sexta-feira, abril 30, 2004

A Luz do Silêncio
Paremos durante alguns dias.
O dever chama-nos.
Vamos reflectir, fazer trabalho de base, carregar baterias, obter massa crítica. O nosso plano é voltar de novo com recordações de Ourém.
A propósito:
- não há por aí alguém que queira fazer um texto sobre os célebres Estúdios Trini?
- … ou sobre a monumental sova que o Dr. Armando deu ao Augusto e ao Vitor?
-… ou sobre aquela mó que um dia foi apontada ao CFL?
- não há por aí fotografias dignas de ser partilhadas da nossa Ourém?
Não tenham receio, eu trato bem as coisas, tudo devolverei.
Respostas, comentários e contribuições para o Quartel.

E Ourém aqui tão perto...
Com a devida vénia:

Cidades
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 30 de Abril de 2004
Clara Ferreira Alves - uma das raras e enriquecedoras leituras do "Expresso"- escrevia na sua última crónica acerca do deslumbramento que uma recente visita a Barcelona lhe tinha provocado e interrogava-se porque não construímos assim Lisboa e as nossas outras cidades. Barcelona é também uma das minhas cidades de referência, como o é - e falo apenas de cidades "europeias" - Buenos Aires, sobre a qual aqui escrevi há uns meses, e tantas outras: Roma, Florença, Veneza, Sevilha, Londres, Paris, Estocolmo, Copenhaga, Genebra, Viena e, posso acrescentar já ao rol por antecipação, Praga, que irei conhecer para a semana. E outra ainda, que revi, depois de prolongadíssima ausência, há 15 dias atrás: Amesterdão. Não saberia descrever Barcelona melhor do que a Clara o fez, por isso descrevo o que vi em Amesterdão.
Estava sol, o que sempre ajuda, sobretudo às cidades do Norte. Estava sol e, por isso, as pessoas estavam cá fora, ao sol: muitas nos dias de semana, quase todas no fim-de-semana. Gente reunida por famílias ou prédios inteiros, sentada nas escadas ou nas varandas das casas ou simplesmente com as cadeiras postas na rua, lendo jornais, trabalhando nos computadores portáteis, conversando por grupos ou apanhando sol, sem mais. Mas a maior parte circulava pela cidade, a pé, de bicicleta (quase todos os que se deslocavam), ou de barco, através dos canais. Paravam nos restaurantes, nas lojas, nos mercados de flores ou de livros usados, na infinidade de livrarias ou quiosques de revistas do centro, nos jardins ou nas margens dos canais, na profusão de cafés, pastelarias ou bares, onde se pode ficar até querer, simplesmente bebendo um "expresso" ou um copo de vinho branco. Visivelmente, a rua estava preparada, melhor dizendo, imaginada, para receber as pessoas. Não havia café, bar ou restaurante que não tivesse esplanada. Não havia esquina que não tivesse bar, pastelaria, restaurante, quiosque ou livraria. Não vi em esquina alguma uma agência bancária - muito menos esta recente praga do "Millenium BCP", com a sua cor púrpura ou violeta, poluindo visualmente e aos poucos todas as nossas cidades. Não é por acaso que no Fórum Barcelona, a começar já em Maio, um dos temas de exposição é justamente "As cidades e esquinas". Porque são as esquinas que fazem viver em grande parte as cidades, como ponto de cruzamentos, de encontros ou de paragem em cafés e quiosques. Entre nós, todavia, as esquinas estão a transformar-se em lugares reservados da banca.
Do ponto de vista dos nossos arquitectos, todo o centro, a imensa parte histórica de Amesterdão, é aquilo a que eles chamam depreciativamente um "pastiche": simplesmente porque é intocável. Não há ali qualquer concessão à modernidade em diálogo com a história. Todos os edifícios actuais, remodelados, reconstruídos ou feitos de raiz, obedecem aos mesmos padrões arquitectónicos que caracterizam o chamado "período doirado" - último quartel do século XVII e primeiro do século XVII - em que a Holanda atingiu o seu apogeu marítimo e comercial e a cidade foi construída. A cércea nunca ultrapassa os quatro andares e toda a construção é de tijolo, telha e vidro, sem betão, sem alumínio, sem floreados alguns. Uma monotonia para os arquitectos, um prazer para quem lá vive e por lá se passeia. A arquitectura moderna está remetida para as franjas laterais ou para a periferia, assim como a indústria e grande parte dos serviços: o centro, que é o coração nevrálgico da cidade, é para o pequeno comércio, para a habitação, pequenos hotéis, bicicletas, barcos, passeantes. Inútil acrescentar que não existe aqui um único centro comercial, muito menos essas monstruosidades desumanas tipo Colombo, Fórum Almada ou Gaia-Shoping, onde os portugueses se enterram como ratazanas, como se se quisessem vingar do sol e da luz que têm lá fora. E, como não existem esses monstros de consumo, onde, como escreveu a Clara Ferreira Alves, se tenta recriar ridiculamente os jardins, parques, alamedas e árvores que não existem ou que se deixaram lá fora, o pequeno comércio sobrevive e desempenha um papel vital na vida da cidade. Mas, também, atenção: quando falo de pequeno comércio, não tem nada a ver com aquilo a que estamos habituados: não há cafés com balcões de zinco, mesas de fórmica, máquinas que fazem um barulho ensurdecedor, acrescentado ao barulho das loiças a serem sumariamente lavadas, cartazes idiotas a anunciar que "as bebidas expostas são para consumo na casa" ou "só se aceitam cheques visados", e empregados que se esforçam até ao absurdo por não verem os clientes a chamá-los; não há mercearias e talhos com ar de tabanca africana, pindéricas floristas, lojas sempre encimadas por painéis de publicidade, montras sem qualquer brio nem imaginação. E não fecha tudo ao fim-se-semana nem atravacam as ruas com as suas cargas e descargas durante o horário normal dos dias de semana. As regras aqui são: serviço, qualidade e brio. Aí se vê também e decisivamente a diferença entre um país civilizado e aquilo que somos. Enfim, resta acrescentar que não há engarrafamentos nem buzinadelas, não há polícias à vista e a cidade é absolutamente libérrima nos seus costumes e toda a gente tem um ar de quem desfruta cada momento ali vivido.
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Dizia a Clara Ferreira Alves que todos os nossos autarcas deveriam ir a Barcelona ou outras cidades europeias onde a qualidade de vida é o objectivo número um de quem as governa. Eu penso que eles já foram, já perceberam e nada adiantou. Era bom era que todos os eleitores das nossas principais cidades pudessem ir a Barcelona ou Amesterdão para perceberem o quanto têm sido mal governados e o quanto têm sido roubados no seu direito a uma vida urbana totalmente diferente e melhor.
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