso Gonçalo Hermigues deitou o corpo de Fátima, que entretanto desmaiara, sobre uma pequena duna e ordenou aos companheiros que fossem para o batel e o aguardassem. Sozinho, fez frente aos aguerridos sarracenos e, num repente, tomava a amada contra o seu peito e entrava no batel salvador. Alquns dias mais tarde, pela lua cheia de Agosto, grande festa anima a sua herdade, cerca do Castelo de Abdegas. Música e danças e muitos folguedos celebram a alegria da conversão da bela moura. Nesse dia, fora celebrado o baptizado e logo em seguida o casamento cristão da filha de Abu Déniz que tomara o nome de Oureana. Tanta fama teve a sua beleza e a força do seu amor que o povo trocou o nome de Abdegas pelo de Ourém. Mas o drama da manhã de S. João ferira de morte o coração dividido de Oureana. Saudades da família e das terras do Sul entristeciam-lhe a alma e roubavam-lhe o alento. Numa manhã cinzenta de Abril, começavam a florir as rosas brancas no jardim do Castelo, Oureana caía morta no caminho pare a igreja. Inconsolável, o Traga-Mouros encerra a sua dor e a sua juventude na branca cela de um Convento. Diz-se que todas as manhãs, quando o sol nascia, ele vinha rezar junto da campa da sua amada, com uma rosa branca entre as mãos que nunca mais dedilharam as cordas do alaúde. E, porque de amor também se morre, foi sobre a campa de Oureana que, num triste dia de Novembro, abandonou esta vida de paixóes. Os dois ficaram, para sempre, unidos nesse pedaço da terra de Ourém. Terra de ligaçoes profundas entre os homens e os deuses. Terra de fé e de elevados ideais, cultivados de geraçao em geracão, pelos seus filhos, descendentes de Gonçalo Hermigues, o Traga-Mouros.
In "Suplemento Cultural de O Mirante" de 3/9/97
Por Rosalina Melro
Corria o ano de 1136. Num dos seus ousados e bem sucedidos fossados, D. Afonso Henriques arrebatava a fortaleza de Abdegas, atalaia mourisca alcandorada em elevado morro, num lugar de difícil acesso que travava o avanço dos Cristãos para a linha do Tejo.
Entre os intrépidos guerreiros das hostes do Conquistador encontrava-se o lendário Traga-Mouros, filho de Hermígio Gonçalves, companheiro de Afonso Henriques desde a meninice nas terras galegas do Condado Portucalense. É dos amores desse temível guerreiro que hoje iremos falar. Mais uma lenda apenas. Uma das muitas versões que correm na vila velha de Ourém. Lenda que imortaliza a mais amada de todas as mouras, a doce Fátima, baptizada Oureana pelos cristãos, a bela filha de Abu Déniz, capitão da fortaleza de Alcácer do Sal, nas terras de mar e sol que se alongam para o Sul, a Ocidente do antigo Garbe.
Crelo não errar se disser que de todas as lendas reunidas por Almeida Garrett, a mais poética e, também, a mais dramática é esta Lenda de Ourém, onde se conta a história de um amor que se prolonga para além da morte, pois reúne, na mesma campa aberta em terra sagrada do adro da igreja do Castelo de Ourém, os corpos de Oureana e de Gonçalo Hermigues, o Traga-Mouros. Mas comecemos a Lenda tal como a ouvimos nas terras que foram de D. Teresa, infanta de Portugal.
O galã da "Lenda de Oureana" é dotado de superiores talentos, posto que é o primeiro de todos os belos Trovadores que iniciam as cantigas em Lingua Galega com o novo modo de trobar trazido pelos Cruzados que, dos longínquos castelos da doce Bretanha, tinham vindo auxiliar nas lutas contra os Mouros nos tempos da reconquista. A sua voz melodiosa, a sua arte sublime de poeta, a sua sensibilidade ao dedilhar o alaúde, eram um poder mágico que abria ao guerreiro-trovador as portas de todos os castelos cristãos da Galiza até Coimbra.
