Estávamos em Mafra entre Outubro de 1973 e Janeiro de 1974. A instrução processava-se em ritmo normal. Como já referi, tive a sorte de me calhar alguém com uma boa formação humana pelo que as coisas até correram bem ao contrário do que ocorreu a outros. As saídas diárias, a esperança numa especialidade mais ou menos de acordo com a formação, a companhia de alguns amigos com preocupações idênticas, faziam-nos pactuar com o sistema.
Mas havia algo que mordia interiormente e isso manifestou-se no que escrevi na altura1. Texto escondido, com auto-censura, onde não tive coragem de dizer a que se referia. E era simples: durante a manhã, após a instrução, fazia-se uma paragem e surgiam algumas senhoras com cestos à cabeça carregados de sandes e bebidas que nos permitiam passar um momento de descontração.
A questão é que estavam a fazer negócio com aquilo que nos era imposto, com uma espécie de cadáver das nossas consciências. Por isso, chamei-lhe “Os Abutres”. Eis uma versão com pontuação corrigida:
Estavam por trás do muro, oferecendo o que tinham para vender, numa ânsia que lhes arregalava os olhos não os deixando pensar em porque estariam ali, onde seres esfomeados e necessitados de humanidade procuravam pão e algo como o leite materno para se alimentarem e continuarem numa senda repetitiva que faria voltar os abutres.
O negócio era fabuloso e eles teriam assim forma de encontrar na cidade os géneros que necessitavam para a sua auto-subsistência muito embora maldissessem os impostos que pagavam, percebendo que eram para obras colectivas e não das prontas só para eles.
Eram seres cujos filhos também iam à escola, talvez de má vontade, ansiando pela liberdade de se tornarem úteis e servirem um povo sofredor e amante do trabalho produtivo, para assim poderem estar participando na repartição do bolo2.
Eram dez minutos e o seu decorrer, cheio de palavrões e boca cheia, saltitando de vala em vala, do muro para ali, dali para o muro, onde estavam os pães as bebidas e tudo o mais que o esfomeado consumiria pensando estar a fazer algo pelo seu corpo para desenvolver uma formidável musculatura enquanto os olhos arregalados e as vozes livres os procuravam numa confluência de fins que se materializava no exposto.
O dinheiro brilhou e à falta de trocos uma carteira de fósforos serve para aumentar o negócio.
O abutre tinha na realidade algo de estranho.
1 - Anjinho como sempre, tinha informado o NO da minha condição de militar e que me era vedado escrever na imprensa, pretendendo limpar a minha responsabilidade, como se os textos não fossem assinados. Isto, mais ou menos em 1975, em momento mais exaltado, foi utilizado pelo jornal contra mim.
2 - Referência a um texto, entretanto cortado pela censura, que via a inflação como uma força de os grupos sociais influenciarem a partilha do que produzia, designado por bolo
Sem comentários:
Enviar um comentário