Naquele prédio de betão com alma de penumbra,
reinava o mistério como um senhor de cartola
que, em vez de bater bengala no chão,
batia à porta da Dona Odete,
viúva de guerra nenhuma,
mas mártir da sua própria imaginação.
— "Quem bate?" — dizia ela,
com a respiração em suspense
e o robe de flanela a tremer em verso.
Era sempre à mesma hora,
o relógio, cúmplice da assombração,
marcava as três badaladas
do susto noturno.
A vizinhança?
Surda, muda, ocupada com as novelas da alma.
Do rés-do-chão ao sótão,
ninguém dera fé de vulto ou de sopro.
Afinal, o prédio era tão vivo como um domingo chuvoso.
Até que, do fundo do sarcasmo coletivo,
ergueu-se uma voz mais atrevida:
— “Ó Dona Odete… a senhora, por acaso, ronca?”
Silêncio.
Um silêncio mais indignado que o Parlamento
em noite sem subsídios.
— “Roncar? EU?!” —
respondeu ela, com a dignidade de quem
nunca roncou nem em versos livres.
Mas a teoria avançava, destemida:
— “É que, veja bem, o seu quarto é encostado ao do Senhor Rui…
Talvez ele, torturado por sinfonias nasais,
tenha recorrido ao código Morse na sua porta,
sugerindo uma mudança… de posição.”
— “Mudar de posição?! Nem pensar!” —
bradou Dona Odete,
erguendo-se como uma heroína trágica
num palco de ladrilhos e esquentadores.
E assim ficou o prédio:
entre o espanto e o riso,
com o mistério intacto
e a Dona Odete
a dormir como quem declama Camões em surdina.
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