Os Mouros tinham esfacelado o seu valente pai, apelidado de Lutador, durante aquela sangrenta Batalha de Ourique, num golpe de traição. Chorou-o como D. Afonso Henriques que, logo em seguida, auxiliado por poderes divinais, degolou cinco reis mouros e desbaratou o poderoso exército da moirama. Gonçalo Hermigues substitui, então, no lugar de valido do rei, o seu nobre pai. Recebe a honra de governar o Castelo de Abdegas acompanhado de um valente punhado de nobre guerreiros, todos jovens e bem treinados nas duras lutas contra o infiel.
Numa noite de S. Joáo, os moços cavaleiros entretinham-se em jogos de lanças, quando um dos mais ousados propôs um treino mais proveitoso nessa noite de amores e de folgança para cristão e para mouros. Em breve, cavalgavam nos areais, batidos por mansas ondas. Embarcam no batel dos cruzados, ancorado junto à praia. Rompia a madrugada, de um S. João exaltante, quando o batel chegou à foz do Mira. Atracaram, em silêncio, frente aos campos floridos de Alcácer. Subitamente, vindo do lado do Alcazar, o vozear pipilante de um bando de formosas e jovens mulheres. Destancando-se de todas as outras, a mais garbosa era Fátima, a filha dilecta do governador do castelo. Sobre ela tombaram os olhos de Gonçalo Hermigues. Por ela ficou enfeitiçado o Traga-Mouros. Logo, esquecidos os perigos, ele improvisa uma trova sublime. Desse momento se acham vestígios nos Cancioneiros Medievais.
Sem temor, a doce Fátima corria para os braços do Trovador. Tomados de êxtase, cada um dos cavaleiros arrebata uma moirinha. No ar perfumado de giesta e rosmaninho, ouviam-se as trovas, que haveriam de dar o nome a Oureana:
Oureana!Oureana! Oh! Tem por certo
Que esta vida, de viver,
Toda a vida se olvidou naquele aperto.
E o que em troco eu vim a haver
Não há mais para se ver.
Ora vos tenho, ora não
E um a um eles que chegaram
Já me apanhaste e já não...
D'aqui largam e d'ali pegam,
que anda tudo ao repelão
Por mil golvos retoiçando
Ai,ai, que vos avistei!...
Já sei por que ando lidando,
Que em tais terras bem pensei
Melhor fruto não verei.
Entretanto, aproximava-se uma chusma de mouros, bem armados de alfanges e adagas reluzentes. Corriam a salvar as suas irmãs e noivas. Então, o corajoso Gonçalo Hermigues deitou o corpo de Fátima, que entretanto desmaiara, sobre uma pequena duna e ordenou aos companheiros que fossem para o batel e o aguardassem. Sozinho, fez frente aos aguerridos sarracenos e, num repente, tomava a amada contra o seu peito e entrava no batel salvador. Alquns dias mais tarde, pela lua cheia de Agosto, grande festa anima a sua herdade, cerca do Castelo de Abdegas. Música e danças e muitos folguedos celebram a alegria da conversão da bela moura. Nesse dia, fora celebrado o baptizado e logo em seguida o casamento cristão da filha de Abu Déniz que tomara o nome de Oureana. Tanta fama teve a sua beleza e a força do seu amor que o povo trocou o nome de Abdegas pelo de Ourém. Mas o drama da manhã de S. João ferira de morte o coração dividido de Oureana. Saudades da família e das terras do Sul entristeciam-lhe a alma e roubavam-lhe o alento. Numa manhã cinzenta de Abril, começavam a florir as rosas brancas no jardim do Castelo, Oureana caía morta no caminho pare a igreja. Inconsolável, o Traga-Mouros encerra a sua dor e a sua juventude na branca cela de um Convento. Diz-se que todas as manhãs, quando o sol nascia, ele vinha rezar junto da campa da sua amada, com uma rosa branca entre as mãos que nunca mais dedilharam as cordas do alaúde. E, porque de amor também se morre, foi sobre a campa de Oureana que, num triste dia de Novembro, abandonou esta vida de paixóes. Os dois ficaram, para sempre, unidos nesse pedaço da terra de Ourém. Terra de ligaçoes profundas entre os homens e os deuses. Terra de fé e de elevados ideais, cultivados de geraçao em geracão, pelos seus filhos, descendentes de Gonçalo Hermigues, o Traga-Mouros.
In "Suplemento Cultural de O Mirante" de 3/9/97
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