domingo, maio 30, 2004

Coisas que gostaria de ter escrito I
Um dos autores cujos textos aprecio há mais de trinta anos é António Barreto. Na minha modesta perspectiva é dele a autoria da melhor obra de Economia sobre Portugal publicada de há cinquenta anos para cá. Trata-se de Capitalismo e Emigração em Portugal que escreveu em co-autoria com Carlos Almeida. A obra foi editada pela Prelo, constituindo a edição de 1970 a que me refiro o número 10 da colecção Cadernos de Hoje e pode dizer-se que foi um texto de referência de todos os estudantes de económicas de então onde se integrava, por exemplo, Ferro Rodrigues.
Barreto como ministro não foi muito feliz, cabendo-lhe a responsabilidade por um retrocesso nas relações de produção que entretanto o PREC ajudara a estabelecer. É famosa a Lei Barreto e o ódio que despertou entre o proletariado rural e o campesinato. Dirão que foi necessário estabelecer um pouco de ordem, mas talvez fosse preferível uma abordagem diferente. Mas o que lá vai, lá vai.
O importante é que, apesar de tudo, aprecio extremamente as crónicas com que regularmente nos brinda no Público. A deste fim de semana é disso um exemplo e aqui parte do texto da mesma com algumas modificações da minha responsabilidade:

SUPONHAMOS UM PRIMEIRO-MINISTRO.
Um homem, ou mulher, com alma grande e sentido da responsabilidade. Alguém que tenha percebido que o tratamento de choque a que os portugueses foram submetidos é absolutamente inútil se não for consolidado por anos de disciplina, de mais produtividade, de menores expectativas e de mais responsabilidade.
Que poderia hoje dizer esse Primeiro-ministro à população? Coisas tão simples! Que a estes dois anos de dificuldades e de rigor se vão seguir pelo menos mais dois de dificuldades e de rigor. Que o petróleo tão cedo não vai ficar barato. Que as taxas de juro não podem baixar mais. Que não estamos à altura da concorrência internacional. Que o desejado crescimento de um ou dois por cento é totalmente insuficiente, tanto para sociedade e o emprego como para alimentar o Estado. Que sem uma década de novos comportamentos, acompanhados de reformas profundas e difíceis (da justiça, da educação, da gestão hospitalar, da segurança social, da Administração Pública...), nada de durável se conseguirá em Portugal. Que, entre asfixias conjunturais e facilidades crónicas, nada de sério e decente se pode fazer. Que não vale a pena governar nessas condições. Que governar para ganhar eleições é uma perversão do espírito e uma falha de deveres. Que a política de "aguentar no poleiro" é uma ignóbil caricatura da nobre arte de dirigir um Estado. Que só vale a pena ganhar quando se está preparado para perder. Que, se os portugueses querem regressar à facilidade, à distribuição de bodos, à impunidade e ao aumento ilimitado de benefícios, então não têm mais do que votar em massa naqueles que aspiram à orgia das finanças públicas.
Se assim dissesse, um Primeiro-ministro, qualquer Primeiro-ministro, ganharia. As eleições ou a honra. Ou as duas. Se não o diz ou não pensa, a honra, perdê-la-á certamente. E não está dito que ganhe as eleições.

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